segunda-feira, 22 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14782: Notas de leitura (730): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se de um acontecimento editorial, estas memórias inéditas de Luís Cabral. Exigem leitura pormenorizada e comentários apropriados, estamos a falar de um documento relevante para a História, há algumas informações inéditas para quem queira iniciar-se no estudo da governação de Luís Cabral, está aqui o acervo de discursos representativos. Entre as informações inéditas, e no contexto do assassinato de Amílcar Cabral, Luís Cabral não esconde as responsabilidades de Osvaldo Vieira. Não se entende como é que este documento cuja publicação terá sido tão desejada pela viúva e pelos filhos termine com uma entrevista inacreditável entre Luís Cabral e a organizadora. Inacreditável e lastimável.

Um abraço do
Mário


O regresso das memórias de Luís Cabral (1)

Beja Santos

O General Ramalho Eanes veio apresentar recentemente a obra “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. Luís Cabral faleceu em 2009, onde vivia exilado, em consequência do golpe de estado de 14 de Novembro de 1980. A obra compreende no essencial um prefácio do comandante Pedro Pires, prólogo do General Ramalho Eanes, uma introdução da organizadora do livro, Ângela Sofia Benoliel Coutinho, um acervo de textos inéditos, incompletos a que Luís Cabral intitulou “Crónica II”, seguindo-se um bom acervo de discursos e por último uma entrevista de Cabral concedida a Ângela Coutinho em 2002.

Uma obra destas é de leitura obrigatória para quem pretende conhecer com rigor o pensamento e atuação de Luís Cabral, figura de primeiro plano do PAIGC, desde a primeira hora, e Presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau até à sua deposição. O que justifica uma leitura comentada e documentada sobre o que aqui se publica.

O que sobressai, e não deixa de ser chocante, da leitura do prefácio e do prólogo, é a poderosa emanação dos silêncios africanos. Pedro Pires faz-lhe um denso elogio, comenta a atividade de Luís Cabral na guerrilha e na governação e tece uma crítica velada à impreparação de muitos dirigentes guineenses para as exigências do processo de fundação e consolidação do Estado soberano independente. Refere explicitamente dirigentes guineenses, entenda-se, não estavam preparados para a transformação do Partido-Movimento Libertação para um partido com as funções do Estado. Considera que a visão de Luís Cabral para a economia do país era moderna, mantendo-se atual. Com a deposição de Luís Cabral, observa Pedro Pires, instaurou-se um regime paramilitar, que desprezou a legalidade. Os golpistas, com Nino Vieira à cabeça, fizeram acusações graves a Luís Cabral, e fundamentadas. E lança banho lustral: “Os factos existiram. Mas, quem o conheceu e conviveu com ele de perto sabe que não tinha responsabilidades diretas no seu cometimento. Não era a sua maneira, nem de agir, nem de estar na vida. Teve, sim, responsabilidades morais enquanto chefe de Estado. O seu erro ou omissão ter-se-ia consistido em não ter confrontado, frontalmente, com os responsáveis direitos por aqueles atos ignóbeis”.
Mas descobre lenitivos para certas barbaridades, como a africanização da guerra e as ambições de certos oficiais dos comandos africanos.

O que escreve o General Ramalho Eanes conflitua com as laudes de Pedro Pires. O general recorda a sua ida a Bissau na sua primeira visita ao país. Ter-lhe-á dito que considerava como questão de honra tomar à sua conta e responsabilidade os ex-comandos africanos. “Propus-lhe que os graduados e os mais odiados regressassem já comigo, no avião que utilizava na viagem presidencial; os restantes, que deveriam constar de uma relação nominal, que me entregaria, faria transportá-los para Portugal nos meses seguintes”. Luís Cabral terá aceite a proposta de Ramalho Eanes, voltaram a conversar sobre o assunto já próximo da data da sua partida para Portugal. “Com ar triste, com ar desalentado mesmo, respondeu-me que, afinal, não poderia satisfazer o compromisso assumido. Quando pretendera satisfazê-lo foi informado de que os ex-comandos, que não tinham procurado refúgio nos países vizinhos, que tinham permanecido na Guiné, tinham sido executados. Confessou, com manifesta amargura que não conseguira, ainda, o controlo do aparelho militar”.

Temos Pedro Pires a falar de um homem bom, o dirigente supremo de uma democracia nacional revolucionária, inspirada nos princípios de Amílcar Cabral, em que, dizia-se, desde o Congresso de Cassacá, o aparelho militar estava estritamente dependente do órgão político. Luís Cabral diz a Ramalho Eanes que ainda não conseguira o controlo do aparelho militar. Questionamos como é que é possível terem sido mostradas valas com cadáveres de centenas de fuzilados, abertas prisões cheias de presos políticos e o presidente da República desconhecer a plena extensão do terror. Como se verá mais adiante, este é um dos significativos silêncios, a fragilidade do conceito da unidade Guiné-Cabo Verde nunca é questionada, é assunto tabu. Pedro Pires, como reage Aristides Pereira, falam no problema dos ex-comandos, mas nunca situam nem concretizam a natureza das malfeitorias que perpetravam. Aliás, nem Nino Vieira, primeiro-ministro sabia a extensão dos crimes e das barbaridades praticadas pelo aparelho militar ou pela segurança do Estado, resta saber se um dia viremos a saber qual foi a fração do aparelho militar envolvida ou se era possível na Guiné-Bissau a segurança do Estado agir de modo solitário.

