sábado, 28 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12095: Bom ou mau tempo na bolanha (32): A importância da família na guerra (Tony Borié)

Trigésimo segundo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.




Companheiros,
Este texto é uma homenagem a todos os que por lá andaram mas não tinham família, eram combatentes, a maior parte do tempo solitários e quase não recebiam notícias. Cá vai.

Para os militares que estavam lá, no tal cenário de guerra, os momentos mais felizes, eram sem qualquer dúvida, quando recebiam o correio. O furriel Honório, conhecido por “Pardal”, quando rasava com a avioneta do correio, a “mangueira do Setúbal”, a tal árvore de grande porte, que existia no aquartelamento, e fazia os macacos e periquitos fazerem a algazarra do costume, sabia que era bem vindo, pois ia dar alguma alegria aos militares.

Depois de receberem o correio, todos se retiravam, cada qual procurando o local mais sossegado e distante dos outros, para melhor se concentrarem no resumo das suas cartas. Alguns choravam, riam, tremiam de emoção, limpavam a cara e os olhos com as costas da mão, os que liam sentados, quando se levantavam, esticavam os braços na direcção do céu, fechavam os olhos por momentos, e diziam algumas palavras baixinho, ficavam quase todos, depois de lerem as notícias da família, com outra disposição e com um aspecto de quem não estava num cenário perigoso, onde havia guerra.

O Curvas, alto e refilão, não recebia correio. Durante os dois anos em que esteve na companhia do Cifra, nunca recebeu uma carta, pois não tinha família, a sua mãe abandonou-o em criança, e como já foi dito por diversas vezes, andava “na vida”, mas na sua mente, isso não fazia qualquer diferença, pois não sabia o que eram as notícias dos seus, da sua família, fossem elas boas ou más. Até ficava admirado com tanta alegria de alguns ao lerem as cartas, e às vezes dizia:
 - O que se passa com aquele, está tão contente? Não vai dormir hoje à “pildra”? Roubou algum turista, com a carteira com dollares? A “garina” fez boa “massa”? Descobriu uma nova rua, com movimento e turistas, que passa a ser a sua zona de “acção”? Conseguiu fugir, e iludir a polícia? Encontrou algumas sandes de fiambre ou presunto em bom estado, no caixote do lixo, daquele restaurante de luxo? Não foi atropelado, quando atravessou a rua, a fugir à polícia? Tem uma navalha nova, de “ponta e mola”? O sindicato, não lhe cobrou, pelo aluguer da caixa de engraxar sapatos? Encontrou umas botas em bom estado e que lhe servem, no caixote do lixo? Encontrou uma porta aberta, onde pode dormir num vão de escadas? Esta noite não chove e pode dormir naquele banco, que por sinal está desocupado? Vai haver festa de São João, naquela rua, e pode pedir e roubar comida? O amigo saiu da cadeia, e traz nova informação de como se deve roubar uma carteira, ainda com mais habilidade? Aquela senhora rica, naquela rua, veio cá fora pôr a malga do leite para o gato, e pode lá ir roubá-lo? Aquele velho que ocupava aquele lugar, junto ao banco do jardim, que é um lugar privilegiado, pois até tem luz daquele candeeiro, morreu à fome e ao frio, e deixou livre todas aquelas folhas de cartão, onde ele se pode ir abrigar, nos dias de maior frio ou chuva?

Enfim, um sem número de frases, próprias de quem viveu sempre sem ninguém que lhe desse um carinho, lhe perguntasse se tinha dores, ou lhe limpasse o ranho do nariz.

O Cifra, quando ele se encontrava em momentos de alguma tristeza, dizia-lhe que as outras pessoas tinham família e que era bom sentir o seu apoio e ter notícias de alguém, para se desabafar, contar o que ia na alma. Ele ouvia calado, limpava uma lágrima e dizia:
- Vamos roubar o frasco álcool ao Pastilhas, estou com sede.

Tony Borie, 2013.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12036: Bom ou mau tempo na bolanha (31): O computador na guerra (Toni Borié)

1 comentário:

Anónimo disse...

Amigo Tony. Conheço um caso igual e por estranho que pareça, era um rapaz do mais tristonho que conheci, embora fosse palhaço de circo e mesmo na Guiné divertia-nos, quando nos via tristes. Por não ter correio, consegui uma vez, que alguém lhe escrevesse e leu...leu...leu tantas vezes esse bate-estradas. Um abraço do
Veríssimo Ferreira