sábado, 25 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13799: A propósito de paludismo... e da arte de bem guerrear (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 23 de Outubro de 2014:


Meus caros:
Para matar saudades, estou a anexar o meu contributo para o tema em epígrafe.

Um abraço tão grande e forte como a estima e a consideração que me mereceis.
Mário Migueis


A PROPÓSITO DE PALUDISMO
por Mário Migueis da Silva 

[, membro da Tabanca Grande, desde 16/4/2009: recorde-se o seu BI:  (i) Furriel Miliciano
com a especialidade de Reconhecimento e Informação, esteve na CCS/QG (Bissau),  em em diligência na CCS/BART 2917 (Bambadinca, Novembro 70-Janeiro 71),  CCaç 2701 e CCaç 3890 / Saltinho (Março 71 a Outubro 72)]

Tendo decidido que, a partir de agora, vou fazer um pequeno esforço para tentar ultrapassar tão rapidamente quanto possível as mil e uma entradas da feraz caneta do nosso distinto tabanqueiro Mário Beja Santos, nem sempre beneficiária dos meus encómios, mas nem por isso desmerecedora – ela, a caneta – da minha vénia a tanto engenho e farto saber, vou, desde já, aproveitar o ensejo do tema apresentado pelo nosso não menos estimado Rui Vieira Coelho - que, por sinal, foi médico em Galomaro, sede dos dois últimos batalhões em que estive em diligência – para partilhar uma pequena amostra do que foi a minha luta incessante contra o famigerado paludismo, ainda hoje responsável por milhões de baixas neste “mundo do Senhor”.

O encontro de apresentação, ou seja, a primeira manifestação do dito deu-se, por alturas de Março de 1971, em Bissau, onde me encontrava em formação na Repartição de Informações do Comando-Chefe, onde estava colocado. Começou com uns arrepios e, daí a nada, estava com uma temperatura diabólica, o que me levou a uma consulta médica na Amura, à qual se seguiu uma outra na enfermaria do QG, que era a minha unidade, em virtude de os meus camaradas de quarto no “Palácio das Confusões” terem ficado alarmados com a evolução – para pior – do meu estado de saúde. Mas, não havia razões para tanto susto: com a terapêutica da ordem, decorridos cerca de oito dias, pouco mais que pele e osso, e agarradinho às paredes ou a um ombro amigo para não me estatelar no chão, tal era a fraqueza das minhas pobres canetas, lá consegui chegar ao Clube Militar de Sargentos, que, providencialmente, era ali mesmo ao pé, para uma primeira refeição após o já inesperado ressurgimento.

A umas bolachinhas com Fanta natural, seguiram-se umas sandes com umas coca-colas e, finalmente, uns camarões de fazer queimar a beiça, acompanhados de umas cervejas fresquinhas e retemperadoras. Tinha, assim, levado de vencida este nosso primeiro embate, e o que achei de mais curioso, em termos de sintomatologia, foi, de permeio com as terríveis dores de cabeça, corpo dolorido, febre altíssima, falta de apetite, vómitos e mal-estar geral, a sensação de que cada fio do meu cabelo estava implantado numa chaga.

Dito isto, passemos, desde já, à quarta ou quinta experiência, que não haveria papel que chegasse nem paciência que vos sobrasse para tanto relato, se eu me perdesse agora, por aqui, a contar tudo, tim-tim por tim-tim.

Estava eu no Saltinho, e tinha terminado há muito pouco tempo o período de sobreposição das duas companhias de caçadores minhas anfitriãs: a “2701”, dos “velhinhos” do capitão Carlos Clemente, e a “3490”, do capitão miliciano Dário Lourenço, com quem eu ficara, de castigo – mentira!...

Ao entardecer de mais um dia de muito sol e boa disposição, fui tomar o meu habitual banho numa das piscinas naturais do Corubal, a pouco mais de cinquenta metros do arame da nossa posição militar. Lá de cima da rocha mais alta, que eu não fazia aquilo por menos, mergulho como uma bala nas águas mornas e suaves do pacato rio, e, emergindo com a potência de mais que muitos cavalos-vapor, dou meia dúzia de braçadas até à margem. É aí que, acto imediato, e embora fizesse ainda bastante calor, sinto aqueles arrepios – sempre eles! – que me fizeram encolher, apanhar a toalha e regressar “a casa”, a rogar pragas à minha pouca sorte: não havia dúvidas nenhumas, aí estava o paludismo, uma vez mais!...


Uma bela imagem do Rio Corubal, no Saltinho. 

Foto retirada da página Encore de L'audace do nosso camarada Paulo Santiago, com a devida vénia


Já a bater o dente, fui directo ao Henrique Custódio, furriel (miliciano) enfermeiro, a quem não dei hipóteses de paninhos quentes:
- Dá-me já uma dessas injecções de cavalo, que esta merda não vai com comprimidos nem afins!....

