Quinquagésimo sétimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.
Companheiros, com a ajuda do “nosso Blogue”, que o “comandante
Luis” criou e, nós todos vamos alimentando com as nossas memórias, os
nossos comentários, as nossas críticas na descoberta da verdade e, de
vez em quando, a “descoberta” de mais um companheiro que também
por lá andou e agora se deu a conhecer.
Neste contexto, já lá vai algum tempo que vamos falando quase
semanalmente, no nosso caso, com a ajuda do Carlos Vinhal que nos vai
corrigindo e, temos partilhado a nossa vivência naquele conflito e não só,
às vezes saem algumas conversas que não têm nada, ou quase nada, a
ver com a guerra lá vivida na Guiné, mas a intenção foi quase sempre
partilhar os momentos maus, menos maus, bons, menos bons e, às vezes, fazer-vos esquecer por alguns momentos o conflito por que passámos e,
agora passado meio século, “por enquanto ainda respirando, claro,
com a ajuda de alguma medicina de manutenção diária, que me faz
respirar e andar normalmente, dando-me muito tempo livre, que às
vezes utilizo revendo alguma informação, recuperada e partilhada por
familiares de segunda geração, onde vou manuseando com algum
cuidado, papeis e fotos antigas, além de vos contar o que por aqui vai
passando, pois a memória continua “à solta”, encontra tudo e, hoje essa
mesma memória “esbarrou-se”, perdoem o termo, com o “Sidney
Poitier”, e decidi colocar estas duas personagens, que são a mesma
pessoa, nas minhas memórias daquele conflito, porque parecendo quase
mentira, aconteceram e, entendi que os meus companheiros deviam
saber, pois às vezes sucedem coisas que não parecem lá muito normais,
mas vou colocar esta conversa com todos vocês, dentro daquele ditado
popular em que o povo diz, “como o mundo é pequeno”.
Isto andou tudo dentro de mim, como se fosse um “segredo”, pois na
altura em que aconteceu, “humilhou-me”, mas não faz mais sentido
continuar calado, pois nesta idade, nunca se sabe quando vem o dia de
amanhã, ou se até por acaso existe amanhã, portanto vou “desabafar”,
com todos vocês, que considero uma segunda família, vou contar-vos
tudo, seguindo a minha memória, colocando-me no papel de como era
conhecido lá em Mansoa naquele tempo, contando como tudo se
passou, embora a linguagem talvez fosse outra e a conversação também
talvez fosse diferente, mas passou-se mais ou menos assim.
A primeira personagem era um africano, ainda jovem, natural
da zona onde o então Cifra estava estacionado, que era Mansoa, creio que
era o único funcionário, ou um dos funcionários do que se dizia que era
uma espécie de câmara municipal da referida vila, onde por acaso, até lhe
emitiu um bilhete de identidade em seu nome, do qual vos mostro uma
cópia, com uma fotografia tirada naquele tempo, com a roupa emprestada
por um alferes miliciano do
Agrupamento, onde
encobri as impressões
digitais e outros dados a que
não era muito conveniente
dar publicidade, mas ainda
lá está: residência
“Mansoa”, no lugar de
“sinais particulares”: “tatuagem patriótica no
braço direito”, que me
tem acompanhado pela
vida fora, onde mais abaixo, dizia: “Secção Ultramarina da Guiné do
Arquivo de Identificação, 15 de Fevereiro de 1966”, portanto no
princípio do ano do meu regresso, que creio que era igual aos que eram
emitidos aos naturais, que o requeriam para poderem transitar no território,
sem serem incomodados pelos militares.
O tal africano falava e escrevia português, educado na comunicação com os
militares, convivia com o Cifra na sede do clube de futebol local, no qual
era, se não estou em erro, membro da referida direcção, sabia discutir
qualquer tema onde entrasse desporto e mesmo a História de
Portugal. Opinava sempre com bom senso e com uma calma, como se tivesse mais idade do que aparentava.
Fixava o nome dos militares que frequentavam a sede do clube de
futebol, e não só, pois a quase todos tratava pelo nome.
Parecia incrível, todas estas virtudes, num homem natural desta vila,
pois dava a entender que nunca tinha saído da província, mas ele certo dia disse ao Cifra:
- Estudei numa escola católica, lá na capital, mas sou natural daqui,
desta região, onde me sinto muito bem.
Era o que se podia dizer, “um bom companheiro”.
O Cifra, deixou de o ver no clube e perguntou ao rapaz que servia no
bar:
- Onde é que se meteu o “Sidney Poitier”?
Era assim que o Cifra e os outros militares lhe chamavam por ser
parecido com um actor americano, que na altura protagonizava alguns
filmes de cowboys, que os militares viam, nessa mesma sede.
O rapaz, responde ao Cifra, com uma cara, mostrando alguma tristeza:
- Como posso eu saber, Cifra. Ninguém
sabe, desapareceu. Talvez o pessoal mau,
o levou pela noite escura.
E tinha desaparecido.
E com ele desapareceu também quase
todo o arquivo dos residentes na área, que
até aquela data se tinham registado na
câmara da vila e, se foi ele ou não, nunca ninguém soube, pelo menos
enquanto o Cifra por lá viveu.
Os anos passaram, e eis a segunda
personagem, agora falando eu, na minha
pessoa.
Terminei a minha comissão de serviço
militar na então Província da Guiné, regressei a Portugal, emigrei para os
Estados Unidos e, como funcionário da multinacional onde trabalhei por
mais de trinta anos, logo nos primeiros anos veio trabalhar um homem para um departamento diferente de onde eu exercia as minhas funções,
que nas feições era parecido com o tal amigo “Sidney Poitier”,
mas usava o cabelo grande, que formava uma pequena “bola” à volta da
cabeça, barba um pouco crescida, mas muito bem aparada, a quem nós
chamávamos “Jean”, pois nunca consegui esquecer o seu nome.
