sexta-feira, 3 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11522: Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (3): A emboscada de Ponta Coli, em 14 de novembro de 1968, em que morreu o fur mil SMA Fernando Dias, e sofremos 15 feridos









Guiné > Setor L1 (Bmabadina) >Xime > CART 1746 > Copia do relatório da emboscada, realizada em 14 de novembro de 1968, em que morreu o fur mil SAM Fernando Maria Teixeira Dias. Documento da autoria de António Vaz, e por ele digitalizado.

Fotos: © António Vaz (2013). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


1. Mensagem de 18 de abril último, enviada pelo nosso camarada António Vaz, ex-cap mil art, cmdt da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69)  [, foto atual, à direita]

Olá,  camaradas

Quando estive no almoço anual da Tabanca em Monte Real em 2012,  tive, entre outros bons momentos, a oportunidade de conhecer o camarada Jorge Araújo,   também ele militar que passou pelo Xime e que sofreu, como eu e a minha CArt, a passagem pela Ponta Coli que ao longo da guerra se revelou um sítio nada recomendável.

Além da colaboração no Blog de J. Araújo,  teve ele naquela ocasião a amabilidade de oferecer dois textos de sua autoria em que relatava minuciosamente e saborosamente as duas emboscadas no trajecto Xime/ Bambadinca. Nomeadamente entre Ponta Coli / Taliuara, podemos considerar sem grande erro, zona onde muitos de nós sofreu alguns dos maus momentos na Guiné.

Embora já tenha ouvido críticas à descrição de emboscadas como se de casos menores se tratassem, coisa que eu não acho, não quero deixar de dar o meu testemunho da que a CArt 1746 sofreu em 14 de Novembro de 1968 naquele local,  cerca de 4 anos antes. Embora já tenha sido abordado pelo camarada Moreira este relato apenas o completa e confirma.

O relatório que junto foi o único documento que trouxe da Guiné e isso quererá dizer alguma coisa…

Passo assim a abordar o tema:

(1)  Durante a permanência da CArt 1746 no Xime, de Janeiro de 68 a Junho de 69,  fizeram-se, no mínimo, 820 vezes o percurso Xime/ Bambadincaa e volta no qual tivemos oito flagelações, sendo a citada de 14 de Novembro a mais grave.

(2) Este percurso nunca foi feito "à borla", tendo a Companhia, desde o princípio, tido a consciência que aquele era o percurso terrestre que nos ligava ao "resto do Mundo". Não houve dia nenhum em que o pessoal não o tivesse feito,  sobrepondo-se à Milicia de Amedalai, à época comandada pelo Carfala, indivíduo em quem tinha a maior confiança, tendo sido esse pessoal que detectou uma mina junto ao pontão na extremidade da bolanha ao alvorecer do dia 1 de Janeiro de 69.

(3) No dia 14 de Novembro nada se fez de muito diferente pois só a hora de saída mudava, mas não muito. O pessoal a pé composto por 2 Secções acompanhava o grupo dos picadores, seguiram até Ponta Coli, sem nada detectar, tendo montado a segurança.




Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca > Subsetor do Xime > Carta do Xime (1955) > Escala 1/50 mil > A  sempre temível Ponta Coli, à saída do Xime...O traçado a vermelho indica a antiga estrada Xime-Bambadinca, passando por Taliuara, Ponta Coli, Amedalai, ponte do Rio Udunduma... Em dezembro de 1970, ainda estava em construção a nova estrada, a cargo da Tecnil... Será inaugurada em 1971 ou 1972, já não no meu tempo...(Saí em março de 1971) (LG).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013).



(4) Algumas considerações:

(i) Os primeiros tiros foram de armas ligeiras,  logo seguidos por rockets. Saltei do Unimog (ou foi cuspido pela travagem brusca, seguindo eu sempre no "lugar do morto" normalmente com o pé direito no retrovisor) tendo um desses primeiros tiros atingido o condutor, comigo já no chão, o alvo portanto foi ele. A bala trespassou-o lado a lado sem atingir a coluna nem qualquer órgão vital.


