domingo, 19 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13762: Viajando numa estrada em guerra (Nelson Herbert, VOA - Voice of America)

1. Mensagem do nosso amigo guineense, Nelson Herbert, que vive nos EUA, onde trabalha na VOA - Voice of America, Voz da América, com data de 9 de Outubro de 2014:

Traveling a Road Into War

Um dos marcantes momentos da minha experiência na cobertura do conflito de 1998/99, a guerra civil na Guiné-Bissau, retratada por uma publicação americana.

O episódio resume-se no seguinte.
Para evitar a entrada na Guiné-Bissau através da fronteira norte com o Senegal (eixo Zeguinchor /São Domingos), devido em parte a então intensa movimentação dos guerrilheiros independentistas do Casamance na região, numa mobilização que visava o eventual "estancamento" da infiltração de unidades militares das Forcas Armadas senegalesas através da fronteira norte da Guiné-Bissau em apoio as forças de Nino Vieira, foi-me na altura aconselhado por razões de segurança, a utilização da fronteira leste da Guine Bissau, no eixo Kolda /Pirada como ponto de entrada no pais. A inflexão mais ao interior da região senegalesa do Casamance, em direção à fronteira leste da Guiné-Bissau, mais concretamente Pirada, evitando consequentemente as zonas da operacionalidade da guerrilha independentista, acarretaria entretanto os seus contratempos.

Chegados a Kolda (Senegal) na sequência de uma viagem longa, desgastante e exposto a uma canícula infernal, momentos antes de cruzar a fronteira e em pleno "directo" ainda do lado senegalês da fronteira, com a emissão da VOA a partir de Washington DC., sou interpelado e conduzido à presença do comandante da região militar, por um grupo de soldados senegaleses fortemente armados.

Em causa o telefone satélite (nunca antes visto na região) usado no "directo" e que curiosamente os militares senegaleses insistiam em baptizar de telefone da Junta Militar.
Até à confiscação de todo o equipamento de reportagem, toda a cena foi sendo reportada através da emissão da VOA e por conseguinte acompanhada pela audiência na Guiné-Bissau.

Cumprido as formalidades e um período de detenção para "averiguação" dos propósitos da minha viagem a Guiné-Bissau em guerra, a minha devolução à liberdade seria motivo de notícia pelos colegas em Washington.

Resultado, cruzada a fronteira senegalo/guineense, à boleia de um camião de carga e à chegada a Pirada, sou surpreendentemente recebido em ovação por um grupo de ouvintes da Voice of América que ao longo da fronteira vinham seguindo através das ondas hertzianas a sorte madrasta minha, por terras senegalesas.

Desse momento ímpar da minha carreira jornalística, retenho a afabilidade do Dr. Xisto (será essa a grafia?) na foto, capitaneando de forma efusiva o "clube de ouvintes " à minha recepção.

E desse episódio nasceria uma forte relação de amizade e estima mútua, que entretanto a morte prematura deste medico guineense, ainda com a Guiné-Bissau em pleno conflito, entendeu abreviar.

A este amigo a minha eterna gratidão!

Nelson Herbert Lopes


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Notas do editor

- Título do poste da responsabilidade do editor

- Último poste de 11 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13718: Recuerdos de uma infância: a Nha Maria Barba, a avó Barba, cantadeira de mornas, da Boavista, minha viziinha de Bissau (Nelson Herbert, VOA - Voice of America)

5 comentários:

Anónimo disse...

Pois é..pois é N. Herbert

Com amigos destes (senegaleses)os guineenses dispensam.

Também eu entrei por Pirada quando da minha ida como voluntário da AMI.

Assisti a cenas surrealistas.

Em Wassodou,estava um batalhão senegalês,todos com ar de recrutas, pelo menos aparentavam,e não conseguiam esconder o temor que sentiam...em contrapartida com a displicência do guarda de fronteira guineense que caminhou calmamente da sua esteira de repouso para vir abrir a pseudo-cancela..e pegando na kalash pelo carregador.

O policia de fronteira carimbou -me o passaporte irradiando felicidade..é que não era todos os dias que carimbava passaportes a tugas.

Em Pirada fomos recebidos de forma efusiva pela população..um senegalês que nos acompanhava dizia-me perplexo que não percebia nada do que estava a acontecer..se estivemos 13 anos em guerra como era possível tal coisa....pois.

As autoridades senegaleses tentaram tudo para boicotar as ajudas destinadas ao povo guineense..só um exemplo..a AMI comprou 20 t de arroz no Senegal ..foi tudo facilidades na passagem do camião que iria transportar o arroz e não haveria problemas na vinda...bem o arroz apodreceu em cima do camião em Wassodou..devido "problemas burocráticos".

Mantenhas

C.Martins

Patricio Ribeiro disse...

Nelson

Desta guerra… pouco se falou no nosso blog, mas está muito por contar.
No inicio estava no interior, junto à fronteira Norte, com outros amigos.
Mantive-me em contacto com dezenas de outros Tugas que estavam isolados há semanas no interior, pessoalmente também por outros meios, fui passando notícias deles às famílias.
Transportei Tugas e outros estrangeiros, para o exterior da Guiné, uns de canoa, outros de carro e ainda por outros meios.
Transportei guerrilheiros de Casamansa, para a linha da frente em Bissau, com armas e sacos onde eu pensava que iam bananas, eram granadas. Claro que entraram na viatura sem pedir autorização.
Apoiei o transporte da primeira ajuda humanitária de canoa, do Governo Português, aos refugiados e população da zona Norte.
Apoiei Instituições Tugas, no interior da Guiné, caminhando muitos Km, com a mochila às costas, para dentro e para fora de Bissauzinho, para poder ir tratar dos assuntos.
Há muito mais para contar…

Anónimo disse...

Mantenhas pro Patricio Ribeiro e C Martins....de facto muito por contar sobre este capitulo da historia recente da Guine..Lembro-me por exemplo de numa das frentes, ter identificado , guineenses, antigos militares da tropa portuguesa durante a guerra colonial..nas fileiras da Junta Militar...que de forma entusiastica justicavam-me essa "alianca"...quem sabe essa reconciliacao..a presenca das tropas senegalesas no territorio guineense...

Mantenhas

Nelson Herbert

Manuel Luis Lomba disse...

Olá, Nelson.
O Nino Vieira dizia e redizia que o telefone satélite que Jaime Gama foi oferecer à Junta Militar fora a melhor arma do arsenal dos revoltosos.
Um abraço,
Manuel Luís Lomba

Antº Rosinha disse...

C. Martins, tanto a Guiné Bissau como Moçambique terão que jogar com os vizinhos com pau de dois bicos.

Desde que Moçambique aderiu à Commonwaelth e a Guiné Bissau aderiu à CFA (Colonies Francaises d'Afrique), amenizado para Comunauté Financiere Africaine), metade dos Guineenses e Moçambicanos simplesmente renegaram a CPLP, para se darem bem com os senegaleses e vizinhança em geral que os rodeia.

No caso da Guiné a CPLP perdeu um aliado com a perestroika, que acabou com o melhor aliado da lusofonia que era a União Soviética.

Nesse aspecto considero que a derrube do Muro foi uma catástrofe para a CPLP.

Os Russos podem dar-se mal com os Ucranianos, mas a par do Brasil, eram os maiores aliados da CPLP em África.