quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)


Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ   > Um enfermeiro "rigoroso e... despachado"...



1. Continuação do texto publicado anteontem, da autoria do Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) (*) [, foto atual à direita,]:

Já era noite fechada em Bula quando o Teixeira, meu soldado maqueiro, veio ao bar dizer-me:
– Furriel, está uma mulher à porta de armas a pedir para tratarmos o filho.
– Já lá vou.
– Mas, ó furriel, olhe que o miúdo se não está morto, parece.
– Leva-a para a enfermaria que eu é só acabar o café.

 Fui de seguida. Em Bula, a enfermaria ficava muito próximo da porta de armas. O bar de sargentos era lá mais para os fundos do aquartelamento. Quando cheguei lá acima, os olhos muito brancos e muito abertos da mulher mandinga, agitavam-se numa correria, ora na minha direcção, ora na do filho que apertava contra o peito. Estendi-lhe os braços pedindo-lhe que me o entregasse. Aquele corpo quase inerte ardia em febre.
– Teixeirinha, vai lá abaixo chamar o doutor e tu, João, arranja-me aí alguém que me ponha a falar com a mulher.

Não lhe conseguimos arrancar uma palavra. Só olhava para o filho, em desesperado silêncio. Chegou o doutor, o alferes miliciano Chaves Ferreira.
– Ó doutor, ela não disse nada mas aqui o Braima, que a conhece, diz que o rapaz tem aí uns cinco ou seis anos e que já deve estar com uma carrada de paludismo há vários dias. Devem ter-lhe feito as mezinhas todas, mas como não resultou trouxe-o aqui.

O doutor Chaves Ferreira era um homem alto que falava em voz baixa.
– O puto está bera, pá – disse-me ele depois de o ter examinado.
– E o que lhe fazemos ? – perguntei-lhe.
– Para já temos que lhe baixar a febre e metê-lo a soro. Depois deitamo-nos a inventar porque para tratar pneumonias é que nós não temos aqui nada. E para um puto desta idade, ainda menos.

Uma pneumonia. Bonito sarilho. Aquele peito franzino nem parecia respirar. Antipirético LM (laboratório militar) partido aos quartos e diluído em água, com uma seringa metido na boca aos poucos e devagar, e a agulha mais fina do tacho de esterilização, capaz de pegar a veia onde entrasse o soro.

E agora?
– Ó doutor – disse-lhe eu – devíamos levar o miúdo para Bissau.
– Pois devíamos – concordou ele – mas a esta hora como é que o levas, a nado?

Entre Bula e Bissau interpunha-se, como sabemos, o rio Mansoa.
– Se o doutor der uma palavrinha ao nosso Comandante, talvez ele concorde em pedir uma evacuação.
Vou lá a baixo falar com ele e tu põe-te de olho no rapaz e vê se lhe baixas a febre.
– Se não baixar com o LM, o que faço?
– Lava-o com água fria.

O Chaves Ferreira saiu e eu pedi ao João, outro dos meus maqueiros, que fosse ao bar buscar um balde com gelo. Enchi de água a tina esmaltada que na enfermaria servia para lavar as mãos e lá dentro meti o gelo que o João trouxera. Na água fria ensopámos um lençol e com ele lavámos o corpo do miúdo.

Quando o doutor regressou foi para me dizer que estavam a tentar a evacuação. Ficámos ali, com o doutor a conjecturar no que mais podia fazer, quando o Machado, o meu cabo-enfermeiro, quase gritou:
– Ó doutor, o miúdo apagou-se.

Saltámos que nem molas. Aquele peito frágil desapareceu no interior das mãos do doutor, que o pressionou, e uma, e duas, e três, “já o tenho”, disse ele, ao mesmo tempo que o miúdo parecia bolsar, “é especturação, vê lá se a tiras que o está a impedir de respirar”, pediu-me enquanto lhe comprimia o peito, como se de dentro dele quisesse expulsar o mal. Tentei um estilete de punção com compressa na ponta, mas o resultado foi fraco. Lembrei-me, então, de ir buscar um tubo de plástico, daqueles para administrar soro, abri-lhe uma ponta a sugerir maior espaço de sucção, na outra ponta do tubo introduzi aquelas borrachas que serviam para lavar os ouvidos, e fui aspirando, aspirando, enquanto o doutor, com o rapaz deitado de lado, ajudava com secas palmadas nas costas.

E disse então o médico:
– Calma, pá, deixa lá agora o gajo descansar.