(ii) A reacção do pessoal foi imediata,  tendo alguns dos feridos sido atingidos por estilhaços dum rocket que acertou na longarina da viatura em que vinha. Lembro-me, ainda, da onda de choque do calor e do cheiro do explosivo, tendo as minhas calças a ficar ensanguentadas embora nada me doesse.

(iii) Algumas imagens que recordo: o bazuqueiro ( Ramos ?), de pé, a disparar enquanto teve granadas disponíveis; o Caç Nat. Tcherno Baldé com um ferimento na cara segurando o globo ocular; ouvia os tiros na Ponta Coli,   o que significava que havia um grupo que atacava a segurança; a lama da laterite feita com o sangue dos feridos.

(iv) Com a chegada, precedida de tiros do pessoal do Xime que acorrera, à frente dos quais vinha o soldado Deodato apenas em cuecas, com a bazooka disparando sobre elementos que estavam na orla da mata tendo os tiros terminado.

(v) A lamentar acima de tudo os ferimentos em vários locais do corpo que vieram a causar a morte ao Furriel Fernando Dias, já no Xime enquanto aguardava, ele e os outros, pelos Helis para a evacuação. O Fur Dias,  depois de já estar no chão e para se proteger,  levantou-se, provavelmente para se abrigar melhor, e teve o azar de ser atingido. Contaram-me posteriormente outros Furrieis que a namorada que deixara na Metrópole, não quis acreditar na morte dele.

(vi) A batida feita à zona da parte da tarde pelo Pelotão do Alf [Gilberto] Madail encontrou do lado direito dum enorme baga-baga cartuchos vazios de G-3 e do lado esquerdo e oposto cartuchos vazios de 7.72 Soviet.

(vi) Junto ao sítio onde" aterrei " encontrou uma granada de mão de fabrico chinês, por rebentar, que ficou até ao fim da comissão em cima dum armário frente à minha mesa de trabalho.

(vii) Sem ser os casos anteriormente, todos lamentáveis, outro houve que teve grande gravidade: o Alferes António Teles não recuperou daquela acção. Manteve durante algum tempo um mutismo que não augurava nada de bom. Sendo uma pessoa reservada, essa reserva a meu ver tornava-se patológica. Respondia por monossílabos e tinha terrores por vezes nocturnos que punham em perigo a recuperação do pessoal. Contou-me o Furriel Martins que a meio da noite apareceu no abrigo empunhando a G-3, indagando onde estavam os aviões que não o deixavam dormir. Convenci o Alf Teles a ir comigo a Bambadinca falar com o médico Aferes David Payne, que merecia páginas de elogios, que o aconselhou a ficar lá uns dias até ir para Bissau. Daí foi evacuado no mesmo dia para Lisboa para o HMP que os soldados Antunes e Oliveira feridos na mesma emboscada. Só o voltei a ver no dia da chegada a Lisboa onde nos foi esperar e acompanhou até Torres Novas.

(viii) De notar que que da viatura em que seguia, apenas eu não fui evacuado.

(ix) Para finalizar: os minutos que durou a emboscada foram poucos mas os segundos pareciam não ter fim. Ainda hoje estou para saber porque escrevi no relatório ter sido atingido de raspão por um estilhaço quando, embora pequeno, se encontra ainda na minha perna. Mistério.

António Vaz
ex-cap mil art,
cmdt da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69)

5 comentários:

Luís Graça disse...

(...)"Os minutos que durou a emboscada foram poucos mas os segundos pareciam não ter fim.

" Ainda hoje estou para saber porque escrevi no relatório ter sido atingido de raspão por um estilhaço quando, embora pequeno, se encontra ainda na minha perna. Mistério."

