quinta-feira, 7 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P15947: Os nossos seres, saberes e lazeres (147): O ventre de Tomar (11) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Como se pode ver há ventres pançudos, de gente abastada, não falo de obesidade mórbida, este interior de casarão que vos mostro é uma casa cheia de requinte, mas lembra-me as obras de Santa Engrácia, vi um andar com apartamentos turísticos que devem ter custado um balúrdio, mas tudo para acabar, terá sido o proprietário anterior a quem faltou o fundo de maneio para ultimar espaços tão luxuriantes, o atual proprietário é bem capaz de não estar abonado para levar por diante este projeto faraónico. Mas dá que pensar como é que se investem milhões e não se leva até ao fim os trabalhos elementares. Como todos nós sabemos, não só uma pecha de Tomar...

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (11)

Beja Santos

Foi num daqueles passeios à beira do Nabão, ali para os lados da Pedreira que o olhar se alanceou para uma vasta e imponente construção, via-se à légua que se tratava de edificação histórica, talvez uma daquelas quintas que nasceu convento, e que se foi tornando vistosa e aformoseada ao longo dos séculos. Espevitado pela curiosidade, dei com o caminho que leva até ao portão, ninguém atendeu à chamada. Como quem tem boca vai a Roma, teimei em perguntar, até que cheguei a alguém que preparou encontro com o proprietário que franqueou as portas, esclarecendo detalhes já que o visitante trazia língua de perguntador. História longa de contar, nas últimas décadas intervieram vários proprietários, há para ali sonhos inconclusivos, projetos dilatados na ambição de um turismo singular em casa tão senhorial. O que para o caso interessa é confessar como o viajante se rendeu a tão rico património, mais uma peça a juntar a outras que fazem de Tomar um caso muito sério da cultura portuguesa.


Este é um grande salão, propício a festas, e com um toque de mistério, dizem que ali houve celas destinadas a que os monges se apercebessem que há muitas formas de cilícios, o que parece inacreditável pois viver numa cela com esta bela vista não é castigo nenhum.


Quem fez esta intervenção das ditas celas respeitou materiais ancestrais, o visitante pasma com a forma como se argamassam os tijolos presos num lindo madeirame que lhe dá tanta leveza. Se eram celas de castigo, os monges seguramente conversavam pelas paredes ou faziam coro pelas matinas e vésperas, devia ser bonito de se ouvir este cantochão pelos campos fora. Tenho para mim que estas paredes de tabique foi golpe de asa de arquiteto. Para quê, não sei, nunca vi celas abertas para salão de festas ou de cerimónias, se de convento falamos, é inimaginável ter havido sala capitular. Mas é bonito de ver, a parte e o todo, e a vista é deslumbrante, sai-se deste longo corredor e tem-se balcão virado para a natureza. Em séculos que já lá vão, ali se devia rezar a oração e ouvir murmurejar o Nabão. Quão felizes terão sido estes monges e estes lautos proprietários agrícolas!


É um pormenor, chama-se graciosidade e bom gosto, uma azulejaria que assinala uma época e uma floreira que quebra a austeridade na passagem para uma escadaria. Nem só da espetacularidade vive o homem, são estes sinais de cuidado estético que tornam a visita mais prazenteira.


Para falar com franqueza, não sei como era no passado, mas que há preocupações legítimas em garantir que este edifício tenha requinte ancestral ninguém duvida. Belo chão de tijoleira, e quando aqui entrei, não sei exatamente porquê, lembrei-me da capela dos Portocarreiros, no Convento de Cristo, uma estrutura típica de um severo maneirismo, aqui deslumbra espaço desafogado e, vamos lá, pela luminosidade.


O viajante saiu daquelas entranhas, regressou ao casco histórico, faz agora um percurso mundanal, vai lavar os olhos em artes decorativas, muito estima deambular por estas vitrinas, bem pensadas na altura, profundidade e largura, dá para ver cá de fora e entusiasticamente entrar, a luz ajuda muito e a severidade do fundo torna a porcelana um desejo para decorar qualquer tipo de mesa.



Direi até à saturação que a viagem nunca acaba os viajantes é que desfalecem, são instáveis nos seus amores pelos lugares. Não foi por acaso que as livrarias de novos e usados sempre criaram a noção de intimidade, aqui se entra nalguns casos com prazo e receita, mas o ideal é ser apanhado desprevenido, pegar num livro e ter um assento confortável, uma boa luz, estabelecer conversa com o livreiro, não é crime não comprar, às vezes até nos inclinamos para livros caros, o importante, o mais importante de tudo é saber que não se pode viver sem estes livros. Outro aspeto curioso é o fundo musical, de há muito que o viajante constatou que as livrarias têm uma música suave de fundo, que vitamina a serenidade da leitura. Abençoados espaços que aguardam o passado e o presente, não há nada como o contacto físico do livro, amar uma capa ou uma encadernação, acariciar um formato, estar repimpado a ler e ter o olhar sardónico do Eça de Queiroz a vigiar-nos sem darmos por isso.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 30 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15917: Os nossos seres, saberes e lazeres (146): O ventre de Tomar (10) (Mário Beja Santos)

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