terça-feira, 24 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12080: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (11): Djassi, o ordenança

1. Em mensagem do dia 21 de Setembro de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense. CSJD/QG/CTIG, 1973/74), ao contrário do que costuma fazer, fala-nos muito a sério de um caso que se multiplicou por muitos, o abandono puro e simples dos nossos camaradas Guineenses.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné) 


11 - Djassi, o ordenança

Como já referi em post anterior, prestei serviço na CSJD/QG/CTIG (Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel General do Comando Territorial Independente da Guiné) situado nas instalações militares de Santa Luzia.

Há quem, neste blogue, confunda o QG/CTIG com o QG da Amura. Aí estava instalado o QG/CCFAG (Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné. Isto é: O QG/CTIG era o Quartel General do Exército, enquanto o QG/CCFAG era o Quartel General de todas as Forças Armadas em serviço naquele território.

No tempo em que por ali andei (1973/74), o primeiro foi comandado pelo Brigadeiro Alberto da Silva Banazol e depois pelo Brigadeiro Galvão de Figueiredo; o segundo pelo General Spínola e depois pelo General Bettencourt Rodrigues.

Em Agosto de 1974 na CSJD tínhamos um ordenança, o Djassi, soldado nativo que aparentava ter já ultrapassado os 30 anos de idade e que, enquanto operacional, foi gravemente ferido, tendo-lhe sido retirado um pulmão e integrado nos serviços auxiliares, sendo ali colocado para efectuar pequenas tarefas relacionados com aquele Serviço.

O Djassi apresentava invariavelmente um semblante carregado e raramente esboçava qualquer sorriso, denotando, porventura, algum sofrimento pelo seu débil estado de saúde, mas era um indivíduo afável, educado, disciplinado e prestável. Dava gosto lidar com ele. Nunca o vi aceitar com azedume qualquer tarefa oficial ou particular que se lhe solicitasse.

Nessa altura, Agosto de 1974, já muitas Companhias tinham abandonado os seus quartéis no mato e regressado à Metrópole, e outras encontravam-se estacionadas em Bissau a aguardar igual destino.
Por essa razão, estavamos assoberbados com papelada decorrente do "fecho de contas" daquelas Companhias o que indiciava que nós, os do "ar condicionado" seríamos talvez os últimos a "abandonar o barco".
A situação era confusa. Sabíamos que iríamos abandonar a Guiné, mas não sabíamos como, nem se o faríamos definitivamente, nem quando.

Começou a correr a informação de que a partir de finais de Agosto não seriam autorizadas férias a ninguém.
Ora, eu e o meu camarada Silva do Barreiro, nessa altura já os mais "velhinhos" da CSJD com excepção do Ten Cor e do Major, estávamos há já mais de um ano sem gozar férias e começamos logo a tratar da papelada para o efeito.
Lá viemos de férias em meados de Agosto e, entretanto, o "êxodo" continuava e com maior cadência.
Findas as férias, regressamos à Guiné exactamente no dia em que foi reconhecida a independência por parte de Portugal - 12 de Setembro de 1974.

As patrulhas na cidade eram efectuadas pela PM conjuntamente com elementos do PAIGC, muitos estabelecimentos tinham encerrado, a tropa que ainda restava era composta de "piriquitos" oriundos das Companhias mais recentemente chegadas à Guiné, na CSJD só o Ten Cor e o Major não tinham ainda sido substituídos, os bens escasseavam, na messe de Sargentos só se encontravam "piriquitos", etc., etc.. Ou seja: eu e o Silva estávamos completamente deslocados e se não tivéssemos a estúpida ideia de meter férias naquela altura, teríamos certamente regressado definitivamente, sem necessidade de desembolsar os "pesos" que nos custou a viagem.

