segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17815: Notas de leitura (1000): “A França contra África”, por Mongo Beti; Editorial Caminho, 2000 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2016:

Queridos amigos,

Foi uma grande surpresa conhecer este patriota camaronense, fez a sua longa vida de professor em França e voltou ao país muitas décadas depois. É uma poderosa água-forte da África francófona pós-independente e as subtis cumplicidades e conivências com o poder e os partidos políticos franceses.
Escrito num período de transição, a seguir à Guerra Fria, encontramos aqui situações análogas às que temos identificado na Guiné-Bissau: a decrepitude das infraestruturas, o mandarinato dos governantes e de quem circula à sua volta; o lixo por todo o lado, a degradação do ensino e a perda do sentido do Estado.

Livro primorosamente escrito, uma denúncia corajosa que nos dilata o horizonte e faz perceber por onde passam os porquês da inércia em que permanece a África negra.

Um abraço do
Mário


Há alguma analogia possível entre os Camarões e a Guiné-Bissau? (2)

Beja Santos

O título deste texto pode parecer surpreendente, o que é que há de comum entre os Camarões e a Guiné-Bissau. Continuando a falar do livro “A França contra a África”, de Mongo Beti [foto à direita], Editorial Caminho 2000, os Camarões estendem-se por 470 mil quilómetros quadrados, tinham à data da redação do livro 12 milhões de habitantes, é a República francófona proporcionalmente mais povoada da África Central, tem recursos como o café e o cacau e o petróleo. Estamos a falar de um país que depois da independência viveu em ditadura, com uma feroz polícia política e um círculo privado de gente abastada à volta do ditador. Mongo Beti desvela a degradação do país a diferentes níveis, a progressiva inação das infraestruturas e dos serviços públicos, mostra um desemprego galopante, a falta de liberdade de expressão, um sistema universitário inoperante.

Assim como os polícias são tentados a transformarem-se em bandidos, a fraude e o contrabando são outras duas pestes e diz sem hesitações: “O país está mergulhado numa atmosfera fétida de fraudes e falsificações que o asfixiam lenta mas seguramente. É como um apocalipse rastejante”. O petróleo foi para os países africanos francófonos uma maldição, a população jamais foi ouvida e não há ilusões entre a aliança das companhias francesas como a Total e a Elf-Aquitane e os ditadores. O regime nega-se a prestar contas, nem mesmo ao Banco Mundial e ao FMI. Os lucros das petrolíferas são entregues ao ditador, que os desbarata alegremente. O fenómeno da gestão do petróleo na África francófona tem muito a ver com a Guerra Fria, o Ocidente e particularmente a França olharam para esta região como um domínio neocolonial, e o autor vai mais longe: “O destino do petróleo africano é o de assegurar a independência energética da França, não de proporcionar a felicidade dos africanos, para os quais mais valia que ele não existisse”.

A seguir Mongo Beti fala-nos dos bancos falidos devido a gestão danosa, empréstimos à claque do regime, que em muitíssimos casos não honrou os seus compromissos. A banca francesa lá está para endireitar as contas. Quando, em 1990, num discurso célebre, François Mitterand anunciou que chegara a hora de instituir as liberdades e regimes democráticos no continente africano, houve maquilhagens a que se aliaram as autoridades francesas, os partidos da direita e da esquerda mostraram-se favoráveis à continuação do ditador no poder. Os franceses estabeleceram desde a independência um relacionamento com a claque fiel do regime, assiste-se a uma dança de cadeira, a classe dirigente, totalmente inapta para a inovação vive exclusivamente preocupada em defender os exorbitantes privilégios acumulados durante mais de 30 anos, Paris e os partidos políticos assobiam para o lado.

A corrupção dá por diferentes nomes, quem quer emprego tem que mostrar fidelidade ao partido único e ao seu chefe em suma, terá de se corromper, deixar de se preocupar com essas questões da integridade do caráter. E pertencer à claque é ter acesso às benesses do petróleo e dos apoios pecuniários que são escandalosamente desviados dos projetos destinados ao desenvolvimento para os bolsos destes pequenos mandarins tão descarados que exibem sem dificuldade os valores do seu parque automóvel. A democracia continua a ser um simulacro, o regime pode inclusivamente mandar espancar e torturar os seus opositores. De um modo geral, na Costa do Marfim, no Togo, no Congo, nos Camarões, na República Centro Africana, os aliados de Paris lançaram os seus exércitos tribais para um braço de ferro, travando os processos de democratização. Mais adiante, o autor recorda-nos que a ditadura camaronesa, tal como a ditadura no Haiti, oferece a observador todos os sinais de uma máfia. Não há nada de semelhante nos Camarões onde os dirigentes são provenientes de todas as etnias nacionais. É um clã muito pequeno que se apoia no exército, desprovido de quaisquer escrúpulos, reinando pelo terror, pela mentira, pela corrupção.

