Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 13 de novembro de 2012
Guiné 63/74 - P10662: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (58): Bula - Pré-peluda
1. Em mensagem do dia 10 de Novembro de 2012, o nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) enviou-nos mais este episódio para a sua série.
Viagem à volta das minhas memórias (58)
Bula – Pré-peluda
Surpresa
Perguntava-me o José Dinis sobre Bubaque, em comentário ao meu “poste” anterior…
Terminados os “festejos” pelo final do trabalho de “mineiro” e recuperado dos seus efeitos, começava a ser hora de iniciar a preparação para a entrada na pré-peluda, ou seja abalançar-me para uns diazitos na sonhada e ansiada Bubaque, o que envolveria alguns trâmites de ordem burocrática e logística, a começar pela efectiva autorização superior e respectiva guia de marcha (?) assim como a procura e espera de transporte. Tudo isto levaria talvez dois ou três dias, com sorte.
Estando já no Cumeré a “FORÇA”, incluso creio o pessoal administrativo, já não recordo a quem me reportava, se ao Comando antigo, se ao novo, se a alguma das Companhias que nos foram substituir. Não sei.
Sei é que nos entretantos e sem que minimamente estivesse a contar, me incumbiram de um novo trabalho que me fez ficar ”puto da vida”. Demonstrar o meu desagrado protestando em nada resultou !!! Ordens… eram para ser cumpridas! Tinha é que interiorizar a situação, mentalizar-me e na hora não deixar que qualquer sentimento de revolta afectasse a concentração no trabalho a desenvolver.
Qual o mancomunado trabalho? Um “convite”, ao que recordo em exclusividade à minha pessoa, para levantar um campo de minas, relativamente pequeno é certo, lá para as bandas esquerdas de S. Vicente, nas bordagens de uma bolanha.
Era certo, lá se me iria a ante-gozada “pré-peluda” pelo cano abaixo. Ordens… eram ordens e estas vinham de cima. Porquê a mim? À altura apeteceu-me mandar tudo “p´ro car… ” e fugir… achei injusto, na minha óptica era injusto.
Assim, no dia e hora aprazados, vestido e calçado para o efeito e munido com a “ferramenta” habitual monto-me na viatura juntamente com a rapaziada da segurança comandada pelo então Cap. Salgueiro Maia.
Chegado e referenciado o campo, surpresa… era quase só lama e água!!!
Comecei a sentir a vida a andar para trás… logo nos primeiros lançamentos… a pica nada detectou na localização assinalada nem nas proximidades. Reconfirmadas as referências e diversificadas as experiências… manteve-se a situação. De repente, talvez a um passo ao lado do pé avisto uma e na proximidade… uma outra… plásticas, digamos a boiar, completamente deslocalizadas, que lá não estavam!!! A movimentação dos pés tê-las-iam feito deslocar? Assim sendo quereria dizer que mesmo picando centímetro a centímetro estava sujeito a pisar uma vadia.
Não, não ia “entrar numa fria”. Senti que não havia a mais pequena hipótese com e naquelas condições de levar a bom termo a empreitada, pelo que não estava nada disposto a arriscar na sorte e só na sorte.
Não, nem pensar, decidi. Já havia tido que bastasse.
Chamado o Capitão… mostro-lhe as “boiadoras” - que acabei por neutralizar - e o estado em que está o campo. Esclareço-o (como se fosse necessário?!) da periculosidade e exemplifico-lhe a quase impossibilidade da detecção que só por sorte, muita sorte mesmo, seria possível sem que houvesse um acidente.
Procura dar-me ânimo e incentivar-me ao levantamento. Para além do já explicado e demonstrado, refiro-lhe o estar a poucos dias de embarcar, ao que responde com um incisivo (do género) ”tem que ser feito”, que não me agradou nada, mesmo nada.
Já decidido pelo não, ao sair-me um agressivo (quase sic), “então levante-as o meu Capitão”, vi-me de imediato com uma porrada e a prolongar a comissão num qualquer “burako” do território. ”Fod…” devia ter sido diplomático… ou fingir que torcia um pé… ou um jeito nas costas… mas o que já tinha saído, ficava… paciência, assumiria as consequências como me tinham ensinado e desde miúdo cumpria.
Se bem recordo ficou a olhar para mim surpreso e bastante “chateado”, mas não tenho ideia de quaisquer mais palavras agressivas ou ameaças… estou em crer que nada disso houve. Fiquei à espera e a mentalizar-me para a “pancada”, coisa mais que natural por ter virado costas e me ter recusado a uma ordem directa, ainda para mais vinda de “cima”.