Falava muito bem inglês, com sotaque da Inglaterra, confundia-se muito
bem com os diversos emigrantes que também lá trabalhavam, oriundos do
Haiti, com quem por diversas vezes o ouvia falar e a conviver, na língua
materna desses emigrantes, que era o francês.
Na altura do lanche, por vezes o pessoal estava junto e eu já andava
desconfiado, estava mesmo quase para o questionar, mas só me
apercebi, quando vi o suposto, “Sidney Poitier” entrar, sentando-se em
frente a mim, abriu um envelope e começou a ler uma carta. Colocou o envelope, mesmo na minha frente, que tinha colados diversos selos dos correios da Guiné-Bissau, como fosse um País independente, onde se destacava a
figura do líder Amílcar Cabral. Creio que os selos não tinham o carimbo de nenhuma estação de correio de qualquer País.
Muito admirado, olhei-o de frente e, agora sim, questionei-o.
O suposto, “Sidney Poitier”, a quem nós chamávamos “Jean”, talvez
tivesse feito tudo isto de propósito, provocando-me ou talvez para
demonstrar a vitória na sua luta, respondeu-me naquele português, com
sotaque de África, que todos
nós conhecemos, com
algumas palavras em inglês
pelo meio e, que eu logo
reconheci, com muita
gentileza, aliás como sempre
falava, mais ou menos com
estas palavras, talvez não
fossem iguais, mas o conteúdo
de toda a conversação, era
este:
- Eu reconheci-te, és a
mesma pessoa que era o
militar do País invasor. Não disse nada, para não levantar problemas aqui
neste local de trabalho, pois como sabes, eu convivia com os militares,
vigiava-vos, sabia quase tudo de vocês e, antes que os militares me
prendessem e matassem, tive que me retirar de Mansoa, fui servir o meu
movimento de libertação, residindo num País vizinho. Passei a ser inimigo
declarado, ambos temos os nossos ideais e, é por eles que lutamos. Peço-te
por favor que mantenhas o silêncio de quem eu sou, que eu farei o
mesmo a teu respeito. Como estás a ver pelos selos deste envelope, o
meu País já é independente há alguns anos e, os militares portugueses são
uns intrusos no meu País, como todo o mundo sabe, só menos Portugal.
Tenho muito orgulho em fazer parte do movimento de libertação do meu
País, que por enquanto governa em algumas zonas que já são
consideradas livres, estou aqui para estudar, estou quase a acabar os
meus estudos e, em breve vou regressar a África, esperando que os
intrusos saiam definitivamente, para que possamos governar o nosso País
em paz.
Foram mais ou menos estas palavras, mas de vez em quando parava de
falar e olhava-me, as suas palavras deixavam de ser gentis, falava-me
com alguma arrogância, demonstrando mesmo alguma intimidação. Claro que eu fiquei embaraçado e um pouco humilhado com todas estas
palavras, para mais num local onde mais de cinquenta por cento dos
empregados eram afro-americanos. Com toda a certeza que lhe devia ter respondido com algumas palavras amargas, mencionando nomes e
adjectivos, que talvez não fossem muito próprias para o encorajar na sua
luta, mas era o sentimento que tinha eu e, muitos dos combatentes que
por lá tinham vivido dois anos de sofrimento, vendo morrer muitos
companheiros naquele conflito em África.
Passámos a conversar mais algumas vezes, mas poucas, pois da parte
dele mostrava sempre uma pequena indiferença para comigo, podia
mesmo dizer que a minha presença não lhe era agradável. Uma vez
lembrei, entre outras coisas, as raparigas que eram minhas amigas, na
altura em que estive em Mansoa, e que tinham passado para a guerrilha, que ele
afinal também conhecia, mas as suas palavras, além de serem proferidas
com educação, não escondiam alguma fúria.
O “Jean”, trabalhava como ajudante na área onde se processava o
alumínio em pó, que era moído juntamente com um lubrificante que o
transformava em pasta, num departamento que muitos diziam ser um trabalho de “brancos”, pois a cor do material, “pintava” quem
manuseava aquele produto de branco.
Durante o pouco tempo que lá
trabalhou, passava muitas horas a ler e a estudar, procurava o
silêncio, falava muito pouco, mas sempre com educação. Nunca soube
por que razão, mas coincidência ou não, passadas umas semanas de nos
conhecermos de novo, largou o emprego e nunca mais o vi.
Tudo isto aconteceu talvez por altura dos anos de 1972 ou 1973, não
me lembro ao certo e, como costuma dizer o companheiro Veríssimo: “Pronto, está dito, está dito”.
Tony Borie, Maio de 2014
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Nota do editor
Último poste da série de 17 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13158: Bom ou mau tempo na bolanha (56): Las Vegas, Las Vegas (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
SAydney Poitier... o primeiro ator negro, afro-americano, da história do cinema a receber o Óscar de melhor ator principal pelo seu desempenho no fime "Os Lírios do Campo" (tórtulo originbal: Lilies of the Field) em 1963. Lembro-me bem do seu rosto nos nossos écrãs... Era o o "negro bom"...
E tudo isto no tempo em que gente (os jovens, a pensar já na guerra do Ultramar...) cantarolava, por cá:
"Matam-se pretos na Amé r... i...cá".
Na realidade, tens razão, Toni, o Mundo é Pequeno!...
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