Foram momentos de grande aflição. Apareceu o [João] Vinagre, alferes miliciano de informações, da CCS [, BCAÇ 2861], para nos dizer que havia a possibilidade de evacuar o miúdo na DO que de manhã iria distribuir o correio pelo sector.
– Ó alferes, mas isso só lá para o meio dia é que o puto vai para Bissau.
– É o mais certo  – retorquiu-me ele.
– E, entretanto, apaga-se-lhe o maçarico.
– O que é que queres que eu faça?
– Se o meu alferes pedisse uma secção à [CCAÇ] 2466 e ao capitão Monge [, do EREC 2454
que disponibiliza-se uma Panhard, a gente logo às seis horas levava o miúdo para Bissau.
– Ó doutor – disse o Vinagre para o Chaves Ferreira – aqui para o seu enfermeiro é tudo facilidades.
– É, pá – foi a vez do doutor falar ao Vinagre  – mas olha que a ideia do gajo não está mal vista.
– Pois, talvez, mas falta convencer o homem da jangada a vir buscá-los a João Landim.
– Aí, falo eu outra vez com o Comandante.


Saíram os dois e eu também. Fui à procura da malta da 66 [, CCAÇ 2466,] e o primeiro a encontrar foi o Furriel Gomes.
–  Ó Gomes, preciso de ti, pá.

Expliquei-lhe o que se estava a preparar e ele respondeu-me que, desde que o capitão autorizasse, com a equipa dele podia contar. Fui ao comando, lancei ao Vinagre  o polegar virado para cima, “secção já temos”, correspondendo-me ele com a informação de que Panhard também. Estava o Comandante a tratar de resolver o problema da jangada.

Reunimo-nos, de novo, na enfermaria. A febre do rapaz baixara, enfim. A barriga parecia menos apressada na sua tarefa de ajudar os pulmões a trabalhar. Sentada na mesma cadeira onde eu a mandei sentar quando chegou, estava a mulher mandinga, a mãe do rapaz. Aquele rosto era só angústia. Chamei o Braima, que cuidava das limpezas e arrumações da enfermaria, pedi-lhe para dar água à mulher e me traduzir. Disse-lhe o que o filho tinha, o que fizemos e o que íamos fazer. Só ela não disse nada. Ela só queria o filho, de novo, encostado ao peito e a respirar com ela.

Adicionar legenda
Veio o alferes Vinagre para nos dizer que a jangada estava garantida. Era só chegar a João Landim [, foto à esquerda], enviar o sinal e ela vinha logo buscar-nos. Até lá, foi continuar a lavar o rapaz com a água fresca, mais um quarto de LM, o doutor Chaves Ferreira a dar-lhe umas palmadas nas costas e eu, com o meu improvisado instrumento, a tirar-lhe a especturação possível da garganta.

Às seis da manhã, eu, o soldado maqueiro Teixeira, e a mãe do rapaz, entrámos com ele para a ambulância. Com a Panhard à nossa frente e a secção do Gomes atrás, fizemo-nos ao caminho, em direcção a João Landim. Mal lá chegados ouvimos o roncar do motor da jangada a iniciar a travessia do Mansoa. Logo que acostou, subiu apenas a ambulância porque do lado de lá era só andar depressa.

Entreguei o jovem mandinga no Hospital Civil de Bissau, talvez não fossem ainda oito horas da manhã.

Muitos dias passados, o Machado, com um sorriso de orelha a orelha, veio ter comigo e disse-me:
– Furriel, sabe quem é que está ali à porta para falar consigo? A mãe do miúdo que a gente levou para Bissau.

Lá estava ela, à porta da enfermaria, com o filho pela mão. Tirou o safeu que o rapaz trazia cruzado no peito e entregou-mo.
– Para furriel ter sorte.

Foi a primeira vez que a ouvi falar e, julgo, foi a primeira vez que lhe vi uma lágrima nos olhos.

Dou comigo a pensar como foi possível, com todos estes acontecimentos, nem o nome da mãe, nem o nome do filho, terem ficado registados na memória. Presente na memória dos meus dias, ficou apenas o safeu. Quando abro a minha caixa dos segredos e o vejo lá dentro, gosto de lhe sorrir.


De ontem e para sempre, o meu safeu

Texto, fotos (e legendas): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.

[Com este relato,  quero homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Vinagre, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.]

______________

Nota do editor:

(*) Último poste da sério > 5 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)

15 comentários:

Luís Graça disse...

