sábado, 24 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13190: Bom ou mau tempo na bolanha (57): Duas personagens (Tony Borié)

Quinquagésimo sétimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.


Companheiros, com a ajuda do “nosso Blogue”, que o “comandante Luis” criou e, nós todos vamos alimentando com as nossas memórias, os nossos comentários, as nossas críticas na descoberta da verdade e, de vez em quando, a “descoberta” de mais um companheiro que também por lá andou e agora se deu a conhecer.

Neste contexto, já lá vai algum tempo que vamos falando quase semanalmente, no nosso caso, com a ajuda do Carlos Vinhal que nos vai corrigindo e, temos partilhado a nossa vivência naquele conflito e não só, às vezes saem algumas conversas que não têm nada, ou quase nada, a ver com a guerra lá vivida na Guiné, mas a intenção foi quase sempre partilhar os momentos maus, menos maus, bons, menos bons e, às vezes, fazer-vos esquecer por alguns momentos o conflito por que passámos e, agora passado meio século, “por enquanto ainda respirando, claro, com a ajuda de alguma medicina de manutenção diária, que me faz respirar e andar normalmente, dando-me muito tempo livre, que às vezes utilizo revendo alguma informação, recuperada e partilhada por familiares de segunda geração, onde vou manuseando com algum cuidado, papeis e fotos antigas, além de vos contar o que por aqui vai passando, pois a memória continua “à solta”, encontra tudo e, hoje essa mesma memória “esbarrou-se”, perdoem o termo, com o “Sidney Poitier”, e decidi colocar estas duas personagens, que são a mesma pessoa, nas minhas memórias daquele conflito, porque parecendo quase mentira, aconteceram e, entendi que os meus companheiros deviam saber, pois às vezes sucedem coisas que não parecem lá muito normais, mas vou colocar esta conversa com todos vocês, dentro daquele ditado popular em que o povo diz, “como o mundo é pequeno”.

Isto andou tudo dentro de mim, como se fosse um “segredo”, pois na altura em que aconteceu, “humilhou-me”, mas não faz mais sentido continuar calado, pois nesta idade, nunca se sabe quando vem o dia de amanhã, ou se até por acaso existe amanhã, portanto vou “desabafar”, com todos vocês, que considero uma segunda família, vou contar-vos tudo, seguindo a minha memória, colocando-me no papel de como era conhecido lá em Mansoa naquele tempo, contando como tudo se passou, embora a linguagem talvez fosse outra e a conversação também talvez fosse diferente, mas passou-se mais ou menos assim.


A primeira personagem era um africano, ainda jovem, natural da zona onde o então Cifra estava estacionado, que era Mansoa, creio que era o único funcionário, ou um dos funcionários do que se dizia que era uma espécie de câmara municipal da referida vila, onde por acaso, até lhe emitiu um bilhete de identidade em seu nome, do qual vos mostro uma cópia, com uma fotografia tirada naquele tempo, com a roupa emprestada por um alferes miliciano do Agrupamento, onde encobri as impressões digitais e outros dados a que não era muito conveniente dar publicidade, mas ainda lá está: residência “Mansoa”, no lugar de “sinais particulares”: “tatuagem patriótica no braço direito”, que me tem acompanhado pela vida fora, onde mais abaixo, dizia: “Secção Ultramarina da Guiné do Arquivo de Identificação, 15 de Fevereiro de 1966”, portanto no princípio do ano do meu regresso, que creio que era igual aos que eram emitidos aos naturais, que o requeriam para poderem transitar no território, sem serem incomodados pelos militares.


O tal africano falava e escrevia português, educado na comunicação com os militares, convivia com o Cifra na sede do clube de futebol local, no qual era, se não estou em erro, membro da referida direcção, sabia discutir qualquer tema onde entrasse desporto e mesmo a História de Portugal. Opinava sempre com bom senso e com uma calma, como se tivesse mais idade do que aparentava. Fixava o nome dos militares que frequentavam a sede do clube de futebol, e não só, pois a quase todos tratava pelo nome.

Parecia incrível, todas estas virtudes, num homem natural desta vila, pois dava a entender que nunca tinha saído da província, mas ele certo dia disse ao Cifra:
- Estudei numa escola católica, lá na capital, mas sou natural daqui, desta região, onde me sinto muito bem.

Era o que se podia dizer, “um bom companheiro”.

O Cifra, deixou de o ver no clube e perguntou ao rapaz que servia no bar:
- Onde é que se meteu o “Sidney Poitier”?

Era assim que o Cifra e os outros militares lhe chamavam por ser parecido com um actor americano, que na altura protagonizava alguns filmes de cowboys, que os militares viam, nessa mesma sede.
O rapaz, responde ao Cifra, com uma cara, mostrando alguma tristeza:
- Como posso eu saber, Cifra. Ninguém sabe, desapareceu. Talvez o pessoal mau, o levou pela noite escura.

E tinha desaparecido.

E com ele desapareceu também quase todo o arquivo dos residentes na área, que até aquela data se tinham registado na câmara da vila e, se foi ele ou não, nunca ninguém soube, pelo menos enquanto o Cifra por lá viveu.

Os anos passaram, e eis a segunda personagem, agora falando eu, na minha pessoa.


