Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 4 de outubro de 2017
Guiné 61/74 - P17824: Os nossos seres, saberes e lazeres (232): Em Moffat, no coração do Sul da Escócia, a explorar os arredores (3) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 29 de Junho de 2017:
Queridos amigos,
Uma das vantagens de não andar na disciplina da excursões é dispor de tempo para percorrer calmamente uma povoação de um lado para o outro, apreciar o que os outros compram, como se indumentam, o que visitam, estar num café e escutar conversas.
Estava-se em plena campanha eleitoral, mas houve a intuição que os escoceses viviam o prélio um tanto à margem, o matraquear da líder nacionalista escocesa quanto a um segundo referendo não colheu efeito, os nacionalistas voltaram a ganhar mas perderam muitos assentos para os conservadores e trabalhistas.
É bom cirandar nos lagos, parar-se um carro para desfrutar aquelas paisagens únicas em que as colinas declivam para vales fundos onde serpenteiam ribeiros murmurantes enquanto as ovelhas se apascentam sem nenhum constrangimento.
Eram estas as férias singulares que eu tinha encetado em Moffat, no Sul da Escócia, na esplêndida região de Dumfries e Galloway.
Um abraço do
Mário
Em Moffat, no coração do Sul da Escócia, a explorar os arredores (3)
Beja Santos
Moffat já teve umas esplendorosas termas vitorianas, acabou tudo em cinzas, ainda hoje corre o rumor de que foi fogo posto por proprietário endividado. A povoação ressuma bem-estar, não há indicativos de pobreza extrema, os seniores andam cuidados, seja com próteses, seja nas suas cadeiras-viaturas. Tem belos vales, uma correnteza de lagos, um clube de golfe, o hotel mais estreito do mundo e um outro que começou por ser uma casa senhorial que saiu do traço de um arquiteto prodigioso do seu tempo, Robert Adam. Começa-se o passeio no largo de Santa Maria, nos Scottish Borders. As paragens são múltiplas, há recantos formosos, ruínas românticas, cemitérios, anda-se à volta entre Moffat e Selkirk, vai-se até 35 milhas a Sul de Edimburgo.
Com o aperto da fome, viandante e companhia vão comer um prato de empadão num desses restaurantes à beira-rio, neste caso no Yarrow Valley. O que se vê é uma reconstrução com dois anos, laboriosa e bem-cuidada. Um curto-circuito esturricou tudo, ficaram as paredes-mestras. Uma bela exposição fotográfica permite ver o antes e o depois. Nestas coisas do caráter arquitetónico, os britânicos não desarmam, nada de mamarrachos ou novas construções com betão e vidros, a tradição impõe-se. O viandante não dá novidade a ninguém, tem que se ser moderado no que se bebe, em restaurantes do Reino Unido, o vinho é proibitivo, há cervejas gostosas e os pratos trazem pastelões farfalhudos, que se regam com um molho que dá pelo nome gravy, feito com os sucos da carne, Maizena e algo mais, legumes não faltam; o cliente escolhe batata cozida, com ou sem casca (neste caso, abre-se ao meio e mete-se manteiga, é bom que se farta) mas não é incomum ver-se nestes restaurantes comer tudo frito, desde o peixe frito com a batata frita.
Nesta região de Dumfries e Galloway, onde existe uma biosfera reconhecida pela UNESCO, não faltam ovelhas, a lã escocesa tem renome mundial, vendem-se peças para todos os preços, os merinos e caraculos são procurados como peças finas, sem igual no comércio da lã. O viandante está convicto que falta alguma claridade à imagem, é para se saiba que o tempo é instável, a seguir a uma chuvada vem um bom sol e que aquelas nuvens brancas que se vêem ao fundo, sob azul celeste, têm nuvens negras por cima de quem está a tirar a fotografia. É o tempo da Escócia, daí a pastagem dos solos que sustentam estes animais, de manhã à noite, quatro estações por ano.
Falando de Moffat, mostro-vos o principal templo religioso, é da igreja da Escócia, anos atrás pude visitá-lo, é de uma austeridade sem paralelo, agora está permanentemente fechado, só abre para a missa dominical. A fé cristã está a cair a pique, mesmo em Moffat há uma igreja que se transformou em prédio de apartamentos. Felizmente que o viandante irá percorrer algumas abadias (em geral em ruínas); elas ainda guardam sinais de esplendor, as guerras religiosas fizeram desaparecer estatuária, ourivesaria e pintura de incalculável valor. Voltaremos ao assunto.
Há alguma relação entre estas duas imagens, acreditem. O viandante aprecia muito entrar nestes estabelecimentos de miudezas onde se vende traquitana que dá pelo nome de lembrança. Há um assunto nacional que dá pelo nome de trocas postais, bilhetes de aniversário, de Natal, de parabéns pela data do casamento, o mais que se sabe. Na segunda imagem pode-se ver-se à direita uma loja de beneficência, têm hoje um peso social relevantíssimo: aqui se encontra roupa e calçado e chapéus, cortinados, têxteis de todos os tipos, livros, cd’s, tudo o que o leitor quer imaginar, felizmente com uma grande rotação, os preços são competitivos, há livros a meia libra, belíssimos álbuns de música clássica… O viandante irá abastecer-se até o limite, regressará desapontado com as coisas que não pôde comprar.
Mas que grande surpresa, o viandante sempre se habitou a ver cabines e marcos do correio em bom vermelho, preparava-se para meter ali uns postais e deu com um marco de correio completamente dourado, coisa nunca vista. Enfim, a tradição já não é o que era.
Veio-se a este cemitério preitear mortos de família, o viandante não perde a oportunidade para vaguear por estes espaços de calmaria e serenidade. Acresce que há sempre um monumento a recordar os mortos da I Guerra Mundial. Os nomes não dizem nada ao viandante, só aquele cumprimento do dever em que se dá a vida. Pensa-se no sofrimento e ora-se pela misericórdia divina.
O local que se visitou tinha mesmo este nome: Drumlanrig, ali perto se bebeu um café com leite e um scone de queijo de sabor inesquecível. À entrada do carro o viandante deu com esta fachada rara, lembrou-se da azulejaria portuguesa, achou que o desenho era original e tirou fotografia. Fora um dia e peras. Regressa-se a Moffat, o viandante está em pulgas por ir acompanhar a campanha eleitoral, será bem-sucedido no final, na noite das eleições não pregará olho, acompanhará hora a hora um desfecho que muito provavelmente irá mudar o curso da história do Reino Unido dentro da Europa e talvez no mundo.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 27 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17800: Os nossos seres, saberes e lazeres (231): Do Yorkshire profundo até Moffat, Sul da Escócia (2) (Mário Beja Santos)
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