Este texto originalmente tinha 11 páginas... Por lapso do editor, foi só editada uma primeira parte (que corresponde ao poste anterior). O autor deu conta logo do lapso. E ambos procurámos remediar a situação. Por felicidade, a I parte respeitava o fio lógico e cronológico da narrativa. Foi o que expliquei ao Armando ontem à noite:

Armando:

A segunda parte sai amanhã de manhã, está tudo pronto, é um "poste agendado"... Acho que o corte, embora arbitrário (por erro meu) foi mesmo cirúrgico, são duas partes articuladas mas distintas... Esta começa em Bissorã... E dou-te os parabéns. Só podia ser escrita por um homem da palavra, um grande jornalista, é daquelas que vai figurar na nossa futura antologia (com um ou mais volumes, não sei...). E é por casos como este, por depoimentos como o teu, reveladores da grandeza humana (que não tem que ter cor nem nacionalidade) , é que vale a pena continuar a fazer e a manter o blogue, todos os dias, às vezes penosamente (, o Carlos sabe avaliar bem o fardo...). Sinto-me orgulhoso por ti!... A malta vai gostar!... Um xicoração. Luis

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Armando Pires,

Durante a guerra os serviços militares da saúde foram muito importantes na assistência as populações civís da Guiné, e nas aldeias situadas perto dos aquartelamentos os enfermeiros, que na maior parte das vezes eram Furrieis, eram mais estimados e mais populares que os comandantes das companhias, facto que se manifestava no comportamento social através de carinhosas dedicatórias do tipo: "o comandante pode ser o chefão, mas é o furriel quem me espeta a aguilha...aqui!". O sitio indicado é que podia criar confusão nas mentes mais perversas.

Ainda hoje, apesar dos esforços feitos nessa área, a cobertura sanitária existente não conseguiu superar e fazer esquecer a pronta e voluntariosa assistência militar do periodo da Guiné-melhor.

Lembro aqui a pergunta que o meu velho fez aos guerrilheiros presentes no aquartelamento de Fajonquito a 1 de Setembro de 1974, quando faltavam algumas horas para a saida do ultimo pelotão da companhia que procedeu a entrega.
- Meus irmãos, o que vamos fazer com a...nossa (queria dizer vossa mas o bom senso aconselhou-o a mudar de pronome) independência se não têm enfermeiros nem medicamentos? O que se seguiu foi um grande silêncio e medo.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

PS: Queria perguntar ao Armando se tinha a certeza que o seu auxiliar Braima (provavelmente de etnia fula) sabia falar em Mandinga, pois o mutismo da mulher podia provir do facto de não compreender o mandinguisar do Braima.

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Armando Pires,

Durante a guerra os serviços militares da saúde foram muito importantes na assistência as populações civís da Guiné, e nas aldeias situadas perto dos aquartelamentos os enfermeiros, que na maior parte das vezes eram Furrieis, eram mais estimados e mais populares que os comandantes das companhias, facto que se manifestava no comportamento social através de carinhosas dedicatórias do tipo: "o comandante pode ser o chefão, mas é o furriel quem me espeta a aguilha...aqui!". O sitio indicado é que podia criar confusão nas mentes mais perversas.

Ainda hoje, apesar dos esforços feitos nessa área, a cobertura sanitária existente não conseguiu superar e fazer esquecer a pronta e voluntariosa assistência militar do periodo da Guiné-melhor.

Lembro aqui a pergunta que o meu velho fez aos guerrilheiros presentes no aquartelamento de Fajonquito a 1 de Setembro de 1974, quando faltavam algumas horas para a saida do ultimo pelotão da companhia que procedeu a entrega.
- Meus irmãos, o que vamos fazer com a...nossa (queria dizer vossa mas o bom senso aconselhou-o a mudar de pronome) independência se não têm enfermeiros nem medicamentos? O que se seguiu foi um grande silêncio e medo.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

PS: Queria perguntar ao Armando se tinha a certeza que o seu auxiliar Braima (provavelmente de etnia fula) sabia falar em Mandinga, pois o mutismo da mulher podia provir do facto de não compreender o mandinguisar do Braima.

armando pires disse...

Meu caro Cherno Baldé.
Duas histórias que tenho ainda por contar, nesta série que o Luís Graça me desafiou a escrever, darão igualmente conta dessa ligação entre as nossas equipas de saúde e as populações civis.
Quanto ao Braima, sim, era fula, mas a pergunta que me faz, a mais de 40 anos de distância é que é de muito difícil resposta. Creio, no entanto, que o Braima teria quaisquer formas de entendimento porque era sempre ele que fazia esse tipo de ligação entre nós e a população de Bula. Um abraço.

armando pires disse...

