terça-feira, 13 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11936: Bom ou mau tempo na bolanha (26): Os amigos regressados do Vietname (Tony Borié)

Vigésimo sexto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Seguindo o rumo de alguns textos anteriores, o Cifra, entendeu que os leitores, deviam ter conhecimento, desta história, que aconteceu, já o Cifra era emigrado, já não se chamava Cifra, mas única e simplesmente Tony, exercia a sua profissão, numa multinacional no estado de Nova Jersey, nos Estados Unidos, e tem algo a ver com todos nós os antigos combatentes, portanto cá vai.

Eram jovens, que regressaram da guerra do Vietname. A sua maior parte, eram pessoas, com muito pouca instrução escolar, alguns, eram oriundos dos estados do centro norte, e alistavam-se querendo ir à aventura, pois pertenciam a famílias em que os pais e avós, nunca tiveram oportunidade de ver o mar. Outros eram emigrantes oriundos da América do sul, e com poucas oportunidades de emprego, devido a viverem em zonas rurais, junto à fronteira sul dos Estados Unidos, e viam no alistamento uma oportunidade, com algum futuro. Alguns, nunca tiveram um emprego, antes do alistamento, pois viviam em subúrbios de grandes zonas metropolitanas, sobrevivendo de alguns biscates, e com alguma conexão a grupos criminosos, e viram na ida para a guerra, a maneira de cumprirem penas de prisão, a que estavam sujeitos, e ao regressarem serem cidadãos livres. Esses jovens, alguns eram pessoas revoltadas, pelo modo de vida que levaram antes do alistamento, e traumatizadas, pelo período que passaram no Vietname.

Quando regressavam de uma comissão, na guerra do Vietname, tinham praticamente duas hipóteses, ou iam cumprir outra comissão na guerra, sobreviviam e seguiam a carreira militar, ou desmoralizados pela experiência da guerra, abandonavam o serviço militar e iam trabalhar em estações de serviço, enchendo tanques de gasolina, ou qualquer outro trabalho menor, que não envolvesse muita responsabilidade. Quase sempre andavam sobre influência, não aceitavam que lhe falassem, mais do que três ou quatro palavras seguidas, era quase impossível dar-lhes treino e colocarem-nos a operarem uma máquina. Como o Tony, os compreendia!

A multinacional, como vendia algum do seu produto a agências do governo, não podia negar trabalho a esses jovens, sempre que eram necessários novos empregados, esses jovens eram os preferidos.

Três desses jovens, vieram trabalhar na multinacional. Ao fim de umas horas, a pessoa que estava responsável de os colocar no trabalho de adaptação, dirigiu-se ao departamento de pessoal, dizendo que era impossível comunicar-se com eles, o melhor seria mandá-los já embora, antes que criassem mais problemas. O Tony, que também era representante do sindicato, pediu autorização para ver as fichas que eles tinham preenchido e depois de analisar as respectivas fichas, pediu uns dias de adaptação e que os ia levar para o departamento dos mecânicos, onde era preciso uma limpeza e pintura das paredes, a gerência concordou. A linguagem que eles falavam e os sentimentos que tinham eram parecidos aos do Tony, quando regressou a Portugal, vindo da guerra de África.

Em meia dúzia de palavras, explicou-lhes o trabalho. Deu- lhes liberdade e responsabilidade.

No primeiro dia, quase não fizeram nada, além de fumarem constantemente, tabaco que não se vendia em tabacarias públicas, e quase sempre sentados, esperavam pela hora do intervalo, para virem tomar café negro, sem açúcar. No segundo dia, um chegou bastante tarde, os outros dois chegaram a horas, mas só apareceram no trabalho quando o outro chegou. Não fizeram praticamente nada, a limpeza e a pintura, mal tinha começado. No terceiro dia vieram todos a horas, mas só apareceram no local de trabalho passado quase uma hora. Nesse terceiro dia, ao final da tarde estavam sentados ao sol, fumando, junto da linha de caminho de ferro que existia dentro da multinacional.

O Tony, começou a ser pressionado pela gerência da multinacional, que não queria maus exemplos. Deste modo, o Tony dirigiu-se ao grupo quando se encontravam ao sol, fumando, e perguntou:
- Podem ouvir-me por um minuto?

