sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18175: Notas de leitura (1029): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (16) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2017:

Queridos amigos.
Antes de mais venho renovar a minha profunda gratidão pelo amparo que tenho recebido no Arquivo Histórico do BNU por parte dos seus desvelados técnicos, incansáveis a vasculhar tudo o que existe sobre o período em análise, ajudando-me com imagens, umas completamente desconhecidas outra não tanto. São tão exímios que é para mim impensável continuar esta aventura que se prolongará até 1975, sem a sua proficiência e brio profissionais.
Temos aqui o documento que relata os acontecimentos do movimento revolucionário que se estendeu de Abril a Maio de 1931, descrito minuciosamente. E relata-se um psicodrama cujo desfecho foi um homicídio. Virá a seguir um psicodrama incomparavelmente maior, a chamada revolta dos Felupes, em 1933, que René Pélissier investigou em vários arquivos, tudo começou com um avião que saiu de Dakar e desapareceu.
Era uma vez...

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (16)

Beja Santos

Em 14 de Maio de 1931, a filial de Bolama envia para o governador em Lisboa a seguinte carta intitulada “Situação da praça – movimento revolucionário”:
“Por notícias oficiais daqui expedidas, calculamos que V. Exa. terá tido conhecimento que eclodiu nesta cidade, no dia 17 de Abril próximo pretérito, pelas 3h30, o movimento revolucionário constituído pelas tropas da guarnição desta capital e elementos civis, na sua maior parte deportados políticos.
Numa cidade sem exigências, em que o trabalho ocupa primacial lugar, a revolução não poderia deixar de surpreender, e até mesmo aterrorizar, a sua pacífica população.
E foi por isso mesmo que, nos dias que se seguiram ao do movimento, em Bolama o êxodo era manifesto.
Alheios à política militante, nada podemos dizer sobre a finalidade do movimento insurrecional. Mas os factos demonstram iniludivelmente que o seu objetivo era provocar a queda da Ditadura, uma vez que o governo na metrópole não dispusesse de meios necessários para dominar os revoltosos dos Açores e da Madeira, e simultaneamente acudir à situação da Guiné.
Os indígenas, por índole assustadiços, e agora com justificada razão de o serem, entrincheiraram-se nas suas palhotas de onde não mais saíram; outros elementos nativos, igualmente apavorados, refugiaram-se no interior, cujas relações com o litoral estavam cortadas. Seguiram-se as medidas de segurança e consolidação do regime em vigor na colónia.

Foi destituído das funções de Governador o Tenente-Coronel Leite de Magalhães, ficando a superior administração da colónia entregue a uma Junta Governativa.
O Governador foi preso, com homenagem, no Palácio do Governo. Os oficiais, que se supunham afetos à situação política anterior, incluindo o Chefe de Estado-Maior, também foram detidos e embarcados no Maria Amélia, conjuntamente com o Governador, este com destino a Lisboa e aqueles em direção à Madeira.
Como é fácil de calcular, nos primeiros dias da revolução a cidade tinha um aspeto bélico, o que todavia não prejudicou grandemente a sua vida normal. Foi estabelecida a censura telegráfica e postal, por virtude da qual não comunicámos a V. Exa. em devido tempo o que vinha sucedendo.
Da nossa filial de S. Tiago recebemos dois telegramas em um dos quais nos perguntavam se o Governador da Província se achava preso. A nenhum destes despachos nos foi dado consentido dar resposta, tendo os telegramas ficado em poder da Junta Governativa.

Por escrutínio secreto, o comité executivo da Junta Governativa elegeu para o cargo do governo interino da Guiné o Tenente-Coronel Médico Dr. Gonçalo Monteiro Filipe, que tomou posse em 24 de Abril último.
Muitas vezes fomos procurados, depois de encerrar o expediente, e até a desoras da noite, para fazer pagamentos, uns da conta do banco, outros de conta da Caixa do Tesouro.
Estes pedidos eram-nos feitos em nome da Junta Governativa, razão porque sempre os atendemos com a maior prontidão, afastando portanto a ideia de poder contrariar a acção de quem governava.

Vieram finalmente dias de mais calma. Apesar disso, aproveitando a estadia do vapor Silva Gouveia, nos portos da colónia, foi este mandado a Cabo Verde com a missão especial de corromper a sua população, lançando-a igualmente na revolta. Tal tentativa não obteve êxito, e por isso os revoltosos limitaram-se a subtrair da Ilha de Maio, trazendo para a Guiné os deportados políticos que ali se encontravam, em número não superior a oito.
Entretanto chegava a notícia da rendição dos Açores e pouco depois da Madeira, que veio pôr termo às operações.
Nasce então a ideia de deserção. Para ocorrer às despesas da Junta Governativa, abriram-se créditos no valor de 250.000$00, pouco mais ou menos, segundo o que nos foi dito pelo senhor Director da Fazenda.
Os últimos dias foram de intranquilidade. É que, com a partida dos revoltosos havia receio de represálias. As pessoas mais em evidência não pernoitaram em suas casas.

