sábado, 29 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17628: Historiografia da presença portuguesa em África (83): Um testemunho sobre a deportação de Abdul Indjai em 1919 (Mário Beja Santos)

Abdul Injai
Foto editada


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
O Gabinete de Património Histórico da Caixa Geral de Depósitos possui todo o riquíssimo arquivo do BNU. Por ali ando, a ler relatórios e documentação avulsa, nesta primeira fase circunscrito a agência de Bolama.
Esta agência entrou em funções em 1903 e funcionou até ao fim da capital em Bolama, 1941. A documentação que eu tenho consultado começa na I Guerra Mundial, e presta-se a vários tipos de surpresas. O que há de mais surpreendente é, sobretudo na fase em que a agência de Bolama corresponde a um período vigoroso da vida da capital e do seu comércio, as apreciações por vezes chocantes do gerente, não no relatório mas num anexo, é de admitir que fosse para leitura confidencial, no topo da administração em Lisboa, esta devia autorizar o uso de terminologia quase bombástica ao relator.
E este ofício com informação sobre a deportação de Abdul Injai é uma bela peça, é com muito orgulho que vos apresento o seu teor.

Um abraço do
Mário


Sobre a deportação de Abdul Injai em 1919, um testemunho

Beja Santos

A minha mais recente investigação dá-me imensas satisfações, junto tudo o que posso e o que de pertinente encontro escrito a partir da agência em Bolama do BNU, asseguro-vos que há para ali documentação relevante, necessariamente para ser compulsada com outras fontes documentais.

Há um ponto enigmático do funcionamento daqueles relatórios para o qual ainda não encontrei justificação plausível. O gerente prepara um copioso relatório que descreve o ano financeiro, as letras protestadas, os créditos, o dinheiro estrangeiro, o mais que se sabe. Findo este documento segue-se um anexo onde por vezes encontramos comentários chocantes, frases desbocadas, apreciações eminentemente políticas. Devia haver um protocolo interno em que a administração em Lisboa solicitava comentários discretos ao gerentes, seria uma forma dos decisores, ao nível do topo da administração, conhecerem, caso a caso, o que corria bem e mal na colónia, tinha ali materiais para previsão, especulo eu.


Aqui há uns dias foi lançado um mote sobre o mais que controverso Abdul Indjai, cada um de nós deu as suas razões. Pois nas minhas andanças acabo de encontrar com data de 25 de Agosto de 1919 um documento dirigido a Lisboa, tendo como assunto “Guerras”. Vejamos o teor do ofício enviado pelo gerente:
“Tendo-se revelado o régulo Abdul Indjai da região do Oio, foi batido pelas forças do governo e aprisionado bem como os seus conselheiros. Estão já em Bolama.
Este régulo era um dos de mais prestígio na Guiné e de nomeada pelos atos de banditismo praticados, que se estendiam até dentro do território das colónias estrangeiras fronteiras à nossa, o que em tempos deu lugar a reclamações diplomáticas por parte dos governos francês e inglês. Há anos que foi batido e deportado para S. Tomé, conseguiu, quando passou por ali em viagem às colónias o falecido Príncipe Real D. Luís Filipe, ser indultado, regressando à Guiné.
Quando das operações levadas a efeito para bater os papéis o governo utilizou os seus serviços, tendo desempenhado então papel preponderante e exercendo todos os excessos sobre os vencidos e pilhando algumas milhares de cabeças de gado.
Acabada a campanha não se julgou suficientemente pago, ficou com armas e vinha de exigência em exigência rebelando-se contra o governo. Dotado de grande astúcia e muito inteligente, chegou a impor ao governo que lhe fosse dada uma percentagem sobre todo o imposto de palhota cobrado atualmente nas regiões que ele ajudou a bater, substituição de oficiais e sargentos em determinados postos e ainda outras exigências. Ultimamente preparava-se para tomar Farim e vir até Bissau. O comércio estava já temendo que com ele fizessem causa outros régulos, quando numa feliz operação foi cercado e aprisionado. Morreu um alferes e algumas praças indígenas.
Da parte dos rebeldes houve algumas centenas de mortes não só devido aos tiros da artilharia como ao corte de cabeças feitos pelos auxiliares e pelo gentio que vinha sofrendo os rigores da gente do régulo preso. 
Depois deste feliz resultado desenhou-se porém um certo movimento político contra o governador, capitaneado segundo dizem pelo Major Médico Francisco Regala, que faz serviço em Bissau, que veio aqui, levando alguns membros do Conselho do Governo a votarem contra a expulsão da colónia, do régulo, e ser antes submetido a julgamento dos tribunais. Este julgamento seria demoradíssimo e talvez impossível pela dificuldade de se cumprirem determinadas formalidades judiciais, parecendo que havia só o intuito de protelar a questão com fins políticos. O certo é que o Conselho em sessão consultiva votou por maioria que fosse entregue aos tribunais e não expulso. Este facto causou certo alarme entre o comércio pois a permanência na província do prisioneiro era certamente a repetição dos factos ocorridos e um incitamento para outros régulos.
Hoje reuniu de novo o Conselho do Governo em sessão deliberativa, e talvez porque alguns chefes de serviço reconhecessem o caminho errado que iam seguindo com politiquices contra o governador, acompanharam os vogais eleitos votando por maioria a expulsão da colónia por 10 anos, máximo período que a carta orgânica permite, fixando-lhe para cumprimento do desterro, por proposta do Governador, a ilha da Madeira”.

Em rigor, Abdul Injai parte para Cabo Verde e ensaia a sua defesa, adoece e ali morre, nunca chegou a ir à ilha da Madeira. Este testemunho evidencia os excessos a que se entregou um homem que foi figura determinante nas campanhas de Teixeira Pinto, acirrou ódios nas populações, intimidou a administração, inquietou os comerciantes, ficou literalmente só como qualquer tirano descontrolado. Um testemunho destes vale pelo que vale, nunca pode ser tomado como verdade axiomática, há que comparar, envolver outros testemunhos até encontrar a resposta mais imparcial possível, com base no juízo crítico do cientista social. É assim que se faz a História.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17609: Historiografia da presença portuguesa em África (82): o caso de Abdul Injai: "Roma não paga a traidores" (António J. Pereira da Costa).... "mas Lisboa e Paris também não" (Cherno Baldé)... Ainda comentários de Hélder Sousa, Mário Beja Santos e Nuno Rubim

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