Não obtendo resposta, explicou, mais ou menos isto:
- Coloquei a minha palavra por vocês, estou a ser motivo de enxovalho em toda a companhia, e se querem continuar a encher tanques de gasolina, numa estação de serviço, e quase sempre sobre influência, pelo resto da vossa vida, pois são livres de o fazer, mas pensem só um pouco, que estão neste momento a ter uma oportunidade, quase única, de serem de novo admitidos pela sociedade que voz despreza, mas em que infelizmente vivemos e onde estamos todos inseridos.

Todas estas palavras foram ditas com algum carinho, e terminou dizendo:
- Também sou veterano de uma guerra, também tive o mesmo problema com a sociedade, que não me admitia e me discriminava, só que no meu País, não havia trabalho, nem oportunidades para todas as pessoas, especialmente os pobres, pois existia um sistema de protecção para as pessoas com mais recursos, e oxalá que vocês nunca passem por essa situação, por favor agarrem esta oportunidade.

Não esperou por qualquer resposta, não sabe se ouviram ou não, as suas palavras. Nos próximos quatro dias, aos poucos foram movimentando-se, algumas vezes zangados uns com os outros, mas foram limpando e pintando todo o departamento dos mecânicos. Andavam numa azáfama, a subir e descer escadas, alguns, com o cigarro na boca, todos pintados na cara e nos braços, mas sempre barafustando uns com os outros. Terminaram o trabalho, não sendo preciso ninguém mais lhes dirigir a palavra. Desses três jovens, um, o Dallas, ficou a trabalhar como mecânico, assistindo a classes na escola à noite, juntamente com o Tony. O outro, o Montana, quando houve uma vaga nos quadros superiores, aplicou e foi admitido, portanto foi para encarregado de um departamento. E o terceiro, o Colorado, trabalhava, como operador de um forno de fundição de alumínio, estudava de noite, aplicou e submeteu-se a um concurso, sendo admitido como operador de locomotivas numa companhia dos caminhos de ferro de Nova Jersey, pois o comboio passava pela multinacional, e ele passava quase todo o tempo apreciando o maquinista em manobras, com a colocação dos vagões no plataforma de desembarque.

O Tony, recorda com saudade, quando por eles passava e lhe diziam:
- Tony, vai um “cigarrito especial”?

Ao que o Tony, respondia:
 - Não. 

E eles, logo lhe chamavam:
- “Chicken!..., Quá, Quá, Quá”! - Imitando uma galinha.

Tony Borie,
Maio de 2013

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11924: Bom ou mau tempo na bolanha (25): O silêncio do Marafado (Toni Borié)

3 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

Tony meu Camarada
Parabéns pela tua narrativa.
Fizeste exactamente o que gostavas que te fizessem a ti. Felizmente que mesmo assim tiveste uma administração de empresa que te deu crédito e ainda bem,assim todos saíram a ganhar e tu hoje tens uma bela estória para contar e orgulhar.
Um abraço
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

António (Tony) Borié

Gostei dessa pincelada de análise social dos States antes de "eles" se terem alistado para irem para o Vietnam (voluntários - porque não havia serviço militar obrigatório - tentando sair da merda em que viviam ou safar-se das penas que tinham que cumprir). É que há muita boa gente aqui na nossa terra que não sabe disso e se lhes é dito, não acreditam e não entendem.
Claro que também gostei do paralelo que fazes com a "nossa" guerra. Há uns 30 anos, estando em serviço em Washington, passeando a pé com dois amigos, dei comigo a chorar sem controlo ao observar o "espectáculo" da Vietnam Parade. Pareciam dos nossos.
Já agora, desculpa uma nota sobre os "americanismos" de quem vive, pensa e fala o inglês/americano longe de Portugal: Em vez de "aplicou" (duas vezes no texto, aportuguesamento de "applied"/application), escreve "requereu" ou "apresentou requerimento"...
Abraços
Alberto Branquinho

Hélder Valério disse...

"Quá, quá, quá!, galinha?

Seria dos 'cigarritos especiais'?
Parece que têm esse condão de 'fazer rir', de entrar em diálogo com os 'gafanhotos azuis gigantes', oiço dizer....

Mas, caro Tony, gostei deste "bom tempo na bolanha" já que voltas a pincelar as tuas recordações com o enquadramento social apropriado, fazes a 'ponte' com a tua/nossa experiência da Guiné e, neste caso, felizmente, obtiveste as vitórias que, acho eu, te devem encher de orgulho.

Abraço
Hélder S.