As eleições presidenciais, como se previa, foram falsificadas e o ditador Paul Biya submeteu o seu adversário vitorioso. Era uma era de esperança, tinha-se desmoronado a URSS, tudo levava a crer que o continente negro ia ser subtraído ao esquecimento. Contudo, a África negra continuou subjugada à tutela de Paris. Como numa autêntica profissão de fé, no termo do seu relato Mongo Beti insiste que a África pode desenvolver-se se tiver a coragem de combater as três pragas que a afligem: a marginalização da aldeia, o regresso e a boa gestão dos recursos humanos e o fim do colonialismo paternalista que se apoia no centralismo sem nenhuma relação com a tradição e as exigências do progresso. E há outros desafios pela frente: extirpar o cancro da corrupção, devolver aos camaroneses a propriedade da sua pátria e fazer com que eles tenham o sentimento de serem os seus gestores. E a ajuda estrangeira.

O que há então de analogia com o país lusófono encravado no amplo espaço da francofonia africana? A mesma incapacidade na perceção da soberania nacional, no desenho de projetos estratégicos e na definição do desígnio que deixa inerte o tribalismo e as suas tentações. Um regime democrático onde os seus órgãos se respeitem sem colisões; um planeamento das infraestruturas, uma implementação do serviço público num processo de comunicação permanente entre as comunidades aldeãs e os respetivos núcleos populacionais. E por aí adiante.

Não há neocolonialismo na Guiné-Bissau, o que existe é ingovernabilidade, a incapacidade do Estado se afirmar, estabelecer projetos credíveis à cooperação internacional, agir no combate à corrupção e banir as clientelas que se movimentam em torno dos dirigentes, famílias, gente da mesma etnia que quer abocanhar umas migalhas na mesa do orçamento. 

Aí são nítidas as similitudes entre os Camarões e a Guiné-Bissau, não é o espectro da ditadura que apoquenta a classe política, é a sua indisponibilidade para o sentido do Estado, para o estabelecimento de acordos entre os parceiros políticos, sociais e económicos, dando assim esperanças ao levantamento e ao respeito pelo Estado. 

Foi bom ter lido Mongo Beti e sentir que há cidadãos empenhados em contribuir para o bom nome da sua pátria.
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Notas do editor

Poste anterior de 25 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17796: Notas de leitura (998): “A França contra África”, por Mongo Beti; Editorial Caminho, 2000 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de setembro de 2017 Guiné 61/74 - P17807: Notas de leitura (999): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Cherno Balde disse...

Caro amigo MBS,

Concordo plenamente com as tuas analises sobre a situacao politica dos regimes africanos ao sul do Sahara em geral e das possiveis ou reais analogias entre os diferentes paises. Hoje em dia, os Camaroes atravessam uma das suas piores crises de existencia em virtude da ma governacao e a dilapidacao dos seus recursos em beneficio de alguns grupos instalados no poder ha muitos anos.

O Aime Cesaire (1913-2008), um dos fundadores, senao o fundador do Movimento da Negritude na literatura Francofona e forte opositor do colonialismo, nao enveredou pelo nacionalismo estreito e pela independencia cega das ilhas de Martinica e Guadalupe, tendo optado pela autonomia territorial. Com o passar do tempo e o aparecimento e manifestacao de regimes mafiosos e corruptos em Haiti e no Continente Africano acabaram por dar-lhe razao e demonstrar o fundamento da sua relutancia na esteira dos perigos (demonios) a que uma liberdade precoce e impreparada podiam conduzir. A Guine-Bissau, nao sendo o pior pais, eh seguramente, um dos exemplos acabados do falhanco de uma independencia.

E, eh precisamente, nessa optica que, cada vez mais, compreendo a logica dos Homens Grandes das Guine (regulos e outros) que nao apoiavam a ideia da luta pela independencia baseada na violencia e diziam a A. Cabral: Deixa os Brancos ainda, porque precisamos dele, pois sozinhos nao nos poderemos entender.

Com um abraco amigo,

Cherno Balde

Antº Rosinha disse...

O caso dos Camarões, a fazermos a leitura de BS, será um caso bem mais semelhante com Angola do que com Bissau.

Falamos de café, Petróleo etc., portanto aqui é muito semelhante a Angola.

E também sabemos que da cidade alta de Luanda também há muita gente a entender-se bem em Francês tal como Bissau.

Mas ao contrário de Bissau, em Angola anda por lá a Total há muitos anos logo a seguir ao 26 de Abril.

A França contra os Camarões? contra Angola, a França tem a concorrência dos EUA, da Espanha, da Rússia, do Brasil e da China.

A Guiné Bissau nem tem ninguém contra, desde que saiu de lá Potugal, a Suécia e mais um ou outro benemérito como a URRS.

Obrigado BS