quarta-feira, 1 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11513: Bom ou mau tempo na bolanha (7): És pessoal do Lisboa? (Tony Borié)

Sétimo episódio da série do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), Bom ou mau tempo na bolanha.




O Cifra abre o seu diário de guerra e nessa página lê-se que nesse dia, que era 4 de Novembro, que devia de ser de 1964, foi jantar a casa do Primeiro Sargento de uma parte da Companhia de Engenharia que estava estacionada em Mansoa durante a construção do novo aquartelamento, e que vivia com a esposa na vila, sendo o responsável por tudo o que dizia respeito a cimento que se usava nas obras do aquartelamento. Dizia-se que o camião de três rodados que transportava os sacos de cimento da capital, não era lá muito seguro, pois deixava “cair” alguns antes de chegar a Mansoa, pois o referido camião quase sempre chegava pouco mais que meio. O Cifra era operador cripto, não era polícia, portanto vamos continuar a ler o diário. Foi um grande convívio, e comeu-se uma gazela assada no forno do aquartelamento, com batatas cozidas com a pele, regadas com muito vinho. Devia ter sido também batatas e vinho roubados no aquartelamento, não explica porque o convidaram, mas falando no forno do aquartelamento, devia ter metido o Arroz com Pão, que era o cabo do rancho e o “Tótó”, que era o padeiro e responsável pela distribuição do vinho, que eram seus amigos, e não faziam nenhuma “patuscada” sem avisarem o Cifra. Gostavam da “farra”, tanto ou mais que o Cifra.


Numas páginas mais à frente, vem a dizer, numa linguagem um pouco primitiva, que por certo vão desculpar, que veio à capital da província, no carro dos doentes, na companhia do furriel miliciano que andava sempre a fumar um cigarro feito à mão, que não tinham doença nenhuma, estavam única e simplesmente de folga das suas tarefas. Vieram sem qualquer licença, portanto “desenfiados”, andaram a visitar os pontos de referência que normalmente os militares visitavam quando vinham do “mato” à capital, meteram-se nos “copos” e não regressaram no carro dos doentes. Dormiram num local, que diz no diário que era “piolhoso”, próximo do quartel general, onde havia uma grande tabanca com muitas “moranças” e raparigas africanas, que não falavam crioulo, nem usavam somente um pano em volta da cinta, não tinham “mama firme” e argolas no pescoço e nas pernas a servir de enfeite. Não andavam descalças e vestiam roupas com uma cor “berrante”, justas ao corpo, principalmente a segurarem a mama, que já não era “firme”, lábios com alguma pintura, um perfume barato a cheirar a álcool, e com gestos sensuais e provocatórios. Quando se aproximavam do Cifra, já falavam aquelas palavras obscenas em português, que todos os antigos combatentes conheciam, e diziam mesmo:
- És pessoal do Lisboa? Queres água ou licor do Lisboa? Olha aqui, “mama firme”, anda dá “patacão”!


O diário continua a dizer que ao outro dia acordaram não sabem onde, mas sem perderem a calma, e com uma certa compostura, retiraram algumas garrafas já vazias de bebida, do seu redor, sem nenhum “patacão” nos bolsos, que não sabem se foram roubados ou se simplesmente gastaram tudo, e sentindo muito orgulho no que tinham feito, com o braço no ombro um do outro, pois mal se continham em pé, apresentaram-se no aeroporto militar de Bissalanca, pregando uma grande mentira, que tinham sido “agredidos e roubados”, mas que agora estavam bem, mas tinham que regressar já a Mansoa. O furriel Honório, o “Pardal”, pois era assim que era conhecido no aquartelamento em Mansoa, que tinha correio e medicamentos para Mansabá, trouxe-os na avioneta. Quando a secção de combate foi prestar segurança e recolher os sacos do correio, onde não havia correio nenhum, deparando com o Cifra e com o furriel miliciano, que andava sempre a fumar um cigarro feito à mão, ambos com um aspecto de pessoas abandonadas, logo disseram:
- Só podiam ser vocês, o comandante vai dar-vos uma “porrada”, que estão fod...!

O Cifra nunca soube porquê, mas nada aconteceu. Que “porrada” maior podiam levar, se tinham sido “agredidos e roubados”, e mesmo assim, obedientes, voltaram ao local de tortura?

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11483: Bom ou mau tempo na bolanha (6): A ida da sua aldeia para Nova Iorque (Tony Borié)

2 comentários:

Rogerio Cardoso disse...

Caro amigo Tony
Os teus artigos causam entusiasmo para quem viveu essa época, os anos 64 a 66. Tu tens uma maneira especial e simples na escrita, para que todos compreendam a mensagem.
Agora falando do furriel Honório, o Bart.645 tinha um com esse nome, mais precisamente da Cart.642, é um camarada que é e vive na Madeira, e que se desloca todos os anos ao Continente, não ao super-mercado, mas aos nossos encontros da Associação de Amizade do Bart.645-AGUIAS NEGRAS, associação que eu fundei á 33 anos, quando do nosso primeiro encontro em Cascais.
Aproveito esta mensagem para demonstrar a minha indignação, pelo que assisti ontem no programa da RTP 1, sobre a guerra na Guiné, onde um ex- Cap.Milº de nome Antonio Gouveia de Carvalho, declarou que para não ser atacado pelo Paigc, mantinha contactos com o inimigo, dando informações dos nossos movimentos, recebendo como contrapartida a sua livre circulação sem ser molestado.
Para salvar a sua reles pele, punha em perigo os seus camaradas dos aquartelamentos vizinhos, não sabendo nós quantos dos nossos "ficaram" proveniente desta enorme traição. Nós que fomos obrigados a ir para a guerra, local para onde não queriamos ir de livre vontade, na maioria, não nos passava pela cabeça tal "feito", admitindo eu uma deserção mas nunca uma traição, prejudicando o nosso próximo.
Amigo Tony, já chega, descarreguei a minha ira, recebe um grande abraço deste teu amigo Roger.
Cart.643-AGUIAS NEGRAS.

Tony Borie disse...

Olá Roger.
Infelizmente, ou felizmente, aqui onde me encontro, não vejo esses programas da guerra da Guiné, mas que tenho ouvido falar, pois no nosso blogue, às vezes é anunciada a sua programação, não sei se sou um previligiado ou um não previligiado, em não ver esses programas, pois há milhares e milhares de antigos combatentes como nós, que dizem nos seus comentários em outros blogues, que esse programa tem algum sensacionalismo, e algumas pessoas que nele participam procuram protagonismo, agora esse ex-capitão miliciano, ao afirmar essas palavras, com toda a certeza que não era digno de vestir a farda de militar português, será que esse senhor depois de dizer isso publicamente, vai dormir com a sua consciência descansada, na guerra vale tudo, mas vender a vida de companheiros, francamente, e mais em cenário de guerra.
O teu desabafo, na minha modesta opinião está certo, fizes-te bem em falar e dizer o que te vai na alma, pois sofres-te no corpo as agruras de uma guerra, que te deixou marcado para o resto da tua vida.
Um grande abraço Roger.
Tony Borie.