sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16468: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (48): O filme das cartas de amor e guerra de António Lobo Antunes, realizado por Ivo M. Ferreira


Fotograma do filme "Cartas da Guerra",  do realizador portuguiês Ivo M. Ferreira, em exibição nos cinemas. Diversos "clips" (vídeos) podem ser vistos aui, no sítio O Som e a Fúria 

Sinopse

"1971. António vê a sua vida brutalmente interrompida quando é incorporado no exército português, para servir como médico numa das piores zonas da guerra colonial – o Leste de Angola. Longe de tudo que ama, escreve cartas à mulher à medida que se afunda num cenário de crescente violência. Enquanto percorre diversos aquartelamentos, apaixona-se por África e amadurece politicamente. A seu lado, uma geração desespera pelo regresso. Na incerteza dos acontecimentos de guerra, apenas as cartas o podem fazer sobreviver."



1. Mensagem do Antº Rosinha


[ Antº Rosinha é um dos nossos 'mais velhos', andou por Angola, nas décadas de 50/60/70, do século passado, fez o serviço militar em Angola, foi fur mil, em 1961/62, diz que foi 'colon' até 1974... 'Retornado', andou por aí (, com passagem pelo Brasil), até ir conhecer a 'pátria de Cabral', a Guiné-Bissau, onde foi 'cooperante', tendo trabalhado largos anos (1987/93) como topógrafo da TECNIL, a empresa que abriu todas ou quase todas as estradas que conhecemos na Guiné, antes e depois da 'independência'; é colunista do nosso blogue com a série 'Caderno de notas de um mais velho']

Data: 9 de setembro de 2016 às 00:02

Assunto: O Filme das Cartas de Lobo Antunes


Não sei será tão útil a publicação... Mas aqui vão as minhas impressões [, depois de ver o filme, "Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira, baseado nas cartas que o António Lobo Antunes escreveu à mulher durante a guerra colonial].

Foi uma maneira muito interessante de pôr no cinema o espírito de revolta contra a guerra, nas cartas de amor, e dor da separação de um jovem casal.

O suplício da separação conjugal que aquela guerra provocou no médico sente-se permanentemente na voz permanente feminina (falha aí alguma coisa, apetecia que falasse em inglês e termos as legendas em Português) e num major, que desesperado pede ao médico para lhe inventar uma doença que o devolvesse para o ente querido.

Ora quando o major está desesperado, imagina-se que a tropa toda em geral estará no mesmo estado de espírito.

A fotografia dos quartéis retrata bem o espírito claustrofóbico dos 100 x 100 de arame farpado no meu entender e penso que ALA [, António Lobo Antunes,] também sente da mesma maneira a «preto e branco»

Mas embora para ALA aquilo tudo fosse o Cú de Judas nas cartas e no resto, a fotografia faz o gosto ao espírito negativista da guerra e da terra, do autor das cartas, e aquelas paisagens parecem mesmo um fim do mundo a «preto e branco», o que na realidade é a parte totalmente irreal, pois que ao mostrarem alguns elefantes a banharem-se num rio, que possivelmente será na reserva de caça da Cameia, rio Cassai com quedas maior que o Corubal, paraísos na terra, onde algumas anharas se veem secas num tom a preto e branco, são iguais às maiores bolanhas da Guiné mas com rios de grandes caudais de água limpíssima (e com diamantes), a imagem, tirando uma viagem de helicóptero, não dá ideia da beleza da região.

Portanto aqueles espaços abertos do leste de Angola (cús de Judas), muita água, muita caça muito verde, no filme parece mesmo uma terra triste, pobre e de miséria como refere algures, nas cartas ALA.

Fui ouvir novamente a «cumprimentação»,  as «mantenhas» à maneira do leste dos quiocos, o «moio» que ALA já usava na psico-social.

O médico também se viu de G3 na mão em patrulha a pé, e bolsa de primeiros socorros a tiracolo que na minha guerra de 13 anos nunca tinha visto.

Vemos um soldado atingido nas costas e perde a vida e há feridos e mortos numa mina.

Há uma sanzala queimada, também entram flechas, mas houve um fuzilamento, se não interpretei errado, o que pensava eu que nenhum comandante de batalhão permitia (vivia eu, enganado ?).

Todos estes acontecimentos, com a voz feminina permanentemente a ler as cartas e alguma música de fundo.

Li o livro, não me lembro que fale no elemento "lavadeira",  no filme também não se vê nenhum tropa a dar a roupa a nenhuma lavadeira.

O único assédio que se vê foi de um branco (civil, colonialista) num bar levar um nega da garota, «calcinha»,  "nem qui fossis tinenti".

Há uma cena que não interpretei completamente que é um militar completamente despido, fugir de arma na mão para dentro da mata. Vê-se a seguir militares a percorrer a pé e de Jeep campos e rios,
penso que seria à procura desse nu foragido.

Uma coisa que não se vê, foi ninguém ir de férias ou de folga à cidade mais próxima ou à capital, o que era prática frequente na tropa em Angola.

E os 24 meses obrigatórios não eram passados no "mato", pelo menos alguns meses eram as companhias transferidas para as capitais de distrito sendo que em geral era para Luanda e Sul de Angola. Esse pormenor não se vê no filme mas é mencionado no livro das cartas.

O essencial das cartas está lá.

Não se vê uma lerpa na caserna, só se vê uma suecada ou bisca, num descanso da patrulha.