Aos Camaradas leitores.
Tem toda a razão, o Luís Graça.
O texto estava longo, reconheço sem nenhuma dificulade, e quis o acaso que a sua partilha em dois acabasse por melhorar, significativamente, a sua apresentação. De resto, mesmo antes d ter sido encontrada essa solução, foi esse o tema da conversa que mantive com o camarada Manuel Joaquim. Foi desde logo ele que me chamou a atenção para o impacto favorável que a minha história iria ter, se partilhada em dois textos.
Quanto às palavras do Luís, que dizer se não um muito obrigado.
Um largo abraço de camaradagem

Anónimo disse...

Já agora aqui fica a mensagem, das 23h18 de ontem, que o Armando me mandou, depois de termos esclarecido o meu lapso e a sua aceitação da partição do texto (LG)...

______________

Caro Luis: Primeiro: Grato, muito grato pelas tuas palavras. Não sou dos que regateiam um elogio. Olho para eles como o mesmo respeito que olho para as criticas.

Naquela fase da nossa vida profissional em que os mais novos já começam a ter-nos como referência, sempre lhes disse, aos mais novos, recebam os elogios com emoção e as criticas com responsabilidade,

Dito isto: Quanto à "divisão" do texto, foi exactamente esse o sentido da apreciação feita pelo Manuel Joaquim, quando falámos ao telefone. O final da primeira parte está tão forte que corria o risco de anular a força do que vem a seguir.

Muito Obrigado.Armando

Um grande abraço

Luís Graça disse...

Meus caros Armando Pires e Cherno Baldé:

À boleia deste magnífico texto (que honra o seu autor mas também os nossos serviços de saúde militares no TO da Guiné), deixem-me que mais mais uma vez faça aqui o elogio do "nosso Pastilhas", o meu camarada, Fur mil enf da CCAÇ 12 (1969/71), João Carreiro Martins, que já não vejo há anos... Fui ao arquivo do blogue buscar este excerto (poste P1366, de 13/12/2006):

(...) Pobre Bolha d’Água, pobre Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, penso que ele foi o meu primeiro herói, ou melhor, o meu primeiro anti-herói: nunca o vi a pegar uma arma, duvido até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhou connosco em operações, mesmo nas grandes operações; recordo-o sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem (alguns seguramente gente de Nhabijões, quiçá até vivendo no mato, sob controlo do PAIGC...

Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo..

Ele foi o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local... Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto, gratuitas e até perigosas: recordo-me de um dia - às tantas da noite, no regresso de uma emboscada - o termos acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da CCAÇ 12, já na parte final da comissão, a vestir no camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... Simulámos uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido um temível nome como Ponta Varela, Poindão ou Ponta do Inglês... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo...

Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Martins teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico...

No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas aos doentes africanos, de Bambadinca, Bambadincazinha e tabancas dos arredores... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...

Voltei a encontrá-lo, muitos anos mais tarde - vinte anos depois - , numa situação algo insólita: era enfermeiro chefe no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e estava a agora a frequentar um curso de administração de serviços de enfermagem, na Escola Superior de Enfermagem Maria Resende. Os nossos papéis agora eram outros: ele, aluno; eu, professor...

Sei que ele hoje está reformado... Voltei a encontrá-lo mais tarde e lembro-me de ele me ter falado, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, dos seus seus dois filhos, agora médicos... Perdi-lhe depois o rasto, mas confesso que gostaria de voltar a encontrá-lo, em Lisboa, ou aqui na nossa tertúlia, para lhe dizer que ele agora faz parte da minha de galeria de heróis e também para lhe pedir desculpa de algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas que o terão magoado...

A guerra é cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. (...)
____________

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2006/11/guin-6374-p1266-estrias-de-bissau-2-do.html

Luís Graça disse...

Amigos e camaradas:

Gostaria que aparecessem muitos mais testemunhos dos nossos médicos e enfermeiros, como este que acabamos de publicar, da autoria do "pastilhas" Armando Pires... O mote fica dado, o repto fica lançado...

No meu tempo (1969/71), os furriéis enfermeiros eram um recurso tão precioso - na perspectiva da política spinolista da "Guiné melhor" - que eles acabaram por dedicar a grande maioria do seu tempo à prestação de cuidados de saúde directos às populações locais... Não sei se havia orientações superiores nesse sentido, mas a verdade é que nunca vi um furriel miliciano enfermeiro em operações, muito menos um médico, com exceção do Vidal Saraiva [, da CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72]que "perdeu a boleia do helicóptero" e gramou um dia (dramático) connosco na famigerada e louca operação Tigre Vadio (março de 1970)...