Não passara ainda meia hora, deitava eu contas à minha triste sina de paciente dos pântanos compulsivo, quando chegam, em passo de corrida, dois elementos da população de Madina Bucô, a darem conta de que, nas imediações da sua tabanca, a cerca de oito quilómetros de distância do Saltinho, tinham sido detectados “turras” – eh, pá!... -, em preparativos para um ataque pela calada da noite.

Em resposta – pois claro! -, prepara-se para avançar o pelotão de intervenção, que, com os seus homens já instalados em três “burrinhos”, aguarda a ordem de “siiiiga!...”. É quando o furriel enfermeiro, que estava sentado ao lado do Elói, outro furriel miliciano de elevado gabarito, salta do pequeno camião e se dirige a mim, perguntando-me com um espanto de espantar:
- Como é, não vens connosco, meu sacana?!...
- Sacana?!... Sacana és tu, meu malandro do caraças!... Então, acabaste de me dar a puta da injecção para o paludismo e queres que vá convosco prá rambóia?!... Desta vez, ides ter que passar sem mim.



Guiné> Zona leste > Setor L5 (Galomaro) > CART 3490 > Saltinho, 1972, época das chuvas

Foto: © Mário Migueis (2009). Todos os direitos reservados


E, assim foi. Daquela feita, consideradas as condições de periclitante saúde, não fui, armado em rambo, para a coboiada. E, afinal, até nem fui preciso para nada, porque, felizmente, não houve ataque nenhum aos nossos amigos fulas e o Henrique Custódio, de quem já me tornara um bom amigo, pôde, na madrugada do dia seguinte, regressar são e salvo, para poder acompanhar convenientemente os efeitos do “soro cavalar” administrado.

Mas, entretanto… Entretanto, pouco faltaria para a meia-noite no quartel do Saltinho – e penso que em Madina Bucô também -, estava eu no gabinete do comandante da companhia, que funcionava simultaneamente como sala de informações. Só, sentado à secretária, cabeça caída sobre o tampo alagado com os suores de gelo que me faziam tremer de frio e morrer de calor, aguardava a morte.

Assim, com a febre a atacar-me impiedosamente, fui surpreendido por aqueles estampidos secos, que nada tinham de familiares. “Devo estar com alucinações!”, pensei. Só que, ao primeiro estalo, seguiu-se, segundos depois, uma surda explosão que me pareceu bastante mais distante. Mas, não pestanejei sequer, até porque estava com os olhos bem colados às pálpebras, coitaditas, mais mortas que vivas. Já ao terceiro – alto lá!, que, pelos vistos, a coisa era para durar - soergui ligeiramente a cabeça e passei a mão direita pela testa ensopada e pegajosa. E ia a coisa já no quarto ou quinto – palavra de honra que não contei! -, quando tive a percepção de que cessara o ruído – tom, tom, tom - do enorme gerador, acomodado no outro lado da parada.

Com um esforço pouco menos que titânico, consigo levantar duas ou três pestanas da vista melhor colocada e reparo que a lâmpada do tecto se extinguira e que a grande ventoinha de estimação dava os últimos suspiros. É, então, que me atrevo, aos tropeços e às apalpadelas, a fazer os dois metros que me separam da porta, para espreitar, a tentar perceber o que se passa. Não foi preciso muito tempo para isso, pois a explicação estava ali, diante dos meus olhos vermelhos e cansados: dos lados de Aldeia Formosa, a meio caminho dos dez quilómetros em linha recta que separavam os dois aquartelamentos - por aí -, partiam, em direcção a norte, projecteis tracejantes – luminosos, pois, - com uma trajectória curva de longo alcance, tendo eu estimado que os impactos se estariam a verificar a cerca de 20 quilómetros de distância a norte da zona de lançamento.

Comigo de novo todo encolhido, cabeça em fogo sobre o tampo da secretária, eis que irrompem na escuridão da sala, mansa e quieta, a pobrezita, que não fazia mal a ninguém, três ou quatro tigres de Mampa…, quer-se dizer, três ou quatro tigres da Malásia, que, de lanterna em punho, se vêm colocar desrespeitosamente de costas para mim. Aos saltos de nervosismo, ganas, enfim, de entrar em acção, “dá cá a lanterna, passa-me essa merda”, apontam o foco de luz para a tela plastificada que cobre completamente toda a parede de cinco por três.
 - É dali, é dali!..., - exclama o alferes Rainha, que substituía o capitão Dário, ausente em Bissau ou coisa assim.
- É mais abaixo, Rainha! – agora, o alferes Armandino, com a sua voz roufenha e aparentemente mais calma, apontando para o número 44, envolto por um circulo a vermelhão, na carta de tiro do morteiro de maior alcance de que dispúnhamos na unidade.
- Não, não, Armandino, o tiro sai mais a sul! – insiste o Rainha, brandindo a lanterna, impaciente.
- Tás enganado, Rainha, mas pronto, faz lá como tu quiseres – concede, por fim, o Armandino, a ajeitar o quico e a puxar o cinto das calças para cima, preparando-se já para sair com os restantes invasores, rumo ao espaldão do “10.7”.
- Amanda-se prós dois, pronto!... Fogo pró trinta e pró quarenta e quatro!... - resolve o Rainha, que, para além de mais velho, tem todo o aspecto e os tiques de ser o mais belicoso.


