quarta-feira, 26 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17619: Os nossos seres, saberes e lazeres (223): De Lisboa para Lovaina, daqui para Valeta: À procura do Grão-Mestre António Manoel de Vilhena (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 12 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Foi a primeira incursão por La Valetta.
Como se tem sete dias inteiros para deambular pelos 246 quilómetros quadrados de Malta e 67 quilómetros de Gozo, como se não pretende ir nem à Sicília nem mesmo à Líbia, como se tem tempo para ouvir o Maltês que é uma língua semítica parente do árabe e do hebraico e que é a única língua semítica escrita com o alfabeto latino, e onde felizmente o inglês é língua nacional e os italianos se fazem facilmente entender, há mais do que tempo para bisbilhotar sem ânsias, La Valetta tem muito para oferecer e guarda lembranças dos portugueses. Aqui se fala do Marquês de Niza, que resistiu à armada napoleónica. Vamos encontrar referências a um grão-mestre que foi determinante na ilha, António Manoel de Vilhena, e há referências ao albergue de Castela e Portugal, aqui se domiciliavam espanhóis e portugueses, cavaleiros da Ordem de Malta, os Hospitalários a quem o Imperador Carlos V ofereceu este espaço para resistir aos turcos. O imperador fez muito bem, a Ordem de Malta, extinta por Napoleão, lavrou aqui páginas imorredouras que a História agradece.

Um abraço do
Mário


De Lisboa para Lovaina, daqui para Valeta: 
À procura do Grão-Mestre António Manoel de Vilhena (2)

Beja Santos

Tivesse o viandante aqui chegado para uma estadia curtíssima, cumpria aquele ritual de andar a correr entre o melhor museu, a igreja mais sublime, o café mais emblemático, os panoramas retumbantes, com visitas à mistura de palácios e até uma viagem de autocarro para dizer que tinha ficado a conhecer La Valetta, património mundial da humanidade, sobretudo devido à Ordem de Malta, ao domínio britânico e à omnipresente cultura italiana. Mas não, o viandante vem por sete dias limpos, tem tempo para farejar cantos e recantos, comprou um bilhete de autocarro que dura sete dias em Malta e Gozo. Veio para se inteirar, do significante ao pormenor que lhe cala o coração. Quem diria que este espaço é de uma banda filarmónica maltesa criada no século passado, geminada com a de Como, do Norte de Itália, agora é um restaurante com brilho descendente onde o viandante pediu uma cerveja e depois um esparguete com molho de tomate, a que se seguiu um digestivo. Um espaço bonito, uma saudade de dias melhores…



A coluna vertebral de La Valeta cosmopolita é a Republic Street, esta escultura está bem perto da Concatedral de S. João, aqui se alberga um notabilíssimo quadro de Caravaggio. Isto é só para dizer ao leitor que o viandante nunca viu nas suas andanças tanta escultura a corpo inteiro ou busto, nas cidades, vilas e aldeias, fica-se mesmo com a ideia de que Malta está profundamente agradecida a políticos, músicos, heróis, religiosos. É com este orgulho que se passa para o orgulho do próprio viandante com as lápides que se seguem.


Numa das paredes do palácio presidencial, guarda-se o registo da concessão, em Abril de 1942, por Jorge VI da George Cross, condecoração extraordinária por atos heróicos. Os alemães estão no auge, julgam que vão dominar o Mediterrâneo, ainda não perderam o Norte de África completamente, consideram Malta uma base naval estratégica, bombardeiam a capital sem dó nem piedade. Malta resistirá, não esqueçamos que é domínio britânico, nos subterrâneos destes imensos fortins funciona a célula nervosa de transmissões aéreas e aeronavais. Quem vê hoje a bandeira nacional de Malta reparará que para além dos panos com duas cores está lá a George Cross.


