quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18169: Memória dos lugares (368): A Guiné-Bissau vista por Michel Renaudeau (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
É de salientar que estas imagens terão sido captadas aí à volta de 1977, dá para perceber que o património arquitetónico deixado pela potência colonial ainda não foi desvirtuado, as ruas estão limpas, os jardins tratados.
Este álbum terá sido encomendado para mostrar as potencialidades turísticas, o exotismo, a diversidade étnica, as potencialidades agrícolas. Tem um resumo propagandístico da história do PAIGC e da luta de libertação. Vasco Cabral, o poderoso comissário da Economia, fala de plantações de cana-de-açúcar para 60 mil toneladas. René Dumont ficou alarmado quando ouviu estes números e fez as contas, teria um preço incomportável.
É um tempo de sonhos, de fantasias e de uma ingenuidade que custou muito caro.

Um abraço do
Mário


A Guiné-Bissau vista por Michel Renaudeau

Beja Santos

Este fotógrafo francês terá recebido a encomenda do Banco da Guiné-Bissau para preparar duas obras de prestígio, para consumo externo, estamos numa fase da governação de Luís Cabral em que era reconhecida a necessidade de captar investimentos, indispensáveis quer como contrapartidas para projetos que tinham doadores, quer para outros em que não se perfilavam oportunidades. Há um livro, exatamente este, para mostrar as potencialidades do país mostrando lugares, pessoas, a agricultura, o turismo, nunca esquecendo a natureza luxuriante. O outro livro, de que se falara noutra oportunidade, é exclusivamente destinado a mostrar o que o país precisa, num quadro em que há economia planificada mas onde também se põem janelas de oportunidade para a exploração agrícola e para as pequenas indústrias.


Tenho visto lindas fotografias de Cacheu mas considero esta inultrapassável: o ângulo, a ligação do pano de muralha à água e o que dela brota, a esterilidade do interior e a floresta ao longe. É um ângulo que evita a mostra vergonhosa das estátuas arrancadas dos seus pedestais. Felizmente que se começa a repensar que o país não pode iludir a sua memória e que aqueles vultos escolhidos pelo regime colonial, goste-se ou não, são pertença da história da Guiné-Bissau, falam português e guineense, e para todo o sempre.



Primeiro o artesão, porque a panaria cabo-verdiana-guineense é de uma enorme beleza, os Manjacos dão cartas nestes panos coloridos ou a preto e branco, de uma rara harmonia, de uma intensa sensibilidade. E a seguir temos o griot, o tocador de korá, trouxe seguramente longos, prolongados recitativos com que irá homenagear quem lhe encomendou a festa. Olhei demoradamente esta fotografia, penso que este griot veio a Bambadinca, talvez em 1970. Nota-se que está bem-disposto, lança um olhar faceto ao fotógrafo como se dissesse: tira mais fotografia!



Temos agora a nostalgia de Bolama. Quando visitei a cidade, em 1991, já o Hotel do Turismo parecia um escombro e no entanto havia aqueles sinais da Arte Nova já a anunciar um certo geometrismo que preparará a Arte Deco. Sabemos que as cidades se arruínam e desaparecem, sabemos hoje que Bolama é um fantasma do que foi, creio que ainda lhe resta uma das joias da coroa, a Tipografia Bolamense, a Imprensa Nacional da região, aqueles carateres são uma obra-prima, oxalá os saibam preservar. Mesmo desfocada, a segunda imagem dá para perceber como era chegar a Bolama, hoje está tudo diferente com o assoreamento. Gostava muito de lá voltar.



Fora o Palácio do Governador, até 1941, com a presença militar em Bolama ainda houve obras de manutenção. Creio que jamais estas voltaram a acontecer. Quando por aqui andou Michel Renaudeau, o palácio convertera-se na habitação oficial do presidente do comité da região.

A segunda fotografia ainda hoje me faz estremecer, é a entrada do Bissau Velho, a casa de ocre vermelho ainda consegue olhar para o cais do Pidjiquiti, por uma nesga, e depois entrava-se numa zona de intenso comércio, onde era possível encontrar coisas extraordinárias que não havia em Portugal. Nenhum combatente que desembarcou naquele cais e que esperou alguns dias antes de ser remetido para uma alfurja da guerra deixou de por aqui andar, há aqui qualquer coisa de vila do interior, tipo Penalva do Castelo, que define o caráter português de uma pequena povoação adaptada aos trópicos, em baixos os sobrados, por cima a casa e depois a varanda. Um Bissau Velho que devia ser tratado com respeito, quando o Governador Carlos Pereira mandou derrubar, no virar para o século XX as muralhas que cercavam Amura, foi por aqui que Bissau se expandiu, aqui cresceu a azáfama dos negócios, perto do porto por onde saíam as mercadorias e entravam os mercadores. Folheando o álbum, ocorre outra leitura, tudo estava limpo, aqueles lugares pertenciam a todos, não era para abandalhar. Infelizmente, o abandono está marcado pelo desleixo e aquela terrível indiferença de viver pacificamente com o lixo e o miasma.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18154: Memória dos lugares (367): "Guiné-Bissau e Cabo Verde", fotografia de Ulisses Rolim - Para lá do Tcheche, amor pelas gentes de Lugadjole (Mário Beja Santos)

5 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Este é o Mário Beja Santos de que eu gosto, o meu camarada de armas, que não baixa a cerviz perante os poderes instalados antes e depois do 25 de Abril:

Diz MBS: "O país não pode iludir a sua memória e que aqueles vultos escolhidos pelo regime colonial, goste-se ou não, são pertença da história da Guiné-Bissau, falam português e guineense, e para todo o sempre. "

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Era a Câmara Municipal de Bissau e não o Palácio do Governador. Hoje está quase em ruinas.
Armando Tavares da Silva

Anónimo disse...

Estive em Bolama de Janeiro a Julho de 1966.

A cidade já estava sem vida . O Hotel , ainda servia umas coisitas. Junto ao cais, na piscina

havia um bar explorado por um mais "velho", salvo erro, ex. patrão de lancha, que servia

umas boas ostras e lingueirão, com boa cerveja...

Depois da recruta era o nosso poiso habitual. Que saudades,

Jorge Rosales

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Em relação às estátuas creio que as autoridades deveriam fazer uma escolha.
Honório Barreto, quer se queira, quer não chegou a comprar território e a oferec~e-lo à coroa (portuguesa, obviamente).
O descobridor faz parte da História daquela terra e isto é um facto histórico que não é positivo, nem negativo.
Outras estátuas haverá que façam lembrar àquela gente momentos em que foi alvo de submissão.
Estas deveriam regressar a Portugal e colocadas em museu contando a sua história.

Esta solução é que não é nada.
Julgo que há momentos da História nacional (de todos os países) que não devem ser recordados nem louvados os seua agentes. As autoridades portuguesas deveriam entrar em negociações para recuperar estas estátuas (Mudzanty e Teixeira Pinto, por exemp) e se as autoridades de um país soberano - a Guiné - as não querem então...

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

BS recortou esta: "Vasco Cabral, o poderoso comissário da Economia, fala de plantações de cana-de-açúcar para 60 mil toneladas".

Penso que Vasco Cabral ainda não tem nenhuma estátua, assim como Luís Cabral.

Mas que tal como Amílcar estes dois bem que convenceram meio mundo desde Lisboa até aos Urais.

Só que desde Cacine a São Domingos, há ali pouca gente convencida.