Guiné> Zona leste > Setor L5 (Galomaro) > CART 3490 > Saltinho, s/d. c. 1971/72... O Miguéis (, aqui conhecido por Silva,) sentado no "tigre" qye encimava o monumentos aos mortos da CCAÇ 2406 (Olossato e Saltinho, 1968/70), companhia do meu tempo e que era conhecida como os "tigres do Saltinho" (fizemos operações juntos) (LG)

Foto: © Mário Migueis (2009). Todos os direitos reservados [Edição: LG]

Não aguentei mais tanta impetuosidade, tanta vontade de fazer ronco:
- Fogo o caralho!... – resmunguei com quanta força me permitia a debilidade da minha carcaça em brasa. “Ó, cum caraças!”, só não se atiraram ao chão, porque começaram a tropeçar uns nos outros, em direcção à porta por onde antes entraram de rompante e dispostos a pôr tudo a ferro e fogo.

A áspera caralhada, assim disparada do escuro, à falsa fé sem ninguém contar, tivera o efeito de uma granada que nos cai aos pés. O Armandino foi o primeiro a reagir e, apanhando a lanterna ainda acesa que o Rainha deixara cair com o susto, vira-a para mim e consegue titubear:
- Ai é você?!...
- Pôrra, Migueis, que susto do caraças!... Você não está a ouvir os rebentamentos?!... – esganiça o Rainha, mais magro e descorado ainda do que em tempos de paz.
- É claro que estou, mas isso não é nada connosco!...
- Mas deve ser com o quartel de Buba, ou coisa assim!... – justificava-se e tentava impor-se o comandante em exercício, perante o saber de experiência feita do furriel de informações.
- Qual Buba, qual quê!... Alguém pediu fogo de apoio?!... – perguntei, agora com a cabeça fora da carapaça, e a procurar levantar-me da cadeira, onde estava literalmente colado.
- P´ra já, não, mas…
- Ai, não?... Então, deixem-se estar mas é quietos, senão os gajos viram-se p´ra cá e ainda nos rebentam com a puta da ponte!

Estava escrito que ainda não era daquela que os indómitos periquitos haviam de fazer o gosto ao dedo, e eu, logo que me recompus, e na sequência da mensagem que o SIM oportunamente fizera seguir para o Comando-Chefe, elaborei o relatório de informações respectivo, onde, nos “Ensinamentos Colhidos”, que, normalmente, ultimavam o texto, omiti, por incúria, o que de mais importante se extraíra de tão alvoroçada experiência: “O paludismo pode funcionar como agente dissuasor do gasto excessivo de munições, que tantos sacrifícios custam ao erário do nosso depauperado povo”.

Dias mais tarde, chegar-nos-iam notícias recortadas provenientes da República da Guiné, dando conta de que o PAIGC tinha recebido recentemente alguns carros de combate (tanques) da União Soviética, os quais haviam chegado a Conakry por via marítima e depois seguido para Kandiafara, principal base logística do IN, onde se mantinham. Os carros de combate – referiam ainda as mesmas fontes - tinham sido, entretanto, testados junto à linha de fronteira, para os lados do Saltinho, ou seja, acrescentei eu, tinham utilizado abusivamente a nossa carreira de tiro, sabedores que eram, porventura, de que eu, o maior da cantareira, estava a braços com as febres dos pauis.

In “A Arte de Bem Guerrear”, autoria cá do rapaz, a publicar brevemente

Esposende, 22/10/2014

Um abraço muito amigo,
Mário Migueis

1 comentário:

Luís Graça disse...

Saúdo o Silva, como era conhecido em Bambadinca, nos 3 meses que por lá passou, vindo do QG... Era ums senhor gajo, furriel de RECINFO, para mais vindo do SIM (Serviço de Informações Militares), do QG...

Ainda bebemos uns copos, ele, eu os demais apanhados da CCAÇ 12, já todos com 19, 19, 20 meses de Guiné e de guerra...

Pela prosa, de primeira água, que acabo de ler, deliciado, fico em pulgas por poder comprar o livro "A arte de bem guerrear"... Quando e onde é o lançamento ?

Presumo que o livro seja também ilustrado pelo autor, que é um talentoso cartunista... Os editores do blogue já tiveram o privilégio de terem sido objeto da sua arte de ilustrar, caricaturar e homenagear...

Pelo título, e pela amostra que acabo de ler, cheira-me que vamos ter mais um grande livro de um ex-combatente da Guiné e, mais do que isso, um grã-tabanqueiro. matural de (e residente em) Esposende.

Migueis, tenho uns trabalhos por aí, relacionados com o reordenamento costeiro. Temos que nos encontrar quando eu lá for... Manda-me o teu nº de telemóvel... Um abração fraterno, boa sorte para o teu livro. O Henriques