... Meu querido capitão, estou de acordo contigo: pode-se aldabrar um relatório (o que não é o caso), pode-se transformar num relim numa cartaz de propaganda ou de fanfarronice, mais difícil é descrever a eternidades desses segundos e minutos quando se cai debaixo de fogo, numa traiçoeira emboscada, no preciso momento em que voas para o chão e o teu único escudo de proteção é a pela do teu corpo e o camuflado por cima do osso...

Esse estillhaço na perna vais levá-lço contigo para o Olimpo dos heróis... mais as tuas "memórias de capitão miliciano"... São marcas indeléveis que nem tu nem ninguém conseguirão apagar...

Entretanto, aproveito para te meter uma cunha: com tempo e vagar, e enquanto vais recuperando das tuas mazelas, conta-nos lá como foste parar à Guiné, capitão miliciano a comandar a valorosa CART 1746, primeiro em Bissorã e depois no Xime...

Um Alfa Bravo. Luis

Anónimo disse...

António Vaz
22:13

Caro Luís

Ainda bem que me enviaste a tua mensagem!

Na situação em que estou tudo o que seja agradável é muito bom e já estava a estranhar não haver publicação no Blog. Não por que valesse grande novidade mas porque para mim foi importante.

Julgo que a Ponta Coli deixou marcas nas várias Unidades que por ali passaram. Sem fazer choradinho, hoje estou mais frágil porque decidi sair à rua com a minha mulher. e acabei por desmaiar durante segundos, não tão longos como o da emboscada, mas isso deixou-me pouco satisfeito, como deves calcular.

Como não sei quando serei operado ainda não decidi ir ao nosso almoço. Se tudo correr bem e arranjar boleia gostava lá ir, depois direi.

Desculpa esta conversa toda mas foi isto que me apeteceu dizer.

Ainda sobre a Op Pedra Rija: um dia contarei a minha verdade mas gostaria de saber se a Companhia 2405 fez relatório e se esse relatório é do vosso conhecimento porquanto este relatório que me enviaste, parece-me ter sido redigido que não por mim, não por motivos estranhos e sibilinos mas poque não me lembro de o ter feito.

O relatòrio que fiz não o guardei porque estava a dias de marcharmos para Bissau e a História da Unidade já estava entregue.

A minha chegada à Guiné e os primeiro 6 meses em Bissorã um dia receberás.

Um abraço e um obrigado do António Vaz
António Vaz

Luís Graça disse...

... António, vamos rezar a Deus, a Alá e a todos os bons irãs para que estejas operacional no dia 8 de junho. Arranja-se boleia, seguramente. Oxalá, estejas em boa forma nessa altura. Já não falta muito. Mas o mais importante é a tua saúde!... Luis

Hélder Valério disse...

Caro camarada António Vaz

Mais um relato impressionante de episódios que hoje serão difíceis de compreender, se não forem mesmo colocados em dúvida, por muito jovem.

Sem dúvida que nessas circunstâncias cada minuto parece ter muito mais de 60 segundos, tal como referes.

Falas também, ainda que rapidamente, de forma bastante elogiosa sobre o "Alferes Médico David Payne". Já não és o primeiro a fazê-lo e deixa-me confirmar-te que o David já era assim antes da guerra, filho do 'médico do povo' em Vila Franca de Xira.

Quanto à saúde, cuida-te, amigo.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

"Meu capitão" camarada A.Vaz

Relatos como este é o que verdadeiramente faz este blog diferente de tantos outros.
Percebi que tens um problema de saúde..desejo rápidas melhoras.
Temos em comum um estilhaço numa perna,não sei qual é a localização,mas normalmente e contrariamente ao que muitos pensam,não é nada fácil a sua extracção.
A mim só me tem dado "chatices" nos aeroportos...é "apitos e mais apitos"..tento explicar e.. lá vou eu para o reservado passando por um perigoso terrorista.
Passei a levar um rx para explicar o porquê dos "apitos"..

Um grande alfa bravo e rápidas melhoras

C.Martins