Como o Mundo é (muito) pequeno comparado com o nosso Blogue, criou-se aqui uma cadeia que começa nas memórias do Dr. Adão Cruz, que passam para o seu filho Marcos, que as envia à Joana, que as envia ao pai Francisco, que por sua vez as faz chegar ao Blogue.
Esperemos que esta seja a primeira de muitas e belíssimas histórias que só o pessoal de Saúde pode contar, a exemplo de tantas outras que felizmente recheiam o nosso espólio.
MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA
1 - O Parto
Quando cheguei à Guiné, uma das primeiras preocupações que tive foi começar a conhecer as pessoas e os costumes. Para além de ser uma tarefa aliciante, era a melhor forma de me libertar do medo da guerra e da perspectiva pouco animadora de um regresso encaixotado.
Conhecer um povo, ainda que pequeno, originário de quarenta grupos étnicos, fragmentado e encurralado física e psicologicamente em zonas estanques por imposição de uma violenta guerra de guerrilha, não era fácil e a desvirtuação constituía um perigo possível.
Tentei iniciar a penetração neste novo mundo através da abertura que a minha missão de médico facultava e facilitava.
Com o tempo as janelas foram-se abrindo e hoje revejo com alguma saudade o imenso painel de mil cores, esse mar de sensações e vivências que nenhuma memória pode esquecer.
As mulheres de Bigene, e não só de Bigene, pariam no mesmo local onde defecavam, uma pequena cerca de esteiras nas traseiras da tabanca, longe da vista das pessoas e sobretudo dos homens, como se o acto de parir fosse indigno e imprudente, obrigando ao mais submisso recato.
Como se não bastasse, uns dias antes da data prevista para o parto atulhavam a vagina com bosta de vaca, a qual sofria pútridas fermentações que exalavam o cheiro mais nauseabundo que imaginar se pode.
Os tétanos, quer da mãe quer do recém-nascido, eram extremamente graves e frequentes, soube eu mais tarde.
Neste primeiro contacto fiquei boquiaberto e decidi actuar. Não seria difícil imaginar a resistência destas pessoas a qualquer tipo de reforma dos costumes, se não fosse tido em conta um facto importante.
Ao contrário do que se diz e do que se pensa, os negros, sejam eles homens ou mulheres, são muito espertos, nada ficando a dever aos brancos e superando-os em muitas coisas dentro da mesma escala de cultura.Estou disposto a comprová-lo através de exemplos sérios nascidos da minha experiência.
Só assim foi possível a rápida aceitação e compreensão dos esclarecimentos que fiz na tabanca acerca de infecções e higiene, acerca do papel da mãe, da dignidade do parto e das vantagens de este ser efectuado na nossa enfermaria, ainda que pequena e modesta.
Não demorou muito tempo a aparecer a primeira parturiente.
Era uma linda mulher grávida de termo que não falava nada que se percebesse. Não sou capaz de precisar nesta altura a etnia, mas lembro-me que nem os outros negros entendiam o seu dialecto.
Mas o seu sorriso, apesar das dores, era tão aberto e confiante que não precisávamos de melhor forma de comunicação e entendimento.
Até os olhos do meu enfermeiro Pimentinha brilharam de entusiasmo, entusiasmo que o levou a ler de ponta a ponta a minha sebenta de obstetrícia e a transformar-se em pouco tempo num habilidoso parteiro e carinhoso puericultor.
Nas minhas mãos um pouco trémulas eu segurava o fruto do primeiro parto que assisti na Guiné.
Era um belo rapazinho que, apesar da pobreza alimentar daquela gente, nasceu bem nutrido e de uma cor rosa-marfim.
Os negros nascem brancos, como se sabe. Uma deliciosa ironia anti-racista da natureza.
Embora as nossas dificuldades logísticas e económicas fossem grandes, lá consegui oferecer-lhe o alimento, sob a forma de leite condensado, indispensável aos primeiros meses de aleitamento, pois a mãe parecia ter esgotado todas as reservas das suas entranhas ao gerá-lo de maneira tão eutrófica e tão perfeita.
Umas semanas após o nascimento vem ter comigo o Chefe de Posto e diz-me sorridente:
- "Doutor, vou dar-lhe uma linda notícia que a mim, pessoalmente, me enterneceu. A mãe daquele catraio... aquele primeiro parto que o doutor fez, lembra-se?... A mãe veio registá-lo há dias, oficialmente, com o nome de Adão Doutor".
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Comentário do editor:
Utilizando a mesma cadeia que faz chegar a nós as memórias do Dr. Adão Cruz, convidámo-lo a fazer parte da nossa tertúlia, esta família de ex-combatentes da Guiné, onde o pessoal da Saúde tem um lugar especial.
Nem só de operações militares se fez guerra, as operações cirúrgicas foram bem mais importantes pois não distinguiam amigos ou inimigos.
Caro Dr. Adão, ficamos à sua espera, tem a porta sempre aberta.
CV
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Notas do editor
(*) - Vd. poste de 25 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16134: (In)citações (91): "Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial", diz Marcos Cruz, filho do Dr. Adão Cruz, um dos médicos do BCAÇ 1887 (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)
1 comentário:
Aqui vai uma mão cheia de parabéns em cadeia: ao Francisco, à Joana, ao Marco Cruz, ao dr. Adão Cruz e à mãe do Adão Doutor e ao Adão Doutor (se ainda forem vivos, como muito desejamos!)...
É uma história de ternura, esta, do nosso jovem médico militar e da sua primeira parturiente. E um exemplo muito concreto e didático do que é a promoção da saúde, do que é a saúde pública, de que como se pode mudar, parar, inverter, aquilo que é parece o trágico destino de muitas mulheres e crianças, reféns do inferno onde nascem, crescem e morrem...
Esta história devia figurar no manuais de formação dos nossos profissionais de saúde, médicos, enfermeiros e outros...
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