Fotografia adquirida na Feira da Ladra, num sábado de Maio de 2015. Trouxe um lote de arromba, uma safra inesperada: Tito Gobbi, ao tempo um dos maiores barítonos do mundo, fotografia autografada; Sequeira Costa, Joly Braga Santos e Vasco Barbosa, em 1947; deslocação de católicos guineenses, cumprimentos ao cardeal Cerejeira, 1971; e este esplêndido semblante de Luís Cabral, pena que a máquina não reproduza as cores da fotografia, magníficas.

A introdução da organizadora dá-nos um quadro do papel de Luís Cabral na gestão das áreas libertadas e depois na Guiné independente, bem como alguns elementos sobre o golpe de Estado de 1980. Não tece ondas nem conhecemos contraditório à governação de Luís Cabral, isto a despeito de outros governantes terem entretanto vindo a público comentar amargamente dislates e excessos. Filinto Barros, um governante que percorreu várias responsabilidades ministeriais neste tempo e no de Nino Vieira, escreve no seu “Testemunho” as nomeações por amiguismo, por puro compadrio, de gestores incompetentes e corruptos, de gente que praticou desfalques ou gestão danosa, tudo perdoado ou habilmente esquecido. Ângela Coutinho prefere circunscrever-se aos números, relatórios e notícias de jornais. E assim chegamos ao golpe de Estado, às acusações à ala cabo-verdiana, diferentes acusações, tais como corrupção, irresponsabilidade e laxismo. Aqui a organizadora toma partido: “Não se deram exemplos destas práticas, sendo que, a maioria dos membros do governo anterior foram reconduzidos para o governo de transição sob a responsabilidade do Conselho da Revolução”. Acontece que estas práticas vieram a ser denunciadas, como mais tarde as prepotências praticas ao tempo de Nino Vieira. Ângela Coutinho mostra-se crítica de Nino Vieira por este ter dito a seguir ao golpe de Estado de não estar a par de nada do que se passava no país, nomeadamente em relação à situação económica. Mas, no fundo, não foi o que disse Luís Cabral a Ramalho Eanes, quando lhe confessou que os ex-comandos tinham sido fuzilados?

Seguidamente, vamos passar ao crivo os textos inéditos de Luís Cabral.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14766: Notas de leitura (729): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (4) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Luís Cabral pode não ter tido responsabilidade "pela acção", mas teve, e muita, pela "falta dela".
Falta de coragem para criar condições ou para se opor, com êxito, aos desmandos dos 'operacionais'.
E ele tinha (teve) consciência disso.
E isso amargurava-o.
E morreu consumido por esse peso de consciência.
Não o iliba, mas ajuda a explicar.

Hélder S.

Antº Rosinha disse...

Foi pena que os fundadores do PAIGC, MPLA, FRELIMO e MLSTP, terem-se transformado nuns «terrorista» africanos só para não "perderem o comboio" das independências impostas pelos neo-colonialistas ingleses, franceses e belgas noutros países. (Juntemos a URSS e USA e Cuba e ONU)

Mesmo apesar da Guiné ter visto a selvajaria que neste blog se tem comentado, imaginemos as dimensões da barbárie angolanas e moçambicanas de guerra aberta por vários anos.

É que estes movimentos que saíram «vencedores» sobre os outros movimentos até tinham gente muito civilizada.

Foi pena que, apesar de alguns desses dirigentes já terem sido "estudantes do império" terem copiado processos a níveis de "bokassas, mobutus, lumumbas e idi amin".

Nós tugas não somos responsáveis, lutámos enquanto pudemos, contra tudo o que estava à vista de mau e de contra-natura.

Não se junta de um dia para o outro umas tantas tribos e se lhes diz que "tens aqui uma bandeira e um país", que essas tribos nunca viram e nem lhes diz nada.

A Europa está a ser inquirida por este crime, e o tribunal está implantado no Mediterrâneo e Ceuta.

São milhões de jovens sem qualquer prespectiva de vida.

Luís Cabral tinha um processo para evacuar os milhares de jovens que vagueavam pela «praça» de Bissau: Pelas 8 horas da manhã, mobilizava vários camiões com polícia em pontos estratégicos de acesso à cidade, e quem não tivesse emprego (99%?)após algumas cacetadas, e alguns gritos na esquadra ali perto dos bombeiros, eram marcados e recambiados para a tabanca de origem.

Luís veio para a sua tabanca na metrópole e teve muita sorte.

Cumprimentos

(Não recorri à wikipédia nem à guerra-do-furtado, como faz a maioria do pessoal que aqui mora)

Antº Rosinha disse...

A lingua portuguesa é muito traiçoeira, bolso e algibeira é a mesma coisa.

"Quem aqui mora, tal como eu, a maioria não faz uso da wikipédia"