Terminei a minha comissão de serviço militar na então Província da Guiné, regressei a Portugal, emigrei para os Estados Unidos e, como funcionário da multinacional onde trabalhei por mais de trinta anos, logo nos primeiros anos veio trabalhar um homem para um departamento diferente de onde eu exercia as minhas funções, que nas feições era parecido com o tal amigo “Sidney Poitier”, mas usava o cabelo grande, que formava uma pequena “bola” à volta da cabeça, barba um pouco crescida, mas muito bem aparada, a quem nós chamávamos “Jean”, pois nunca consegui esquecer o seu nome.

Falava muito bem inglês, com sotaque da Inglaterra, confundia-se muito bem com os diversos emigrantes que também lá trabalhavam, oriundos do Haiti, com quem por diversas vezes o ouvia falar e a conviver, na língua materna desses emigrantes, que era o francês.

Na altura do lanche, por vezes o pessoal estava junto e eu já andava desconfiado, estava mesmo quase para o questionar, mas só me apercebi, quando vi o suposto, “Sidney Poitier” entrar, sentando-se em frente a mim, abriu um envelope e começou a ler uma carta. Colocou o envelope, mesmo na minha frente, que tinha colados diversos selos dos correios da Guiné-Bissau, como fosse um País independente, onde se destacava a figura do líder Amílcar Cabral. Creio que os selos não tinham o carimbo de nenhuma estação de correio de qualquer País.
Muito admirado, olhei-o de frente e, agora sim, questionei-o.

O suposto, “Sidney Poitier”, a quem nós chamávamos “Jean”, talvez tivesse feito tudo isto de propósito, provocando-me ou talvez para demonstrar a vitória na sua luta, respondeu-me naquele português, com sotaque de África, que todos nós conhecemos, com algumas palavras em inglês pelo meio e, que eu logo reconheci, com muita gentileza, aliás como sempre falava, mais ou menos com estas palavras, talvez não fossem iguais, mas o conteúdo de toda a conversação, era este:
- Eu reconheci-te, és a mesma pessoa que era o militar do País invasor. Não disse nada, para não levantar problemas aqui neste local de trabalho, pois como sabes, eu convivia com os militares, vigiava-vos, sabia quase tudo de vocês e, antes que os militares me prendessem e matassem, tive que me retirar de Mansoa, fui servir o meu movimento de libertação, residindo num País vizinho. Passei a ser inimigo declarado, ambos temos os nossos ideais e, é por eles que lutamos. Peço-te por favor que mantenhas o silêncio de quem eu sou, que eu farei o mesmo a teu respeito. Como estás a ver pelos selos deste envelope, o meu País já é independente há alguns anos e, os militares portugueses são uns intrusos no meu País, como todo o mundo sabe, só menos Portugal. Tenho muito orgulho em fazer parte do movimento de libertação do meu País, que por enquanto governa em algumas zonas que já são consideradas livres, estou aqui para estudar, estou quase a acabar os meus estudos e, em breve vou regressar a África, esperando que os intrusos saiam definitivamente, para que possamos governar o nosso País em paz.

Foram mais ou menos estas palavras, mas de vez em quando parava de falar e olhava-me, as suas palavras deixavam de ser gentis, falava-me com alguma arrogância, demonstrando mesmo alguma intimidação. Claro que eu fiquei embaraçado e um pouco humilhado com todas estas palavras, para mais num local onde mais de cinquenta por cento dos empregados eram afro-americanos. Com toda a certeza que lhe devia ter respondido com algumas palavras amargas, mencionando nomes e adjectivos, que talvez não fossem muito próprias para o encorajar na sua luta, mas era o sentimento que tinha eu e, muitos dos combatentes que por lá tinham vivido dois anos de sofrimento, vendo morrer muitos companheiros naquele conflito em África.


Passámos a conversar mais algumas vezes, mas poucas, pois da parte dele mostrava sempre uma pequena indiferença para comigo, podia mesmo dizer que a minha presença não lhe era agradável. Uma vez lembrei, entre outras coisas, as raparigas que eram minhas amigas, na altura em que estive em Mansoa, e que tinham passado para a guerrilha, que ele afinal também conhecia, mas as suas palavras, além de serem proferidas com educação, não escondiam alguma fúria.

O “Jean”, trabalhava como ajudante na área onde se processava o alumínio em pó, que era moído juntamente com um lubrificante que o transformava em pasta, num departamento que muitos diziam ser um trabalho de “brancos”, pois a cor do material, “pintava” quem manuseava aquele produto de branco.

Durante o pouco tempo que lá trabalhou, passava muitas horas a ler e a estudar, procurava o silêncio, falava muito pouco, mas sempre com educação. Nunca soube por que razão, mas coincidência ou não, passadas umas semanas de nos conhecermos de novo, largou o emprego e nunca mais o vi.

Tudo isto aconteceu talvez por altura dos anos de 1972 ou 1973, não me lembro ao certo e, como costuma dizer o companheiro Veríssimo:  “Pronto, está dito, está dito”.

Tony Borie, Maio de 2014
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13158: Bom ou mau tempo na bolanha (56): Las Vegas, Las Vegas (Tony Borié)

1 comentário:

Luís Graça disse...

SAydney Poitier... o primeiro ator negro, afro-americano, da história do cinema a receber o Óscar de melhor ator principal pelo seu desempenho no fime "Os Lírios do Campo" (tórtulo originbal: Lilies of the Field) em 1963. Lembro-me bem do seu rosto nos nossos écrãs... Era o o "negro bom"...

E tudo isto no tempo em que gente (os jovens, a pensar já na guerra do Ultramar...) cantarolava, por cá:

"Matam-se pretos na Amé r... i...cá".

Na realidade, tens razão, Toni, o Mundo é Pequeno!...