O Cifra abre o seu diário de guerra e nessa página lê-se que nesse dia, que era 4 de Novembro, que devia de ser de 1964, foi jantar a casa do Primeiro Sargento de uma parte da Companhia de Engenharia que estava estacionada em Mansoa durante a construção do novo aquartelamento, e que vivia com a esposa na vila, sendo o responsável por tudo o que dizia respeito a cimento que se usava nas obras do aquartelamento. Dizia-se que o camião de três rodados que transportava os sacos de cimento da capital, não era lá muito seguro, pois deixava “cair” alguns antes de chegar a Mansoa, pois o referido camião quase sempre chegava pouco mais que meio. O Cifra era operador cripto, não era polícia, portanto vamos continuar a ler o diário. Foi um grande convívio, e comeu-se uma gazela assada no forno do aquartelamento, com batatas cozidas com a pele, regadas com muito vinho. Devia ter sido também batatas e vinho roubados no aquartelamento, não explica porque o convidaram, mas falando no forno do aquartelamento, devia ter metido o Arroz com Pão, que era o cabo do rancho e o “Tótó”, que era o padeiro e responsável pela distribuição do vinho, que eram seus amigos, e não faziam nenhuma “patuscada” sem avisarem o Cifra. Gostavam da “farra”, tanto ou mais que o Cifra.
Numas páginas mais à frente, vem a dizer, numa linguagem um pouco primitiva, que por certo vão desculpar, que veio à capital da província, no carro dos doentes, na companhia do furriel miliciano que andava sempre a fumar um cigarro feito à mão, que não tinham doença nenhuma, estavam única e simplesmente de folga das suas tarefas. Vieram sem qualquer licença, portanto “desenfiados”, andaram a visitar os pontos de referência que normalmente os militares visitavam quando vinham do “mato” à capital, meteram-se nos “copos” e não regressaram no carro dos doentes. Dormiram num local, que diz no diário que era “piolhoso”, próximo do quartel general, onde havia uma grande tabanca com muitas “moranças” e raparigas africanas, que não falavam crioulo, nem usavam somente um pano em volta da cinta, não tinham “mama firme” e argolas no pescoço e nas pernas a servir de enfeite. Não andavam descalças e vestiam roupas com uma cor “berrante”, justas ao corpo, principalmente a segurarem a mama, que já não era “firme”, lábios com alguma pintura, um perfume barato a cheirar a álcool, e com gestos sensuais e provocatórios. Quando se aproximavam do Cifra, já falavam aquelas palavras obscenas em português, que todos os antigos combatentes conheciam, e diziam mesmo:
- És pessoal do Lisboa? Queres água ou licor do Lisboa? Olha aqui, “mama firme”, anda dá “patacão”!
O diário continua a dizer que ao outro dia acordaram não sabem onde, mas sem perderem a calma, e com uma certa compostura, retiraram algumas garrafas já vazias de bebida, do seu redor, sem nenhum “patacão” nos bolsos, que não sabem se foram roubados ou se simplesmente gastaram tudo, e sentindo muito orgulho no que tinham feito, com o braço no ombro um do outro, pois mal se continham em pé, apresentaram-se no aeroporto militar de Bissalanca, pregando uma grande mentira, que tinham sido “agredidos e roubados”, mas que agora estavam bem, mas tinham que regressar já a Mansoa. O furriel Honório, o “Pardal”, pois era assim que era conhecido no aquartelamento em Mansoa, que tinha correio e medicamentos para Mansabá, trouxe-os na avioneta. Quando a secção de combate foi prestar segurança e recolher os sacos do correio, onde não havia correio nenhum, deparando com o Cifra e com o furriel miliciano, que andava sempre a fumar um cigarro feito à mão, ambos com um aspecto de pessoas abandonadas, logo disseram:
- Só podiam ser vocês, o comandante vai dar-vos uma “porrada”, que estão fod...!
O Cifra nunca soube porquê, mas nada aconteceu. Que “porrada” maior podiam levar, se tinham sido “agredidos e roubados”, e mesmo assim, obedientes, voltaram ao local de tortura?
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11483: Bom ou mau tempo na bolanha (6): A ida da sua aldeia para Nova Iorque (Tony Borié)
2 comentários:
Caro amigo Tony
Os teus artigos causam entusiasmo para quem viveu essa época, os anos 64 a 66. Tu tens uma maneira especial e simples na escrita, para que todos compreendam a mensagem.
Agora falando do furriel Honório, o Bart.645 tinha um com esse nome, mais precisamente da Cart.642, é um camarada que é e vive na Madeira, e que se desloca todos os anos ao Continente, não ao super-mercado, mas aos nossos encontros da Associação de Amizade do Bart.645-AGUIAS NEGRAS, associação que eu fundei á 33 anos, quando do nosso primeiro encontro em Cascais.
Aproveito esta mensagem para demonstrar a minha indignação, pelo que assisti ontem no programa da RTP 1, sobre a guerra na Guiné, onde um ex- Cap.Milº de nome Antonio Gouveia de Carvalho, declarou que para não ser atacado pelo Paigc, mantinha contactos com o inimigo, dando informações dos nossos movimentos, recebendo como contrapartida a sua livre circulação sem ser molestado.
Para salvar a sua reles pele, punha em perigo os seus camaradas dos aquartelamentos vizinhos, não sabendo nós quantos dos nossos "ficaram" proveniente desta enorme traição. Nós que fomos obrigados a ir para a guerra, local para onde não queriamos ir de livre vontade, na maioria, não nos passava pela cabeça tal "feito", admitindo eu uma deserção mas nunca uma traição, prejudicando o nosso próximo.
Amigo Tony, já chega, descarreguei a minha ira, recebe um grande abraço deste teu amigo Roger.
Cart.643-AGUIAS NEGRAS.
Olá Roger.
Infelizmente, ou felizmente, aqui onde me encontro, não vejo esses programas da guerra da Guiné, mas que tenho ouvido falar, pois no nosso blogue, às vezes é anunciada a sua programação, não sei se sou um previligiado ou um não previligiado, em não ver esses programas, pois há milhares e milhares de antigos combatentes como nós, que dizem nos seus comentários em outros blogues, que esse programa tem algum sensacionalismo, e algumas pessoas que nele participam procuram protagonismo, agora esse ex-capitão miliciano, ao afirmar essas palavras, com toda a certeza que não era digno de vestir a farda de militar português, será que esse senhor depois de dizer isso publicamente, vai dormir com a sua consciência descansada, na guerra vale tudo, mas vender a vida de companheiros, francamente, e mais em cenário de guerra.
O teu desabafo, na minha modesta opinião está certo, fizes-te bem em falar e dizer o que te vai na alma, pois sofres-te no corpo as agruras de uma guerra, que te deixou marcado para o resto da tua vida.
Um grande abraço Roger.
Tony Borie.
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