segunda-feira, 4 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P15936: Notas de leitura (824): “A Guerra na Picada, Moçambique 1970”, por Rodrigues Soares, Chiado Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2015:

Queridos amigos,
Ocorre-me esporadicamente comparar as diferentes literaturas dos três teatros de operações, encontrar convergências, procurar tocar no fundo nas singularidades de cada uma.
Parti reticente para a leitura de "A Guerra na Picada", um título chocho, incaraterístico, todos nós combatemos em picadas. Aguentei uma toada de enorme sensaboria até chegar ao Cabo Delgado. Aqui as coisas mudaram de figura, as minas, homens e máquinas a explodir tomam conta da nossa respiração.
Admito que se tenha sofrido assim de Madina do Boé até ao Che-Che, na região de Aldeia Formosa, de Guileje a Mejo, mas havia também as emboscadas, aqui não, são minas em cadeia, montadas para que o inferno seja surpreendente. E lembrei-me de Mocímboa da Praia, onde perdi o mais querido dos amigo, o Carlos Sampaio, em 2 de Fevereiro de 1970.

Um abraço do
Mário


Parece que todas as minas do mundo se juntaram no Cabo Delgado (1)

Beja Santos

Sinto a necessidade, com alguma frequência, de comparar o que se escreveu e escreve sobre a guerra da Guiné com os teatros de Angola e Moçambique. Podem os acontecimentos provocar as mesmas emoções, há a similitude e analogias no mau comer, nas tempestades africanas, nos sofrimentos por quem vemos sofrer e morrer, os sentimentos de solidão e de abandono, os mesmos nós na garganta durante os patrulhamentos ou flagelações. Mas há a vastidão dos territórios de Angola e Moçambique, a despeito das selvas luxuriantes da Guiné das rias e dos braços de rios, uma vastidão que é explícita nas longas colunas no Planalto dos Macondes, nos Dembos, nas colinas que se têm que subir a custo, por exemplo.

“A Guerra na Picada, Moçambique 1970”, por Rodrigues Soares, Chiado Editora, 2014: confesso que inicialmente não me empolgou, acho o título inócuo, quem combateu fez a guerra na picada, e grande parte da descrição na fase dos preparativos, me recordou muitos e muitos outros livros de memórias. António Rodrigues Soares nasceu em Penacova, os pais partiram cedo para Moçambique, estudou e viveu em Coimbra, fez a recruta em Santarém e seguiu para o CISMI, em Tavira. Deram-lhe depois guia de marcha para Tancos, vai ser furriel sapador, e depois Bragança. O centro da sua vida é uma moçoila de Coimbra, Olinda. Está a embarcar, pertence ao BART 2901, ruma para Mocímboa da Praia do paquete Império. O seu destino é Nangololo, para os lados de Mueda. Sabemos que os seus pais estão em Moçambique, ainda não sabemos onde.

Desembarcaram em Mocímboa, delineia-se o mapa da guerra: “Só os homens da CART 2647, uns 40 quilómetros mais adiante, num cruzamento referenciado como sendo Oasse, abandonavam a coluna. Seguiam para o aquartelamento de Antadora, uns quilómetros mais adiante, por uma picada que atravessava o rio Lúrio, ligava o Chai a Macomia e continuava para Sul. As restantes companhias do batalhão prosseguiam em frente até Diaca”. Uma viagem que parece interminável, ouve-se também falar em Miteda e Sagal. E nas picadas usam-se laboriosamente ancinhos e picas. Ancinhos que tinham um pente com uns 50 centímetros de largura e um cabo com cerca de 3 metros de comprimentos, totalmente construídos em madeira. Já estamos num cenário bélico: “Aquela picada, a única que atravessava o planalto até Mueda, tinha uma única via. Por ali só transitavam veículos militares. Os rodados eram formados por dois sulcos que a tonelagem das viaturas moldara ao longo de anos. Rodados que era penteados e picados, na tentativa de detetar as minas que os guerrilheiros, dia após dia neles colocavam”. Procuram-se minas anticarro e minas antipessoais. As horas passam, os nervos são tensos, segue-se na orla do planalto e depois há uma descida, chegados ao fundo do declive iniciam a travessia do estreito, sobem para Sagal, veem-se crateras por todo o lado de minas que foram feitas explodir. Assim se percorreram 20 quilómetros até chegar a Sagal. Daqui segue-se para Diaca, vão se ouvindo rebentamentos ao longe, todos anseiam atingir rapidamente Nangololo: “Com muito trabalho e sacrifícios por parte dos militares de Sagal e de Mueda, acabámos por chegar ao nosso destino. No espaço de três quilómetros foram detetadas e neutralizadas 36 minas anticarro”.

