segunda-feira, 29 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11502: Notas de leitura (476): Triângulo Nublado, de J. Loufar (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2013: 

Queridos amigos,
Aqui fica o testemunho de um sargento da Força Aérea que se tem revelado um escritor prolífico, J. Loufar.
Esteve alguns meses em Bissalanca, no início de 1962, fazia parte de uma equipa de pessoal afeta a uma esquadrilha de seis aviões F-86, que poucos anos mais tarde a NATO exigirá ao governo português o seu regresso.
São impressões de uma estadia sem sobressaltos, mas ele pressente uma grande inquietação, a guerra avizinha-se, as notícias são cada vez mais alarmantes. Era uma Bissau alindada ainda com sinais formais de racismo, um mundo que se alterará profundamente dentro de poucos meses.

Um abraço do
Mário


Um sargento da Força Aérea na Guiné, em Janeiro de 1962

Beja Santos

Na base de Monte Real, foi decidido, em Janeiro de 1962, uma missão especial de uma esquadrilha de 6 aviões F-86, e cumulativamente a missão de uma equipa de pessoal que lhe estaria afeta. É com esta missão que se inicia o livro “Triângulo Nublado”, de J. Loufar (José Lourenço Faria), edição de autor, 2004. Viajam num DC6 que tinham pertencido à aviação civil na Índia.

Chegados a Bissau, aboletam-se num hotel. Resolvem conhecer a cidade: “À esquerda, ouvia-se e adivinhava-se a quietude das ondas do estuário do maior rio da Guiné. À direita, perdia-se a vista na maior extensão dessa avenida e o seu termo na praça onde se destacavam a associação comercial e o palácio do governador. Palácio de linhas austeras e antigas”. Mais adiante: “Noto o modesto aglomerado de casas de primeiro andar, espaçadas e alinhadas ao longo das ruas, rodeadas por pequenos jardins bem tratados; a fraca iluminação proveniente de geradores; as montras comerciais, a denunciarem a modéstia de artigos para venda; as esplanadas, com mesas debaixo de árvores ou arbustos atenuadores de calor, tendo como clientes, quase exclusivos, os militares, as ruas alcatroadas, mas com deficiente escoamento das enxurradas, o que justifica o tal pisar de grilos, gafanhotos, baratas, sapos, répteis, etc., quando as chuvas as inundam e explicando a razão dos passeios altos; ausência, quase total, de veículos civis, a circularem e poucos militares, em rondas; cheiro a maresia e lodo…”. Observa ainda que são os homens que fazem os trabalhos domésticos nas casas dos brancos, alguém se impressiona com o à vontade com que as mulheres andam despidas da cintura para cima.

Dá conta da rotina do que os levou a Bissalanca, a reparação, inspeção e preparativos de voo. Começam a estabelecer-se as primeiras relações sociais, formam-se grupos que vão à caça, o autor não esconde a sua falta de mestria para as atividades cinéticas, por desfastio dá uns tiros numas rolas. Sente permanentemente a curiosidade acicatada por essa natureza selvagem, como relata: “O solo, vermelho de barro virgem, a cheirar a terra revolvida, salvo junto de poças de águas das chuvas, onde aparecia com cor e cheiro a lodo; os matos, compostos de diferenciados arbustos e ervas daninhas, com matizes diferentes e cheiros acres ou convidativos; as árvores, com troncos entre o arredondado e recortado por saliências dilatada; outras, mais pequenas e carregadas de frutos desconhecidos…”. Explicam-lhe o que é o caju, vai adquirindo conhecimentos da flora, fauna e terreno. Visita a praia de Tora, fica a saber que existem tubarões por isso a praia está envolvida por uma paliçada que impede a sua aproximação. Anota que os aerogramas já chegaram à Guiné. E chegamos assim ao sentimento da guerra, à cautela há patrulhamentos obrigatórios: “Os três ramos das forças armadas acordaram, entre si, que a vigilância noturna de instalações, clubes, alojamentos, residências particulares ou estabelecimentos hoteleiros, onde pernoitasse pessoal militar afeto a elas, fosse assegurada por elementos dos respetivos destacamentos”. As chefias em Bissalanca convidam todo o pessoal para um piquenique de ostras assadas, e dá notícia de acepipes e gastronomia mais fina: “Lagostas, lagostins, percebes, santolas e outros mariscos que aparecem por cá vêm de Cabo Verde, são trazidos pelos tripulantes do Dakota que semanalmente faz ligação entre a Guiné e Cabo Verde”.

