quarta-feira, 22 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16227: Os nossos seres, saberes e lazeres (160): A pele de Tomar (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Ando a fotografar numa Primavera soturna, não é propriamente um Abril de águas mil mas quando se trata de uma cidade que diga diretamente com o campo é preciso olear a paciência por causa das nuvens, os caprichos do sol, a imprevista borrasca.
O que tem sido o meu intento não parece difícil adivinhar: Tomar tem muita história, formosos recantos, um casamento perpétuo entre casario sólido, as matas, as várzeas, os cabeços e um disperso mundo rural, às vezes fantasmático. O suprassumo da arquitetura centra-se na cidade, nesta quinta ou naqueloutra, o resto é aquele horror de arquitetura incaracterística que atravessa toda esta zona interior. Salva-se a natureza e alguns outros achados patrimoniais, caso da pegadas dos dinossauros num dos locais mais imprevistos do mundo.
Depois conversamos.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (10)

Beja Santos

É um estranho dia de uma estranha Primavera, com sol, chuva, vento e depois a acalmia. Afoito-me a uma jornada em que vou olhar e ver, nada de pé ligeiro, passear com tempo, procurar detalhes, ver realmente o que já se olhou e não magnetizou. Por exemplo, esta fachada, Arte Deco na Corredoura, nada de bizarro, Tomar fez e desfez no seu centro histórico, não foi burgo de exceção. Este edifício tem a vantagem de não ofender a escala, pertenço ao número de passantes que percorre este verdadeiro bulevar com o sentimento de que só falta a passadeira vermelha até chegar à Praça da República. Um outro passante perorava a meu lado: “Ah, se o senhor visse a azáfama que havia por aqui noutros tempos! E as casas bem tratadas, havia outro respeito”. Carpir não custa, o nó do problema assenta no desenvolvimento material e do que se passa nas nossas cabeças, as peças da civilização e da cultura. É preciso ter orgulho ou então descobri-lo, com humildade, com perseverança.


Atravessei a Ponte Velha, tenho um palpite que vou ver claramente visto algo que me chamou à atenção, preciso de confirmar. Ora cá está, três épocas distintas, uma casa de outras eras, um candeeiro que, sabe-se lá, até trabalhou a querosene e a antena das nossas televisões. Surpresa satisfeita.



Quando releio “Viagens na minha terra”, mais compreendo o Almeida Garrett, o fascínio pelas espontaneidades da natureza. Não venho à procura da Joaninha dos olhos verdes, venho ver em que ponto estamos na Primavera, já há estevas por todo o lado, papoilas, aquelas pingas de sangue de que falava um poeta inglês a propósito do sofrimento que aquela geração viveu nos campos da Flandres, na I Guerra Mundial, há margaridas e há esta planta inocente, em pequenos tapetes viceja e deixa estas pintas de um roxo esbranquiçado. Quanto mais simples mais belo.




Regresso à cidade, as distâncias são curtas entre os campos bucólicos e esta irresistível atração por portas, a sua única semelhança é servirem para entrar e sair, venho à procura de outros códigos, ombreiras de outras eras, madeiras bem mantidas, a coerência do caráter de todos os elementos como se a casa exigisse integralidade de todos os materiais, desde as clarabóias às soleiras. Homenagem àqueles que tratam bem as suas portas.




Quem diz portas diz janelas, há quem goste de estar dentro de casa e ver sem ser visto, há quem possa viver numa casa arranjada como uma bonita moldura de janela de outros tempos, há quem tenha refeito a casa e mantido uma impressionante unidade entre o feito e o refeito, há esta casa apalaçada, parece-me que adormecida ou abandonada, com grades dissuasoras, janelas de guilhotina e, acreditem, o que gostei mais foi na agitação das pedreiras a entrar e a sair dos ninhos, indiferentes à circulação rodoviária em frente à Várzea Pequena.


Digam lá se nestas ruas transversais não há imprevistos para a heráldica e a genealogia. Sei muito bem que houve conde e marquês de Tomar, que Bernardo da Costa Cabral é nome incontornável do liberalismo já sólido e que a Rainha D. Maria II não era indiferente aos seus conselhos. Mas temos aqui uma pedra de armas. A entrada é discreta, a caixa do correio está a precisar de uma correção, mas de quem será a linhagem de quem aqui viveu? E sem resposta se dá por fim do passeio, como amanhã promete não chover, por aqui perto se andará.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16203: Os nossos seres, saberes e lazeres (159): A pele de Tomar (9) (Mário Beja Santos)

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