Na tarde do dia 5, fechámos na Casa Forte todos os livros e valores, ainda os mais insignificantes. Para maior segurança, e com a necessária discrição, refugiámo-nos na casa do Cônsul da Alemanha, com quem de há muitos anos mantemos boas relações, até ao dia seguinte, quando a debandada já era um facto.

O Dr. Monteiro Filipe no momento de se ausentar dirigiu uma carta ao Vice-Presidente do Conselho do Governo, Dr. José Alves Ferreira, convidando-o a tomar conta do governo, o que este fez ao abrigo das disposições da Carta Orgânica vigente. Neste meio tempo chegava a notícia da nomeação do senhor Major João José Soares Zilhão, para desempenhar as funções de Governador da Colónia, cuja posse teve lugar no dia 9 deste mês. Eis, a traços largos, o que foi o movimento revolucionário na Guiné.
Espera-se a todo o momento a vinda de tropas do continente e de um vaso de guerra”.

É patente que há uma tensão entre as agências de Bolama e Bissau. Neste mês de Maio de 1931, Bissau reponta com Bolama que não se devem duplicar as despesas, que em casos semelhantes ou parecidos com o que se telegrafou para a sede acerca do movimento revolucionário, Bolama deve enviar tudo para Bissau, é daqui que os telegramas seguem para Lisboa, e surge claramente uma crítica: “Não compreendemos o motivo porque se refugiaram no consulado alemão, depois das precauções que tomara”.


Em Novembro, Bissau pede a Lisboa para fazer despesas com móveis e utensílios:

“Dentro em pouco será necessário mobilar, sem luxo mas com decência, o primeiro andar do edifício da agência. A mobília existente não corresponde às necessidades, embora mandemos restaurar, como é lógico toda a que possa ser aproveitada. Nestas condições pedimos e agradecemos a V. Exa. a fineza de autorizar a compra e remessa da seguinte mobília:
- Uma mobília de sala completa com o mínimo de doze cadeiras; 
- Uma mobília de sala de jantar com doze cadeiras; 
- Uma mobília de quarto; 
- Dois tapetes grandes para sala; 
- Um dito, para sofá; 
- Seis ditos para camas.

A necessidade destes tapetes é flagrante, porque o pavimento é de mosaico. As mobílias terão de ser também grande dado o espaço dos aposentos a mobila. Não podemos deixar de frisar a V. Exa. que ao pedirmos estes artigos de mobília não temos em vista rodearmo-nos de luxo – que bem dispensamos – mas tão-somente prover o edifício com aquilo que julgamos indispensável”.

A comunicação mudou de diapasão, tornou-se cerimoniosa, tão ao estilo do Estado Novo, “cada um no seu lugar”.


Tem-se referido que ambas as filiais não perdem oportunidade para dar informações de diferente índole, como idas e vindas e até psicodramas. É o que acontece em Outubro de 1932 quando se Bissau comunica para Lisboa que o Director dos Serviços das Obras Públicas, Engenheiro Ferreira Chaves feriu mortalmente com um tiro de pistola, em Bolama, no dia 24 de Agosto findo, o Capitão Reformado António Augusto Parreira, Chefe da Repartição de Agrimensura e Cadastro, depois do que se entregou à prisão do Sr. Dr. Juiz. Constava que o Engenheiro Chaves e o Capitão Parreira, ambos da comissão urbana de Bolama depois de uma troca de ofícios em termos ásperos tinham cortado as relações. Surgira um diploma legislativo que o Capitão Parreira julgava obra do Engenheiro Chaves para o ferir. Parreira foi a casa de Chaves para ter com ele um desforço:

“Diz-se que este dormia a sesta quando o Capitão Parreira lhe entrou pela casa dentro numa atitude desvairada, e o agrediu.
Depois de uma breve luta entre ambos, no quarto de cama, junto ao toilette onde o Engenheiro Chaves tinha a pistola, parecendo-lhe, declara o arguido, que o Capitão Parreira pretendia deitar a mão à arma ou com receio desse gesto, o Engenheiro Chaves teria pegado nela para a arremessar para longe e, nessa altura, segurando-lhe a mão o Capitão Parreira obrigou-o a disparar sendo este atingido na cabeça, falecendo horas depois. Deste facto não há testemunhas e nós limitamo-nos a reproduzir, em síntese o que nos têm contado. O Engenheiro Chaves já foi pronunciado sem fiança e suspenso do exercício das suas funções”.

Nada disto é comparado com outro psicodrama que se avizinha, a chamada revolta dos Felupes.

(Continua)
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Nota do editor

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