Descobre com assombro que há por ali formigas de muitos e variados tamanhos, já não bastavam as dificuldades dos matos, o risco de pisar uma cobra venenosa ou o receio de ataque do inimigo, salta à vista estalagmites ou coisa parecida, afinal é um trabalho paciente das formigas, construções escarpadas, secas, avermelhadas como o barro de que são feitas.

Sente uma atração irresistível para ir a um batuque, pediram autorização a um régulo para assistir, por prudência vão armados. E descreve o espetáculo: “Os primeiros números revelaram-se monótonos e sem grande rigor na execução. Os segundos revelavam-se exibicionistas e competitivos. A coisa melhorava, o calor aumentava, a poeira adensava-se e o entusiasmo subia. Quando o par ou bailarino/a ficava a rodopiar e a dar os passos que as forças ainda permitiam, o entusiasmo era indescritível. A partir dali, os corpos desnudados, do tronco para cima, iriam entregar-se a volúpia incontrolada, por excitação e hábito. Intimidades várias de namorados, esposos, amantes, extrovertidos e meio embriagados, rejeitavam qualquer ingerência ou assistência de estranhos, mesmo para os da raça”.

Engraça com o cônsul de Dakar na Guiné. Descobre que há crocodilos à volta de Farim e sente fascínio por aqueles rios e rias misteriosos e por vezes mortais: “Enfrentar o ímpeto dos caudais daqueles fundos, largos, impetuosos e sujos rios da Guiné; a fauna dominante dos mesmos, nomeadamente crocodilos; a impenetrabilidade das suas margens, no caso de ser necessário acostar; a força da corrente, com a agravante de se ter de atravessar de uma margem para outra; a eventualidade haver terroristas a seguirem os seus passos e receios, podendo com qualquer armamento matá-los ou afundá-los”.

Visita Bolama, vê praias lindas e uma cidade a agonizar, é um espetáculo desolador. Como gosta muito de fruta, descobre o bom gosto das papaias, mamões, mangas, maracujá e anonas. Considera que o relacionamento entre os civis e os militares tem muitas tensões, sem confrontos físicos nem hostilidades declaradas, sucediam-se discussões, insinuações, provocações e desconsiderações. Para ele, tudo aquilo não passa de despeito e inveja e desabafa acerca das recriminações dos civis: “Que não vimos para cá fazer nada que eles não fossem capazes de fazer, se os deixassem. Que só vimos aumentar o nível de custo de vida. Que vimos receber bons ordenados, que eles têm de pagar, com impostos. Que agimos como se fôssemos mais amigos dos pretos do que dos brancos”. Pior do que tudo, este sargento da Força Aérea vai descobrir que há racismo puro em certos estabelecimentos onde há recusa em servir os africanos, mas alguém observa que a situação está a mudar: “A pouco e pouco, foram tomando consciência de que noutros cafés soldados pretos eram convidados pelos brancos; empregados comerciais e outros exigiam que os seus colegas pretos os acompanhassem; funcionários públicos acamaradavam com os seus colegas de cor, provando que a ousadia deles tinha reduzido tão desagradável tabu”. E chegou a hora de regressar, com a consciência do dever cumprido e com o sentido de que a guerra espreita.

É um documento utilíssimo, importa não esquecer que estamos no início de 1962, no ano anterior houve escaramuças no Norte, a PIDE anda ativa por toda a Guiné a procurar desmembrar as redes do PAIGC, em breve Rafael Barbosa e algumas dezenas de ativistas irão ser encarcerados; mas há já o sentimento de muitos perigos. E ficamos igualmente com um fresco de Bissau um pouco antes da guerra, a tal cidade traçada à régua, limpa, bem ajardinada e com os militares já a dominar as esplanadas.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11476: Notas de leitura (475): Guiné-Bissau - De Colónia a Independente, por José Gregório Gouveia, e O Trabalho de uma Vida - Avelino Teixeira da Mota, por Carlos Manuel Valentim (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Esta paciência de MBS ler tanta coisa não é para qualquer um.

Gostei também desta leitura.

Quando se escreve sobre o sentimento de ansiedade do regresso do soldado,também o sentimento e olhares da chegada, como esta Nota de Leitura, podia ser um grande motivo cada um dizer o que viu e o que o impressionou na chegada.

Principalmente sobre o que esperava e o que ouviu e viu naquele ambiente africano tão diverso daquele em que viveu.

Cumprimentos