Logo tratamos de, junto do Ten Cor, dar conhecimento da nossa "triste" situação e efectuar o "choradinho" adequado.
Fomos então incumbidos de queimar todo o arquivo morto da CSJD que ocupava totalmente uma daquelas pequenas vivendas tipo colonial e que era composto por processos instaurados desde o tempo em que ainda não havia guerra na "Província", após o que poderíamos "meter os papéis" para regressar à Metrópole.

A tarefa impunha alguma responsabilidade e cuidado pois não podia ficar qualquer fracção de papel por arder o que, nos processos mais volumosos, nos obrigava quase a arrancar folha por folha.
Ali estivemos quinze dias a queimar papel que, quando amontoado, nos obrigava a remexê-lo com um pau para que não se apagasse e, no fim de cada dia, só abandonávamos o local quando existissem apenas cinzas.
De quando em vez, um ou outro processo despertava a nossa curiosidade pelos objectos de prova que continha e cheguei mesmo à tentação de desviar alguns, mas o desejo de regressar a casa depressa e bem, falava mais alto.

A nossa vontade em terminar a tarefa o mais rapidamente possível era tanta que logo que o sol dava sinais de vida, lá íamos nós p'ra "incineradora" e um dia tivemos a sorte de nos cruzarmos com o Ten Cor que, talvez sensibilizado pela nossa madrugadora actividade, nos mandou chamar para que "metêssemos a papelada para bazar dali".

A tarefa ainda não estava terminada, mas o Ten Cor, face à nossa proficiência e empenho, achou por bem mandar para lá alguém mais "piriquito" e nós lá regressamos à Metrópole quinze dias depois de lá termos vindo no final das férias.

E foi numa deslocação a Bissau para, no mercado negro, "despachar" os últimos pesos que tinha comigo (na messe de sargentos de Santa Luzia já nada havia para comprar) que encontrei o Djassi, já civil e que me interpelou de uma maneira agressiva como nunca imaginei que fosse capaz, confrontando-me com a situação para a qual o Exército Português o tinha atirado e dando-me a entender que, naquele momento, para ele, eu era o representante daquele Exército e exigia-me explicações que eu não podia dar.

- Furriel, eu fui ensinado a respeitar a bandeira portuguesa desde que nasci, andei muitos anos no mato a lutar por Portugal, fui ferido várias vezes, fiquei sem um pulmão, sou português, sempre me considerei português!
- E agora, dão-me dinheiro e vão-se todos embora?! - O que vai ser de mim?! - O que é que o PAIGC vai fazer comigo?!

Naquele momento senti-me envergonhado por ainda pertencer ao Exército que abandonara à sua sorte o exemplar militar português que era o Djassi.
Emudeci e não me recordo de lhe ter dirigido grandes palavras de conforto para além de um lacónico: "Calma, vai correr tudo bem".

Cabisbaixo e algo deprimido retirei-me do local, mas confesso que, minutos depois, o egoísmo veio ao de cima e já só pensava nas "voltas" a dar no sentido de embarcar com destino à Metrópole.

Quando, tempos depois, já na Metrópole, comecei a ouvir os noticiários sobre os fuzilamentos de antigos militares portugueses da Guiné, muitas vezes me veio à memória (e continua a vir quando se fala no assunto) o exemplar militar Djassi e questiono-me sobre o destino que teria tido e se os capitães de Abril (na altura no poder) não teriam podido fazer mais por aqueles que combateram ao nosso lado.

Há muito que tinha em mente falar sobre o Djassi, ordenança da CSJD/QG/CTIG, mas como tenho o hábito de salpicar a minha "prosa" com tiradas pseudo-humorísticas (está-me no sangue), tenho alguma dificuldade de escrita para assuntos mais sérios como este. Dispus-me agora a fazê-lo, reconhecendo, no entanto, que este episódio era merecedor de uma escrita mais adequada ao fim a que me propus:

Prestar uma sentida homenagem a todos os "Djassis" da Guiné-Bissau.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11466: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (10): Bombeiro (in)voluntário e outras histórias

5 comentários:

armando pires disse...