Bem, mas como havia aqueles meus pensamentos secretos (meter o xico)… não iria ter que me esforçar a decidir, já que após o que se passara, na certa ficaria decidido por “inerência”.
Daí a uns poucos dias e sem ter vislumbrado Bubaque, estava no Cumeré sem que tenha tido conhecimento de qualquer evolução sobre o acontecido, não sei porque… talvez pelas consciências terem trabalhado… apontando a clarividência.
Julgo que três dias depois e com uma ida a Bissau pelo meio, estaria a embarcar no “Boeing” dos TAM juntamente com a Rapaziada, rumo à PELUDA.
E José Dinis, assim foi a tal pré-peluda. BUBAQUE… nem por um canudo… só um sonho relaxante e lindo!
Luís Faria
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10544: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (57): Bula - A guerra das minas (7): Bula - Minas, fim do suplício
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8 comentários:
Caro Luís Faria
As histórias que tanto tu, principalmente, e o António Matos, têm relatado sobre 'relacionamentos' com minas, são de facto bem marcantes.
Pode-se dizer que tiveram, para além da vossa eficiência, muita, mas mesmo muita, sorte.
Mas não será sempre assim?
Há que ter sorte e fazer por isso.
Ainda bem que puderam contar-nos isto, é sinal que estão vivos.
Abraço
Hélder S.
Olá Luís,
Este teu relato de pré-peluda deixa-me estupefacto. É incrivel tudo o que contas. É incrivel tanta incompetência dos responsáveis militares. E incrivel o desprezo pelas vidas dos comandados.
Era o improviso tolo, a acção medrosa dos comandos que ditava tão estúpidas situações.
Este último episódio, qual prémio pelo trabalho desenvolvido, ainda deixa transparecer e realçar, a ausência de bom senso de quem te ordenou, pois não foste tu a colocar as minas, por um lado; e por outro, se minaram uma bolanha, fizeram-no em tempo sêco, pelo que as minas não poderiam ser detectadas e levantadas em terreno alagado. Eram criminosos e isentos de responsabilidade, os que de cima, e no conforto dos gabinetes, proferiam ordens tão tontas, susceptíveis de corroer o moral das NT, e provocar irreparáveis danos de sangue.
Francamente, depois do que te fizeram, deviam era ter-te mandado para Saint Tropez, ou dado um período de gozo onde mais te aprouvesse.
Como disse o Helder, foi preciso muita sorte, não pela técnica que evidenciaste, mas pelas circunstâncias em que ocorreram.
Com comandos como os que referes, acabaríamos por perder a guerra à míngua de pessoal. Estás a ver? Eu tive muita sorte com as minazitas que me calharam.
Abraços fraternos
JD
Olá Luis Faria.
Ao ler este texto, fico arrepiado, minas na bolanha!.
Valia tudo, e vocês, que vieram depois, sofreram muito mais, creio que a minha sobrevivência foi mais fácil.
Faço minhas as palavras do Helder e do JD.
Um abraço, Tony Borie.
Caro Luís Faria
A "sorte protege os audazes", dizem eles, mas nem sempre! Possa, que ideia essa de colocar minas em bolanhas. É mesmo para uma lotaria. Foi por essas e outras que, infelizmente, muitos camaradas viram a sorte ir ao ar. Sorte tiveste tu em
teres tido o discernimento.
Um abraço.
Luís Dias
A troca de Bubaque (antigo paraíso dos ingleses) por um campo de minas, é descer do céu ao inferno, literalmente, e a metrópole (nunca antes tão adorada) ali tão perto...
Bom, amigo Faria, se assim não tivesse sido, agora não tinhas histórias (... de arrepiar)para contar!
Passa bem e que te apareça uma mina... de dinheiro.
Um abraço
Rui Silva
CARO LUÍS,
ENTÃO O "HERÓI" QUERIA QUE LEVANTASSES MINAS NA ÁGUA E SOB AQUELAS CONDIÇÕES?
VÁ LÁ QUE ACABOU POR TER O BOM SENSO DE "NÃO FAZER MAIS ONDAS"...
ABRAÇO.
infelizmente tinhamos que cumprir, ordens, vindas de cima, sendo boas ou más, ainda bem que tudo acabou bem!!!! eu estive em bula, mas 72/74, possivelmente o batalhão que vos substituiu.
Votos de muita saude e um forte abraço.
Desconhecia esse episódio mas que foi perverso, isso foi, mas agora que já « está na mala », vem daí que para o próximo ano vamo-nos encontar á beira Rio Douro aqui na Régua, para celebrar o 41º ano do nosso regresso. Vai ser com paisagem sobre o rio!...
Aquele abraço.
jorge fontinha
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