Os únicos enfermeiros "operacionais" (pelo menos no Setor L1, Bambadinca, entre julho de 1969 e março de 1971) eram os degraçados dos "maqueiros", os 1ºs cabos auxiliares de enfermagem... São outros dos meus heróis... Tenho que lhes escrever uma história, para a minha "galeria"... LG

Bispo1419 disse...

Enfermeiro "rigoroso e ... despachado":
A foto que, com esta legenda, encima o texto retrata bem "a cena e seu personagem". É de antologia, a figurar nos canhenhos de enfermagem para ilustrar o que se não deve fazer, mas isto é para outra conversa!
Apreciem: o cenário assético da "botica", a placidez do "belo objeto" da ação ( não está nada nervoso e reparem na sua forma perfeita e como está confiante ao ser penetrado!), a pose do "pica", de cigarro na boca prestes a largar a quente cinza, de cabeça ao lado para o "não me atirem com fumo para os olhos" (ou era para não queimar o bigode?) e, por fim, a segurança e determinação com que o "atirador" domina a arma no ataque!
Agora "a sério": sem grande qualidade fotográfica, temos aqui uma bela foto de guerra. E única, pois fico a pensar que só com o "pastilhas" Armando Pires seria possível uma cena destas.
Um afetuoso abraço, Armando.
Manuel Joaquim

armando pires disse...

Obrigado, Manuel Joaquim.
E o mais divertido disto é que eu sei quem é o dono do "objecto da acção". E ainda hoje, porque ele felizmente continua vivo, nos nossos encontros, volta não volta vai à baila a foto. É que ele, quando pressentiu a máquina, quis espanhejar. E eu dizia-lhe: se te meches f...
De facto a nossa guerra teve coisas do caraças.
abraços
armando pires

Carlos Silva disse...

Armando

Só. Um esforço recompensado que jamais será esquecido.

Não é uma história, mas sim a solidariedade humana ao rubro
Um abraço amigo
Carlos Silva

Manuel Reis disse...

Caros amigos:

Foi dos serviços mais valiosos que os portugueses prestaram a toda uma população, carente de tudo, e bem nos podemos orgulhar disso.

Vi mulheres grávidas serem evacuadas para Bissau,vi grandes filas de doentes, junto da enfermaria e todos serem atendidos. Nunca ninguém faleceu por falta de assistência, em situações normais de guerra.

Sentia-se a morte de um africano como se de um irmão nosso se tratasse.

Foram bravos todos os Alferes, Furriéis, Cabos e Soldados do Serviço de Saúde, pois não nos podemos esquecer da sua falta de preparação e formação adequadas e feitas à pressão. Eram parcos os meios com que trabalhavam, improvisando na maior parte das situações.

Nunca esquecerei a imagem de um Alferes Médico, ferido, com o braço direito ao peito e a cozer os ferimentos de um soldado com a mão esquerda.

A todos bem-hajam.

Um abraço amigo.

Manuel Reis

JD disse...

Durante o período "por uma Guiné melhor", porventura os enfermeiros foram os bem amados da população guineense. E percebia-se, pois se estavam mais expostos à política da "psicola", não raramente estavam disponíveis para agir em auxílio de quem precisasse, sem constrangimentos de horas, de côr, de proveniência, nem se se tratava de inimigo depois de escaramuça, como o relato do Pires é um bom testemunho.
Por acaso na 2679 também tivemos uma bela equipe comandada pelo enfermeiro Vitor Salvador, sempre com freguesia assegurada.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...

Caros camaradas

Todo o pessoal do serviço de saúde foi durante os anos que durou a guerra, talvez, senão mesmo o mais importante contributo para a união entre a população civil e as nossas F.A.
Julgo poder afirmar que em toda a África sub-sariana, durante esse tempo,foi nas nossas colónias onde a população civil teve a melhor assistência sanitária, não só em termos curativos como preventivos.
Em S.Tomé e Principe, por exemplo,e por serem ilhas,foi erradicado o paludismo, que foi um feito histórico nos anais da medicina.
Hoje,infelizmente,na Guiné a assistência sanitária regrediu para tempos "medievos".
Os principais culpados são os "pseudo-políticos",onde por exemplo um "Ministro"teve a "lata" de ir roubar o gerador do Hospital Simão Mendes...está tudo dito.
São os mesmos que quando estão doentes,vêm tratar-se à Europa..o "Zé povinho" que se lixe..
PS
Já foi aqui várias vezes referido da pouca preparação do nossos médicos e enfermeiros..apesar de na altura não ter capacidade para avaliar,posteriormente constatei que não foi verdade,salvo casos pontuais, a maioria ia bem preparada..é claro que lá depois do saber de experiência feito..ficavam excelentes ou quase.

C.Martins

Anónimo disse...

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