Camarada Abílio Magro, esteja o Djassi onde estiver, a esta hora está a bater-lhe uma justa e merecida palada.
armando pires

Anónimo disse...

Por certo este texto louva o Djassi e todos os "Djassi" abandonados na Guiné depois de terem dado o seu contributo militar sob a bandeira portuguesa.
BS

Luís Graça disse...

Obrigado, Abílio, por trazeres a história, pungente, do Djassi ao nosso conhecimento.

Ainda não n os conhecemos pessoalmente, mas pela tua escrita tira-se a tua... pinta.

Confesso que não gostaria de estar na tua pele, nem na pele dos nossos camaradas que foram os "últimos guerreiros do império", como tu... Há uma profunda honetsaidade intelectuial e coragem moral, ao reviveres e publicares essa história, quase 40 anos depois...

Na lotaria (?) da seleção e mobilização para o TO da Guiné, coube-me uma companhia africana, "novinha em folha", em meados de 1969... Vi-me embora, em março de 1971, em, rendição individual, e os pobres dos nossos soldados, do recrutamento local, lá ficaram, a lutar e a morrer, até ao fim...

Não me imagino na tua situação, em setembro de 1974... Por pudor ou má consciência, talvez eu não tivesse a coragem de a reviver aqui, neste espaço de partilha de memórias e de emoções. Tu tiveste a frontalidade de o fazer, e és credor da minha admiração e apreço.

Por detrás de uma farda, há sempre um homem. E eu acho que posso generalizar para a grande maioria dos camaradas que eu conheci, e que fizeram, comigo, a guerra na Guiné. Éramos homens, não éramos robôs.

Luís Graça disse...

Já agora, meu caro Abílio... não seria possível, da tua parte, falar dos "prcoessos", disciplinares e judiciais, que andaste a queimar, em Bissau, em setembro de 1974, antes de regressar a casa ?

Tenho alguma curiosidade em saber algo mais sobre os "casos" que chegavam à tua direção de serviço, CSJD/QG/CTIG (Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel General do Comando Territorial Independente da Guiné), situada nas instalações militares de Santa Luzia (e não Amura, como muito bem esclareces)...

Não precisas de dar pormenores, podes falar por alto, daquilo que te chegava ao conhecimento...

Um abração para ti e para o "mano velho". Luis

Abílio Magro disse...

Camarada Luis Graça:
Agradeço os teus comentários e recordo-te que, na CSJD, eu estava na secção das "doenças" onde eram tratados os processos referentes a doentes, feridos e mortos. Os disciplinares e judiciais eram noutra secção e não me recordo de alguma vez ouvir o meu camarada Costa falar de algum pormenor sobre os mesmos (talvez por obrigação de segredo de justiça), nem a eles eu tinha acesso.
Aqueles que andei a queimar eram, efectivamente, judiciais, mas o trabalho, debaixo de sol tórrido e junto a um monte de papelada a arder, não nos dava grande vontade para leituras demoradas e, como o local da "incineradora" era ao ar livre com vistas para a entrada do QG, não era muito prudente dedicarmo-nos à "coscuvilhice".
No entanto, não deixei de dar umas olhadelas de soslaio a um ou outro processo mais volumoso que eram, principalmente, referentes a "ajustes de contas" entre camaradas e dos quais pouco ou nada vi a não ser um ou outro punhal.
Quanto aos processos dos doentes, feridos e mortos, penso falar mais tarde, ainda que correndo o risco de trocar tudo, já que eram muitos e já lá vão mais de 40 anos. "Verá-se"
Ainda em relação ao estimado Djassi, ocorre-me outra questão (deixem-me usar o termo) "badalhoca" que tem a ver com o dinheiro que foi entregue à "fartaza" àqueles militares e que quero deixar no ar para discussão por quem melhor sabe da "poda": aquele dinheiro não tinha qualquer valor fora da Guiné como é sabido.
Aquilo não teria sido só ligar o duplicador e "tomem lá meus heróis, quem é amigo, quem é?"
Abraço