Vigésimo segundo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Glória, Lola, a Ruça (3)
Hoje fomos à praia, estava um dia de céu limpo,
encostámos as sandálias, caminhámos por algum tempo,
parámos em frente ao mar, que na altura fazia
pequenas ondas, levantámos os olhos e fixámos o
horizonte, começámos a sonhar com a Península Ibérica,
com Portugal, a Glória, a quem também chamavam “Lola”
e, às vezes “Ruça”, tocou-nos no ombro, acordou-nos,
continuando com a sua história, cá vai.
Se o senhor Silvestre, pai do Jorge, assim o pensou,
também o fez, a Glória, a quem também chamavam “Lola”
e, às vezes “Ruça”, casou com o seu amor Jorge, houve
festa na casa do senhor Silvestre, pois era a pessoa com
mais haveres, os seus contactos resultaram, arranjaram
passaporte para o Jorge e para a Glória, que passados uns dias
se meteram num avião, rumo ao México.
Já no México, o Jorge e a Glória, (a partir de agora só se
chama Glória, pois já ninguém a conhece por “Lola” ou
“Ruça”, excepto o seu marido Jorge), ao saírem do
aeroporto, o calor, o trânsito, um pouco de receio das
pessoas, com alguma dificuldade em compreenderem o
idioma, depois de algumas asneiras, conseguiram entrar
em contacto com a pessoa que fazia a ligação aos
“passadores”, que falavam uma linguagem que na gíria
classificam de “portunhol”, que era uma espécie de
português abrasileirado e espanhol, misturado.
Tudo arranjado, a hora e o dia e, a ordem era:
- Vamos sair ao anoitecer, numa camioneta de carga,
pequena, pois só vamos oito pessoas. A camioneta vai
fechada, levam estes baldes para fazerem as vossas
necessidades, este lanche, uma garrafa de água para
cada um, mas não comam nem bebam, só se não
aguentarem, pois se comerem ou beberem têm que o
largar por baixo, isso vai dificultar ainda mais a vossa
vida. Possivelmente, teremos que andar toda a noite e
amanhã todo o dia, só amanhã pela noite estaremos na
fronteira perto da cidade de Tucson, no estado do Arizona.
Levem roupas leves, de preferência calças, sapatos para
caminhar muitos quilómetros, uma saca com alguma
roupa simples, pois essa saca também servirá de
almofada, assim como os vossos documentos de
identificação, dos vossos países. Com vocês vão dois
homens armados, se forem parados pela polícia, se
abrirem a camioneta, ninguém abre a boca, pois estes
homens irão disparar a matar. Chegados à fronteira, eles
serão os mensageiros, que vos darão ordem de sair no
momento exacto e, qual a direcção que devem tomar. Passam a fronteira, alguém estará do outro lado para vos
continuar a guiar, depois, cada um continuará a viagem
por sua conta e risco. Têm aqui um pequeno mapa da
área. Boa sorte, para todos. Ah, não se esqueçam de
levar dólares, nós mesmos os trocamos, um pouco
abaixo do câmbio.
Estas ordens, foram dadas pela manhã, não perguntaram
se compreendiam ou não toda esta conversação.
A Glória, aos poucos foi tomando conta de tudo, ouviu
com atenção, compreendeu algumas coisas, outras não.
O grupo era formado pelo Jorge e a Glória; dois rapazes,
um pouco escuros de pele, que tinham vindo das
Honduras; um casal ainda novo, que tinha vindo de São
Salvador, viajando, pendurados na “besta”, que é assim
como designam o comboio, que vindo do sul, atravessa
parte do território do México e, dois jovens brasileiros,
também novos, mesmo muito novos, não deviam ter mais do
que catorze ou quinze anos, que diziam que não
perceberem nada.
Os jovens brasileiros começaram logo por perguntar à
Glória:
- Não percebi nada. Levar um saco? E então esta mala
que a minha mãe me arrumou?
A Glória pensou logo nos irmãos:
- Querem ver que também tenho que tomar conta destes!
Desfizeram-se de alguns haveres, compraram uma
simples saca, onde meterem tudo o que entendiam que
deviam levar, sapatilhas para ambos e umas calças leves,
iguais para os dois, tudo roupas folgadas, a Glória
parecia um rapaz novo. Os jovens brasileiros, fizeram
tudo o que viram a Glória fazer.
As pessoas que atendiam na loja, onde compraram tudo
isto, já experientes nestas andanças, ficaram com alguns
dos seus haveres, explicaram tudo o que haviam de fazer,
deram-lhe algumas recomendações importantes, tais
como:
- Principalmente a senhora, tem que ser forte no carácter,
para com os outros em algumas situações. Não deixe que
ninguém lhe toque, sem sua autorização. Deve mesmo,
levar uma pequena faca, bem afiada, escondida nessa
saca, não tenha receio de a usar em caso de não se
sentir confortável, em alguma situação em que a sua
dignidade, possa vir a correr risco. Vai passar por
situações perigosas, principalmente para mulheres.
A Glória ouviu tudo isto com atenção, comprou uma faca
para si e outra para o Jorge, os jovens brasileiros fizeram
o mesmo, pelo menos parecia que tinham dois aliados.
Na hora combinada saíram, durante todo o percurso,
tirando a sede e o calor, resistiram ao resto. Tiveram uma
ou duas paragens, talvez para encher o tanque de
gasolina, numa dessas paragens, alguém, depois de dar
uns toques em código, levantou um bocadinho a porta
traseira, perguntando se iam todos vivos, introduzindo
umas garrafas de água.
Tony Borie, Junho de 2015
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 14 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14744: Libertando-me (Tony Borié) (21): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (2)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Muito bem....
Vamos aguardar pelo epílogo dessa viagem "a salto", para comentar a propósito.
Conhecia algumas histórias sobre a "ida para França", a passagem 'a salto' dos Pirinéus e antes também da fronteira luso-espanhola, mas nessa fronteira entre o México e os "States" só dos filmes...
Abraço
Hélder S.
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