Passeia-se agora o viandante num espaço magnífico, os Jardins Superiores Barrakka, daqui se desfruta um panorama único sobre o porto grande de La Valetta cercado por poderosíssimas muralhas, a Ordem de Malta recebeu doações de vulto de muitas nações para que a ilha fosse inexpugnável às arremetidas do sultão otomano. Por ironia, quando se constrói esta fortaleza gigantesca, que nos corta a respiração, já o império otomano está exangue, incapaz de querer controlar o Mediterrâneo. Nestes jardins presta-se homenagem a diferentes heróis e a diferentes eventos. Por exemplo, o encontro entre Churchill e Roosevelt, a caminho da conferência de Ialta. E há uma lápide que agradece ao Marquês de Niza e aos seus heróicos marinheiros. E há razão segura para tanta exaltação. A armada napoleónica tenta conquistar a cidade, o Marquês de Niza agradeceu muito as condições de rendição propostas mas disse aos franceses que só por cima do seu cadáver. Resistiu heroicamente, Nelson não lhe regateou os mais rasgados elogios. Para um português, esta lápide e as circunstâncias da dedicatória, é sobejo motivo de orgulho.


É portanto nestes Jardins Superiores Barrakka que se pode tomar a dimensão do porto de La Valeta, estas peças de artilharia são hoje um número turístico, as varandas enchem-se de curiosos para ouvir o disparo do meio-dia da bateria de salvação de artilharia.


Os jardins são aprazíveis, por aqui o viandante cirandou, já gratificado com o comportamento heróico do Marquês de Niza, que não deu abébias à poderosa esquadra napoleónica. Vale a pena insistir que há esculturas de todos os formatos e evocações. Chamou à atenção do viandante os Gavroches, alusivo à criançada de Os Miseráveis, de Vítor Hugo.


Atenda-se a este pormenor, ao fundo um edifício de indiscutível traçado à italiana, à direita um hotel com janelas avarandadas, é assim por toda a ilha e mesmo em Gozo. Ao fundo percebe-se bem, é uma tradição que vem dos árabes, janelas com ripas inclinadas, permitem ver para fora sem ser visto. A janela avarandada aformoseia qualquer fachada simplória, altera as dimensões, dá-lhe uma relativa imponência, não é por acaso que este mundo maltês tem uma natural garridice, no seu calcário amarelado e o sol a fulgir em tanta cor viva das fachadas.


Impõe-se uma nova pausa, há que decidir em visitar o museu, as fortificações, o Palácio do Grão-Mestre. Depois de alguma hesitação, o viandante encaminha-se para a Igreja do Naufrágio de S. Paulo, um dos locais de culto de Malta mais distinguidos. Nada de especial no exterior, com a sua fachada neogótico oitocentista, o estarrecedor é o interior do templo. Malta, para além de bustos e escultura em quase todas as ruas distingue-se pelas suas cúpulas enormes. Há qualquer coisa de transcendente nesta, ou então trata-se da ilusão do viandante, que não vem à procura das relíquias de S. Paulo, uma delas, dizem é um osso do pulso direito, e outra um fragmento da coluna em que terá sido decapitado, o que para o caso interessa é que o viandante ali ficou especado a interrogar os céus e a saudar a existência que lhe tem permitido contemplar tanta beleza. Antes daqui se fazer uma paragem, recorde-se que vem nos Atos dos Apóstolos que Paulo naufragou em Malta no ano 60 quando ia a caminho de Roma. A Bíblia diz que ele libertou a ilha de cobras venenosas e que o seu zelo evangélico e poder curativos levaram à importante conversão do governador romano, passo decisivo para semear o cristianismo na ilha. Seja como for, quaisquer que tenha sido a libertação das cobras venenosas, é aqui que o viandante está a ganhar forças para continuar a viagem.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17600: Os nossos seres, saberes e lazeres (222): De Lisboa para Lovaina, daqui para Valeta: À procura do grão-mestre António Manoel de Vilhena (1) (Mário Beja Santos)

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