CARTAS DE AMOR E GUERRA
3. Em Bissau
[A chegada dá-se de madrugada. Dormia no camarote quando alguém me acorda dizendo que tínhamos chegado. Saio a correr para o convés e ao chegar sofro uma espécie de choque térmico. Respira-se um ar morno e carregado de humidade, uma brisa ligeira acaricia os rostos, sente-se o suor no corpo e a camisa não tarda a ficar colada ao tronco. “Onde está Bissau?” Deve ser em frente, respondem, pois ainda era noite e os únicos sinais de terra eram dados pelos intermitentes focos de luz da sinalização costeira e por uma pequena mancha luminosa no horizonte próximo.
Recordo o romper do dia, divisa-se a terra por entre uma ténue neblina e na costa percebe-se um aglomerado de casas numa linha da frente virada a nós. Era a marginal ao porto, viu-se depois. O sol não tardou a nascer. Podia ler-se na parte superior de uma dessas casas a palavra NOSOCO, se a memória me não falha.
Do que sucedeu depois não me lembro de algo que mereça ser contado a não ser dos momentos imediatamente anteriores ao desembarque. Foi nesta altura que dei pela subida a bordo de alguns militares com um graduado à frente.
Anunciaram a sua presença apregoando a troca de “pesos”, dispostos a nos ajudar a trocar as notas metropolitanas por notas guineenses, pois o dinheiro que levávamos não tinha ali curso legal. O câmbio era “ela por ela”, pelo mesmo valor facial dumas e doutras. Assim, diziam, podíamos evitar as dificuldades e a perda de tempo com a ida ao banco para fazer a troca. A léria estava tão bem ensaiada que alguns dos recém-chegados caíram na esparrela, e eu fui um deles como vi depois. Afinal, fosse legal ou não, conseguia-se fazer a troca no comércio local e era mais favorável, havendo até concorrência entre os “cambistas”. Se as palavras que então proferi contra aqueles fulanos lhes fizessem mossa tinham ficado bem amachucados. Enfim, um “belo” exemplo de camaradagem militar.
Desembarcada a minha CCaç 1419, lá fomos a caminho do quartel de Santa Luzia, o “600” como então era nomeado. A cidade pareceu-me simpática e acolhedora mas a “caravana” cruzou-se na curta viagem com um veículo militar onde era bem visível uma urna envolta na bandeira nacional. Iria com certeza a caminho do cemitério (ou dum porão do “Niassa”?). Foi o meu primeiro choque. Embora não o parecesse, tinha mesmo chegado à guerra.]
Bissau, 7 - Agosto – 65
Pronto, cá estou. A viagem correu perfeitamente e Bissau apareceu-me airosa, muito mais bonita do que eu imaginava. O clima está bastante razoável. Menos quente do que aí, quando estive em Sta. Margarida.
Fiquei e estou instalado num quartel aqui em Bissau, estadia esta que se prolongará durante uns tempos. Bom ambiente, em que parece não se pensar em guerra, leva-nos a encarar isto com optimismo. (… … …).
Minha querida, acredita-me: pode acontecer algum azar mas a coisa não é tão má como se pinta. (…). Afinal isto é a vida, tão perigosa como qualquer outra. E eu vou vivendo, viverei, melhor ou pior; e daqui a uns tempos sentirei a mesma alegria e boa disposição que notei nos que vim render.
(…), por hoje limito-me a comunicar-te estas minhas primeiras impressões. Vou tentar escrever-te frequentemente. O correio para aí é feito semanalmente. (…). Enquanto estiver aqui escrever-te-ei todas as semanas, com certeza. Depois … não sei.
(…). (…) tem calma e confiança, sim?
(…) muitos beijos do teu M. (…)
Foto 1. Bissau, quartel de S.ta Luzia: o “600”, vulgarmente assim chamado em 1965.
