Primitivo Palácio do Governador,
Imagem retirada do blogue Rio dos Bons Sinais, com a devida vénia
Terceira recensão dos relatórios que o Banco Nacional Ultramarino (BNU), da então Guiné Portuguesa, enviava periodicamente para Lisboa, e que Mário Beja Santos descobriu por acaso nos arquivos da Caixa Geral de Depósitos, onde, além dos relatórios de contas, se fazia menção às ocorrências de ordem social e política naquele território ultramarino.
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1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2017:
Queridos amigos,
Levo alguns meses a folhear estes documentos, filtrados das diferentes pastas que tenho andado a consultar no arquivo histórico do BNU, e ainda estamos no princípio da narrativa, mas dá perfeitamente para perceber que estamos perante uma documentação desassombrada, por vezes com comentários cruéis e apreciações políticas destemidas, seguramente eram estas as apreciações que o BNU pretendia receber em Lisboa, para tomar decisões afinadas com a realidade da colónia.
Pasma como tem sido possível andar a levantar estes pedaços da História da Guiné sem conhecer tão inusitados e densos comentários de cronistas anónimos, que escondiam discretamente estas informações no final do seus relatórios técnicos, semestrais ou anuais.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (3)
Beja Santos
No seu relevante trabalho de investigação com o título “a Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, o investigador Armando Tavares da Silva levanta questões que ajudam a compreender o teor das verberações dos diferentes gerentes do BNU em Bolama. A páginas 617, refere as concessões nos Bijagós. Terá sido o caso de uma companhia inglesa que se instalara em Bolama com o fim de explorar a indústria do óleo de coco e não era claro quem teria feito a concessão do terreno e em que condições. Em Janeiro de 1913 o jornal A Capital informava que tinham sido ordenadas superiormente todas as facilidades para aquelas descargas e que essa companhia estava negociando, sem licença, álcool, tabaco e coconote, comprava aos indígenas a preços superiores ao dos mercados de Bolama e Bissau. O governador veio desmentir dizendo que a companhia não possuía plantações e o empresário, o Sr. Hawkins, tinha tirado licença idêntica aos nacionais e estrangeiros para permuta com os indígenas. O assunto não ficou por aqui. A 28 de Janeiro de 1913 o ministro telegrafa para o comandante militar de Bissau informando que o súbito inglês Isaac Thomas Hawkins tinha requerido um total de 21.395 hectares em várias ilhas dos Bijagós. Questão nada pacífica como é evidente, será levada a debate na Câmara dos Deputados. Antónia Silva Gouveia, que exercia funções de deputado e tinha interesses no comércio da Guiné, reclama junto do ministro contra estas concessões que considera contrárias aos interesses da província. O melodrama teve continuidade. Perceba-se como os Bijagós viviam com humilhação esta discriminatória repartição de terrenos.
Em 1917, o ano em que abriu a agência do BNU em Bissau, será o ponto de partida para guerras de afirmação entre Bolama e Bissau. Não propriamente logo em 1917, a agência de Bissau vai funcionar num andar arrendado, com mobiliário emprestado. O seu horário de serviço era das oito ao meio dia e das duas às quatro, fechando ao sábado à tarde, em Outubro de 1918 dilatará o seu horário de funcionamento. Agência em casa arrendada num estado arruinado, era feita de adobe. Em Setembro de 1918 será autorizada a compra do terreno e a construção do edifício da agência. O gerente de Bissau insistia na solução de se fazerem as obras na época seca de 1918-1919, dá preços de salários, de pintores e serventes, de materiais a cal de casca de ostra, sugere a construção de armazéns, vai sempre dizendo que se vive em condições deploráveis, em quartos térreos e imundos.
Nesse mesmo ano de 1917, em Julho, o gerente de Bolama informa Lisboa sobre a guerra nos Bijagós. Começa por dizer o seguinte:
“Já regressou das operações militares no arquipélago dos Bijagós o Estado-Maior da coluna organizado pelo governo da Guiné, sob o comando do Chefe de Estado-Maior, Major Ivo Ferreira, que tinha ido para aquele arquipélago a fim de bater o gentio da ilha de Canhambaque e outras. Segundo nos informou aquele oficial, a ilha de Bubaque onde existe a concessão Hawkins e a sede da Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, está pacificada; a ilha de Canhambaque está batida mas não pacificada. Ficaram nesta ilha forças militares das companhias de guerra para, sobre o comando de dois oficiais subalternos, montarem e guarnecerem dois postos militares para efetivar a ocupação. O gentio da ilha, fazendo a guerra a seu modo infligiu nas forças fiéis algumas perdas”.
Em Agosto, presta novas informações:
“Em aditamento temos a informar Vossas Excelências que o governador da Província tendo reconhecido que se não devem pôr entraves nas ilhas cujos habitantes estão aparentemente submissos, determinou em portaria que o estado de guerra se limitasse só às ilhas de Canhambaque e João Vieira e ilhéus em redor das citadas ilhas, em virtude dos seus habitantes se encontrarem em estado de rebelião armada.
