Décimo sétimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
A senhora Etelvina do Caril, como era conhecida na vila
de Águeda, porque o seu marido tinha sido “tropa na
Índia”, portanto cozinhava com alguns condimentos
exóticos, vivia na parte baixa da vila, na zona dos cafés,
pendurava a roupa a secar numa corda, nas escadas que
iam para a parte alta, para a zona do Adro, junto da nossa
escola primária, dizia mal das lavadeiras que lavavam a
roupa no rio e a secavam areal, onde passavam todo o
dia.
“Passam todo o tempo a falar na vida dos outros,
malvadas, nunca mais vi aquela areia do rio, com toda
aquela roupa, estragam o meu cenário, nunca mais fui ao
“Cais dos Pescadores” - dizia ela a todo o instante.
Era uma senhora “fina”, era o que se dizia no nosso
tempo de jovem, das senhoras que faziam a
“permanente”, frequentavam os cafés da vila alguns dias
por semana, estando sentadas horas seguidas, tomando
somente um café e um copo de água, e claro, falando,
falando, entre outras coisas, da vida dos outros. Eram
senhoras que não se “misturavam” com as pessoas
normais do dia a dia, do “tu cá, tu lá”, mas quando
recebiam qualquer visita em sua casa, era vê-las a
passear, pelo “Cais dos Pescadores”, a mostrar as
belezas da vila, o rio, com o areal, as lavadeiras, a nora, a
ponte e os barcos que vinham rio acima, com peixe e
sal da Vila da Murtosa, carregando de volta lenha de
madeira cortada à medida, ou feixes de carqueija.
Muito distante da nossa aldeia, dezenas de anos depois,
falando com alguns habitantes da cidade de São
Francisco, na Califórnia, verificámos que, quando lhes
falam no “Fisherman’s Wharf”, que quer dizer mais ou
menos “Cais dos Pescadores”, que é uma zona na
cidade, junto da sua baía, o seu sentimento é de amor e
ódio, tal como a senhora Etelvina do Caril ao seu “Cais
dos Pescadores”.
Queixam-se do gosto duvidoso das suas lojas, que
vendem recordações baratas, do preço um pouco acima
da média dos seus restaurantes, os museus, que os
turistas adoram e dizem que é "novidade", mas para eles
é uma novidade há muito desgastante, os eléctricos
sempre cheios de turistas, bloqueando a visão da baía e
da ilha de Alcatraz, mas, lá no fundo, muito
secretamente, eles gostam muito do seu “Cais dos
Pescadores” e, sempre que algum convidado os visita, de
fora da cidade, é uma desculpa perfeita para de uma
forma, talvez um pouco cínica, se "forçarem" a si mesmos
para irem para essa zona, para terem um bom tempo,
evitando as linhas de espera nos museus, mas vestindo
uma simples T-shirt, mesmo dizendo em letras muito
pequeninas, "Eu sou um estúpido", e andam por lá,
fazendo parte de alguns milhões de visitantes que visitam
esta zona por ano, usufruindo de algumas das melhores
vistas da cidade, comendo, entre outras iguarias, o
caranguejo “Dungeness” fresco, cujo nome científico é
Metacarcinus magister, conhecido pelo nome comum de
“sapateira do pacífico”, uma espécie de caranguejo que
mede entre 20 e 25cm e pesa por volta de 1kg, mas
também lá servem frutos do mar frescos, mas para nós,
que roubávamos pão no aquartelamento de Mansoa, o
que mais gostámos, foi do ensopado de mexilhões
servidos dentro de um pão de massa fermentada.
Já vamos longe na conversa e o Carlos Vinhal vai
dizer que o texto é longo e ainda não explicámos o que é
o “Fisherman’s Wharf”, da cidade de São Francisco, que é
o principal destino turístico deste cidade,
mas a sua história é muito mais rica e mais importante do
que as atrações típicas de hoje sugerem, onde, muitas
das teses dos pontos turísticos bem conhecidos, foram
desenvolvidos somente nas últimas décadas.
Este cais, no lado sul da baía de São Francisco,
originalmente era conhecido como “Meiggs Wharf”,
recebeu as suas características de nome e de vizinhança,
desde os primeiros dias da cidade, em meados da década
de 1800, para mais tarde, quando os pescadores
emigrantes italianos chegaram à cidade pela baía, para
tirar proveito do afluxo de população, devido à corrida do
ouro, onde um tal Achille Paladini encontrou sucesso com
o negócio de peixe grosso local, como proprietário do
Paladini Fish Company, onde veio a ser conhecido como o
"rei dos peixes".