© “Rumo a Fulacunda”, blog de Henrique Cabral
Lisboa, 13/ VIII / 965
Meu amor, cá continuo (…), sofrendo os efeitos da distância que nos separa. Sinto uma revolta extrema por tudo o que nos impede de sermos felizes, (…). Dos momentos de intimidade, carícias trocadas, sinto saudade. (…). Fazes-me falta, muita falta, meu M. (…).
Comecei a escrever-te na hora de serviço [no Gabinete Jurídico e Contencioso da C.P.] mas não tive
tempo de terminar, (…).
Quando cheguei a casa encontrei o teu aerograma.
Alegra-me imenso saber que te sentes bem, que afinal a ideia que fazias disso era errada. Mas, meu M., não pintes isso a teu modo só para me tranquilizares. Peço-te sinceridade absoluta, querido. (…). Não precisas de ocultar-me seja o que for que aí se passe. Eu saberei receber calmamente as boas e as más notícias se algumas destas me estiverem reservadas. Confio plenamente que tudo há-de decorrer da melhor maneira para nós dois, (…). Tudo se vai passando, não é verdade querido? Tudo é vida e a nossa vida, por agora, é esta. Vivamo-la como ela se nos apresenta.
Então a tua permanência em Bissau vai prolongar-se por muito tempo? Vi imensos postais vindos da Guiné e achei que deve ser interessante conhecê-la. Conhecer os hábitos, as crenças das várias raças [etnias] aí existentes, penetrar no seu mundo (…).
Hás-de ver tudo isso para depois me contares, está bem? (…).
Beijo-te e abraço-te, (…). Tua N.
P.S. O aerograma vinha quase aberto!
Foto 2.
© Manuel Joaquim
[“Tem fé … hás-de voltar”: lembro-me perfeitamente da minha reação quando recebi esta foto. Do seu ar “kitsch” não gostei nada mas absorvi, emocionado, as intenções do gesto e a força do amor, do carinho e da devoção que sentia ressaltar da composição fotográfica.]
Foto 3. Bissau. Em Sta Luzia, a primeira foto, o encontro com o “chão” da Guiné, um prenúncio da futura ligação afetiva que “só a morte cortará”.
© Manuel Joaquim
Bissau, Agosto-14/65
A chuva continua a cair ininterruptamente e o clima ameno, mesmo fresco, que se faz sentir leva-me por vezes a esquecer que estou em África, numa zona tropical.
Ainda mal acostumado a esta vida de sobressalto ao mesmo tempo que estou instalado numa zona onde a calma é perfeita, muitas vezes até me esqueço que estou aqui, tendo a impressão que tu e os meus familiares estão perto e que basta eu sair do quartel para ir ter com vocês. Infelizmente isto é uma simples impressão. A realidade é bem dura. (…).
Olho com frieza o perigo, talvez com a mesma frieza com que ele me espreita. (…). Tudo isto é tão complexo que uma picante curiosidade nos envolve. (…).
(…) tive de interromper a escrita para atender um soldado (…).
(…) veio oferecer uma garrafa de aguardente para eu passar a noite. [em serviço de Sargento de Dia] (…) um dos momentos belos que hoje me aconteceram. Até agora o segundo momento de satisfação.
O primeiro foi provocado por um nativo que, com um belo sorriso e um olhar brilhante de alegria, me veio dizer um “obrigado a bó” (obrigado a ti) por o ter deixado ir a casa dispensando-o do serviço.
O perigo junta os homens, aclara os sentimentos. Por isso estou convencido de que, em combate, passarei os mais belos momentos de dedicação, fraternidade, camaradagem e sacrifício da minha vida.~
Com tudo isto não quero dizer que prefiro estar aqui, que estou a gostar de estar aqui. (…). Não mudei. Tudo isto é contrário aos princípios políticos e sociais que me regem. (…).