Aproveitamos a oportunidade para transcrever parte de uma carta reservada da agência de Bissau, datada de 2 de Julho, referindo-se ao Sr. Isaac Thomas Hawkins, que, diga-se de passagem, não tem as simpatias pessoais do nosso gerente em Bissau: ‘Para o fim de anotar o cadastro deste senhor, devemos dizer que confidencialmente soubemos que à reclamação apresentada por ele ao vice-cônsul inglês desta província dizendo, na mira de alguma indemnização, que a coluna de operações em Bubaque o prejudicava no seu intenso negócio, o cônsul em Bathurst lhe respondeu que ele devia acatar as leis portuguesas e que não lhe tolerava que ele pretendesse imiscuir-se nas medidas que o governador da província entendesse tomar’. É positivamente resposta de um homem que tem cabal conhecimento de Hawkins, que por algum tempo esteve na Serra Leoa, de onde aprece ter vindo par aqui”.
Em Outubro presta o seguinte esclarecimento a Lisboa:
“Continua a rebelião armada do gentio da ilha de Canhambaque, tendo o governador sido recebido a tiro numa recente visita que ali fez".
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No relatório da filial de Bolama partilhando os anos de 1917 e 1918, temos um novo documento surpreendente pela forma e conteúdo, não destoa pela franqueza de documentos anteriores e posteriores, tem uma enorme carga política:
“Nada há a acrescentar ao que se tem dito se não o que tudo aqui continua na mesma apatia, no mesmo desleixo, na mesma inconsciência de sempre. Saiu o governador Ivo Ferreira que nada produziu de útil, entrou o governador Josué de Oliveira Duque que é boa pessoa mas o que deseja é que o deixem ganhar os seus vencimentos sem grandes incómodos; este governador não tem a confiança do secretário de Estado das Colónias, vindo para aqui por imposição do Presidente da República de quem é amigo pessoal e como prémio de consolação por se ver o governador central obrigado a tirar-lhe o comando da Guarda Nacional Republicana em Lisboa.
Aqui é manejado por Oliveira e Castro; tendo anunciado durante a viagem e à chegada que o seu primeiro ato seria fazer recolher a Lisboa o referido Oliveira e Castro, dias depois telegrafa para Lisboa a pedir a sua conservação aqui como diretor da fazenda (…) A Carta Orgânica foi em parte suspensa; desorganizaram-se serviços que nos termos dela se tinham organizado. No Boletim Oficial aparece uma portaria censurando o diretor interino dos correios e telégrafos por ter demonstrado por várias vezes incompetência para o exercício do cargo, mas este funcionário continua a teste de tão importantes serviços que de notável só têm as irregularidades, o desleixo e a indiscrição. O serviço de saúde está numa lástima; tudo falta, remédios, desinfetantes, aparelhos e instrumentos, etc. À data em que escrevemos, a vida em Bolama está por assim dizer paralisada; a população aterrada com a grande quantidade de óbitos que ultimamente tem havido não só devido à época mas porque também desde a última estadia aqui dos vapores vindos de Lisboa a epidemia da gripe infeciosa deu entrada na província e por ela alastrou com grande rapidez, causando, principalmente em Bolama grandes estragos na população, tanto europeia como indígena”.
Para tudo complicar, até a gripe espanhola eclodira na Guiné. Se este relatório é firme e desassombrado, as informações sobre a colónia que acompanham a documentação do relatório de 1919, terão o poder de nos surpreender, aqueles gerentes do BNU pareciam falar de igual para igual e deixam o leitor desnorteado pela severidade com que julgam os decisores e os militares.
Como veremos a seguir.
(Continua)
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Notas do editor
Poste anterior de 29 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17807: Notas de leitura (999): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (2) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 2 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17815: Notas de leitura (1000): “A França contra África”, por Mongo Beti; Editorial Caminho, 2000 (2) (Mário Beja Santos)
2 comentários:
Olá Camaradas
Este livros e outros documentos que têm vindo a ser publicados são extremamente esclarecedores para a situação que se viveu, na Guiné, durante o Séc. XIX e XX até ao início da guerra.
Considero-os fidedignos pelas condições e momento histórico em que foram escritos.
Aos portugueses, nomeadamente aos ex-combatentes interessam para que conheçam os antecedentes relativamente próximos da situação social e até política que encontraram à chegada.
É necessário que se conheçam as causas para que se interpretem com veracidade os fenómenos.
Julgo que os guineenses deveriam, se quisessem conhecer a sua História, deveriam também fazer um esforço para os obter e estudar, mas isto já não contas do meu rosário...
Um Ab.
António J. P. Costa
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