A maioria dos pescadores emigrantes italianos
estabeleceram-se na área de North Beach, que quer dizer
mais ou menos Praia do Norte, perto do cais, dedicando-se
à pesca na região, onde abundava entre outras
espécies o caranguejo Dungeness, agora muito famoso,
onde desde então e até os dias de hoje, se manteve na
base das frotas de pesca de São Francisco, mas este cais
de pescadores, já foi a principal porta de entrada para
São Francisco, sendo nessa época um lugar
extremamente laborioso, com mercadoria, principalmente
madeira, alimentos, com todos os emigrantes a chegaram
aqui, com o caminho de ferro a vir direito à beira da água
para carregar os suprimentos de construção para a
cidade, que cresceu rapidamente, onde os pescadores
trabalhadores, tanto chineses como italianos, muitas
vezes acompanhados por suas esposas, aqui se
estabeleceram para ganharem a vida na captura de
peixe e caranguejo em pequenas embarcações
construídas neste mesmo cais.
Hoje é um dos lugares mais famosos da cidade de São
Francisco, mesmo uma das atrações mais movimentadas
e bem conhecidos turísticamente do oeste dos Estados
Unidos. Entre as muitas atracções, podemos admirar a
Doca 39 (Pier 39), onde existe uma colónia de leões do
mar (as típicas focas), que se apoderaram de uma grande
parte da doca, onde fixaram residência permanente sobre
docas de madeira que eram originalmente destinadas aos
barcos, desde a Praça de Ghirardelli, até à Doca número
35, sempre encostada à baía, sendo a maior parte da
zona, com casas construídas sobre estruturas na água,
onde na avenida que passa na sua frente, circulam os
“cables car”, que são os típicos “eléctricos”. Em toda a
área existem diversões, como museus, o Aquário da Baía
de São Francisco, o submarino da segunda guerra
mundial “UUS Pampanito”, restaurantes famosos, que
muitas vezes se vêm nas películas de Hollywood, como o
Forbes Island Restaurant, o Fisherman’s Grotto, o Joe’s
Crab Shack, ou o Bubba Gump Shrimp Co..
O local onde as pessoas se juntam mais é na “Pier 39”,
onde além de muitas e variadas diversões, foi onde se
filmou algumas cenas do filme de James Bond, “A View to
a Kill”, onde num restaurante local se vêm fotos de muitas
cenas do filme.
Só mais um pequeno pormenor, também se pode sentar
num dos muitos bancos que existem na margem da baía
e admirar, mesmo ali, no meio da baía, a ilha de Alcatraz,
onde está a casa, longe do que era a sua casa em
Chicago, de algumas personagens infames, como por
exemplo, Al Capone ou Robert "o Birdman" Stroud, entre
outros, tendo sido um monte de coisas desde a sua
criação em 1853, incluindo um forte exército dos EUA,
uma prisão militar e uma alta penitenciária de segurança.
Tony Borie, Maio de 2015.
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14594: Libertando-me (Tony Borié) (16): Napa Valley & Sonoma
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Tony, caro Tony
Acompanhei-te nesta viagem ao "Cais dos Pescadores" de S. Francisco e para além da recolha de várias informações e indicações retive a ideia que passaste de que em Águeda, nos anos sessenta, ou em S. Francisco da Califórnia, os preconceitos para com as zonas ribeirinhas não são muito diferentes.
Não sei explicar isso, é coisa para os estudiosos dos fenómenos sociais, mas talvez sejam reflexos inculcados nas memórias históricas, nos tempos em que as terras mais altas, mais afastadas do orla costeira, com mais capacidade defensiva às investidas de piratas, corsários e outros, sentiam alguma superioridade social relativamente às "póvoas" das margens e foz dos rios.
Lembro-me bem de uma amigo, na Guiné, e que era de Ponte de Lima me dizer, ilustrando assim como eram as relações 'senhoriais', que "os Senhores de Ponte de Lima diziam aos "de Viana", para falarem com os peixeiros para enviarem peixe rio acima"! Ou seja, os Senhores de Ponte de Lima não falavam com 'peixeiros'...
Por outro lado, deixa-me que te diga que fiquei surpreendido por teres ido a S. Francisco e não nos teres dado conta de teres, ou não, levado "uma flor no teu cabelo".....
Abraço
Hélder S.
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