O bom seria não ter vindo mas agora que cá estou nada mais tenho a fazer do que tentar tirar o melhor partido de (…) no meio de toda esta barafunda de incompreensões, de interesses mesquinhos, de sacrifícios baldados. (…).
O Amor que te dedico não esmorecerá com a separação. Ambos temos capacidade comunicativa suficiente para aguentarmos esta ausência. (…). Deixemos com paciência correr o tempo, (…), veremos chegar a hora memorável e feliz em que me verei livre de tudo isto (…) a hora em que a nossa união se solidificará (…). (…) nossa união, (…) personificação de duas almas que querem viver a vida, senti-la, comunicá-la (…).
Espero que tudo corra bem por aí. Não sei porquê mas de casa ainda não tive notícias. É com certeza sornice da parte de meu Pai. Se encontrares a minha Mãe, anima-a, esquece-te de que eu estou aqui e fá-la esquecer também. Quero encontrá-la quando regressar. Se isto não acontecesse muita coisa se modificaria na minha vida.(…).
(…) muitos beijos do teu M.(…)
Bissau em foto-postal. Imagens da década de 1960.
© Ed. Cômer-Lisboa
____________Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10948: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (2): A caminho de Bissau
7 comentários:
Olá Manuel Joaquim.
Estou a viver um pouco a tua chegada à guerra.
Um ar morno e abafado..., os "pesos", eram "ela por ela"..., a urna a anunciar a chegada à guerra..., as cartas com ternura e esperança..., a alegria de quando chegou a casa e encontrou um aerograma..., diz à minha mãe que vou regressar...!.
Por favor continua, nós agradecemos.
Um abraço do Tony Borie.
Tomo boa nota, relembro, concordo... LG
(...) "O perigo junta os homens, aclara os sentimentos. Por isso estou convencido de que, em combate, passarei os mais belos momentos de dedicação, fraternidade, camaradagem e sacrifício da minha vida.
(...) "Com tudo isto não quero dizer que prefiro estar aqui, que estou a gostar de estar aqui. (…). Não mudei. Tudo isto é contrário aos princípios políticos e sociais que me regem". (…).
... Manel Jaquim:
Também é verdade que a gente, quando escreviam "retocava a fotografia", punha-lhe alguma cor de rosa... para tranquilizar os nossos entes queridos...
Era também a nossa forma de lidar com o stresse de uma situação nova, a Guiné, a guerra, o desconhecido, o imprevisto, o imprevisível...
Sortudo, tiveste uma grande mulher a teu lado!... Mas bem o merecias... LG
Caro Manuel Joaquim,
Não sei se já t e tinha dito que gosto muito do que escreves.
Para além de seres um bom observador, acho que também eras muito evoluído políticamente.
Continua a escrever que de certeza estás a agradar.
Um grande abraço.
Adriano Moreira
Olá Manel.
Obrigado por teres partilhado connosco os teus sentimentos e os da tua (então) namorada.
E que bem exprimes a perturbação das primeiras impressões, até a expectativa de sentires a guerra.
Um abraço
JD
Caro Manuel Joaquim
Tem o seu quê de 'voyeur' acompanhar estes teus escritos mas, afinal, não são assim tão diferentes do que certamente muitos de nós (para não dizer todos) escrevemos ou pensámos.
Há de facto muita cumplicidade entre vós e sinto que isso foi muito bom, não só para vós, como também, e principalmente, para os familiares, que desse modo puderam ter um melhor acompanhamento à distância dos teus dias.
Abraço
Hélder S.
Manel.
Leio-te com a estupefacção de quem pergunta:
- Ai era assim?
Porque eu não tenho correspondência como tu. Porque eu nunca me correspondi, mesmo que a fingir.
(Mentira. Tinha uma namorada francesa que me enviou, por correio, um livro biográfico do "poeta" Leopold Senghor. E tem uma dedicatória que diz: para ler nas noites azuis e sem guerra. É tudo o que me resta da memória escrita desse tempo)
armando pires
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