A intensidade da guerra está bastante bem representada para o que se ouvia dizer naquele tempo.

Como repito às vezes, aqueles domínios também foram meus e nunca ouvi lá um tiro.

Não creio que vá ter muitos jovens a ver o filme, é mais gente que andou lá ou senhoras, antigas madrinhas de guerra.

Pena passar desapercebida a qualidade literária.

Cumprimentos
Antº Rosinha

______________

Nota do editor:

Último poste da série > 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16379; Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (47): todas as colonizações são más, até aquelas que os portugueses começaram... e outros, "brancos, amarelos e negros" estão continuando... E vivam os guaranis do Brasil que se recusam a ir aos Jogos Olímpicos do Rio 2016

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rosinha, o filme não é (nem pretende ser) uma versão portuguesa, pobrezinha, do "África Minha"... Mas foi filmado em Angola, nas "terras do fim do mundo"... Um dos técnicos morreu de paludismo", ao que julgo saber.

ASqui vão dois excertos de entrevista com o realizador:

ENTREVISTA A IVO M. FERREIRA
A propósito de 'Cartas da Guerra'
Agenda cultural de Lisboa, 9(9(2016

http://www.agendalx.pt/artigo/entrevista-ivo-m-ferreira#.V9Kh_PkrIdU


(...) O filme tem grandes meios de produção, algo pouco usual no cinema português. Foi fácil conseguir financiamentos para o filme?

Há projetos que se conseguem fazer com pouco dinheiro. Este não era um deles. Isto porque não queria filmar sem ser em África. Era para mim algo categórico e importante porque o espaço influencia-me muito. Mas isso também fez com que o financiamento fosse mais difícil. Havia um risco grande de as coisas correrem mal, o que leva à desconfiança por parte dos investidores estrangeiros. Por outro lado, eu também não tinha nenhum trabalho feito anteriormente que pudesse ilustrar o que poderia ser feito. Por isso avançámos conscientes de que iríamos gastar todo o dinheiro que tínhamos na rodagem. Isto implicava penhorar os salários do realizador, produtor… Dois anos depois voltámos a tentar o financiamento fora, agora com um trabalho concreto, filmado e pode parecer exagerado, mas em poucas horas conseguimos financiar o filme com dinheiro estrangeiro.

Como foi filmar em Angola?

Foi fantástico, fortíssimo e horrível também. Filmamos no Cuando Cubango, uma zona que para os próprios angolanos é muito remota, chamam-lhes as terras do fim do mundo. Tínhamos que montar o décor, o que implicava um aquartelamento construído por nós. Queria que estivéssemos perto de uma aldeia, com um rio, uma planície e precisava de uma ponte destruída para uma das cenas do filme. Encontrámos a ponte, que estava de facto destruída. Isto implicava que para passarmos com o décor a tínhamos de reconstruir e foi literalmente o que fizemos, com a ajuda das aldeias à volta. Foi uma experiência fabulosa, apesar das doenças, dos crocodilos e do isolamento.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mais outro excerto para se perceber a opçºao pelo "preto e branco":


ENTREVISTA A IVO M. FERREIRA
A propósito de 'Cartas da Guerra'
Agenda cultural de Lisboa, 9(9(2016

http://www.agendalx.pt/artigo/entrevista-ivo-m-ferreira#.V9Kh_PkrIdU



O olhar de Miguel Nunes é uma das coisas que mais impressiona ao longo do filme. Remete para o cinema clássico, para o olhar puro de um Gary Cooper em John Doe ou de um Henry Fonda nas Vinhas da Ira. Foi intencional?

Uma coisa era certa, o protagonista tinha que ser bonito e ter olhos claros, tal como o António Lobo Antunes. Era uma das características que o distinguia dos outros, que o tornava especial, para além de ser um intelectual incrível. Realmente quis trabalhar esse lado de época, de um clássico intemporal. Também nesse sentido optei por filmar a preto e branco. Está relacionado com a nossa iconografia plástica da guerra. A documentação que temos é toda a preto e branco. Por outro lado, estava a narrar a história de alguém que é uma pessoa viva, conhecida e de alguma forma sentia-me prisioneiro dessa figura pública. O preto e branco foi como se colocasse um filtro. Quando comecei a filmar assumi que aquela era a minha história, o meu filme, independentemente de ser uma biografia.

Antº Rosinha disse...

Luís, de cinema apenas sei sentar-me na plateia ou no balcão aos sábado no Miramar ou Restauração em Luanda e acabou.

Mas a minha impressão é que o filme representa boa parte do sentir que Lobo Antunes descreve nas suas cartas (que eu li muito do livro, antes de saber que se ia fazer um filme)

Não tinha lido as entrevistas do realizador que em boa hora trazes, como sempre.

Afinal até pareço um grande cinéfilo a fazer a crítica de um filme, carago!

E,como digo, pena que a qualidade literária passe desapercebida (no cinema a leitura das cartas "esquece-se" mais do que nos clips).

O filme está conforme e não estava à espera de ver um filme do tarzan na selva ou do Stalone no Vietnam.

Sobre a insalubridade e pontes daquelas no ano de 2016? imagina Henrique Galvão nos anos 30, tu no Xime e eu no Cuando-Cubango nos anos 60 e 70, e Serpa Pinto no tempo de D Carlos na nascente do Zambeze até à foz.

Também o Realizador Ivo Ferreira já está a ajudar a escrever a história da nossa geração.