O autor apresenta-nos Mueda, a capital da guerra, o melhor aquartelamento de Cabo Delgado, com um efetivo permanente de mais de um milhar de militares de vários ramos, uma boa pista de aviação e hospital.

O leitor prepare-se, porque iremos ouvir muito poucas referências a tiroteio, a emboscadas, a flagelações. É a mina quem está no altar da guerra, a FRELIMO semeia o pânico pondo toda a sorte de explosivos na picada, aquela viagem inicial deu para perceber que explodem viaturas, que se põem 11 minas ligadas em série por cordão detonante, com a sua dimensão trágica: “Quando fosse detetada a última mina da série, a única posicionada nos rodados, e fosse posteriormente neutralizada, esta faria explodir as restantes, colocadas no centro ou na berma da picada, apanhando todo o grupo desprevenido”. Demoraram quatro dias de Mocímboa até Mueda. Há imensa desolação na paisagem de Mueda até Nangololo seriam 40 quilómetros, pernoitaram em Miteda a cerca de 20 e poucos quilómetros de Mueda. Em Miteda são informados de que a guerrilha está assanhada, ali entre os postos 13 e 14, além de minas há emboscadas, ali se cruzam o trilho que passava na zona do Chindorilho e se estendia para Sul, vindo do Rovuma, rio que faz fronteira com a Tanzânia. E entre Miteda e Nangololo veio o batismo de fogo. Em Nangololo há mais gente a partir, os homens da CART 2648 vão para Muidumbe, do lado oposto a Mueda.

É um relato terrível, concentrado em picadas onde ancinhos e picas farejam minas. Os da 2648 começaram mal, cedo tiveram mortos e feridos. O autor descreve o eixo Mueda/Miteda/Nangololo/Muidumbe, estamos em território Maconde e percebemos a relação entre a geografia e a posição militar: “Nangololo, com Muidumbe a nascente e Miteda a poente, era um dos aquartelamentos situados mais a Sul no planalto Central. Do ponto de vista militar, estas três bases estariam por ali sobretudo para entreter a guerrilha”. Porque para o autor a luta era desigual, não havia ali homens suficientes para se fazerem patrulhamentos sistemáticos naquele planalto imenso. E se até agora todas as atenções convergem para as minas, chegou a vez de entrarem em cena as armadilhas. A unidade militar que foram render teria levantado as armadilhas que montara. Entretanto, o capim crescera desmesuradamente, havia novamente que desmatar e colocar novas armadilhas e registá-las. E começam os reabastecimentos, entram em ação os ancinhos e picas. Julga-se ter encontrado um engenho temível, o autor deixa-nos uma descrição singela, podemos senti-lo a suar em bica:
“Aparentava calma, mas todo eu era uma pilha de nervos. Aproximei-me da mina com a ponta de uma pica a zurrar pelo chão. Quando senti bater, debrucei-me para examinar melhor. O meu coração pulsava como o motor de explosão no limite das rotações. Ao de leve, com gestos poucos firmes, foi removendo a areia. Estremeci quando a ponta do dedo tocou numa superfície compacta. Aqui está ela, pensei. Fiz uma pausa. Aproveitei para limpar o suor com a manga do casaco camuflado e respirar fundo. Retomei a remoção da areia, redobrando cuidados, e uma pequena mancha acastanhada começou a aparecer. Era madeira, sem dúvida, tal como o invólucro das PMD 6, russas, que a guerrilha usava. Devia então, com um petardo, fazê-la explodir por simpatia. No entanto, qualquer coisa me dizia que rapasse um pouco mais: ao contrário das minas, a superfície que tateei pareceu-me curva. Assim fiz. A pequena mancha alastrou e surgiu uma figura escura e escamosa. Resultado: a mina pariu uma raiz”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P15926: Notas de leitura (823): “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, publicação do Estado-Maior do Exército, 1989 (Mário Beja Santos)

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