sábado, 21 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18546: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 41 e 42: "“Olha lá ó 118! Tens-te portado bem, se quiseres ir de férias à Metrópole eu assino a autorização”, disse-me o capitão no dia do Festival da Canção da RTP; em 26 de fevereiro de 1973


 Uma das duas AK 47 (Kalashnikov) apanhadas ao PAIGC,  na operação de 24 de fevereiro de 1973, na tabanca de Farnan


Eu com o miúdo que nos lavava a louça.




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 >  

Fotos (e legendas): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalahou e viveu em Amaranete, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; oi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, s pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo...

(xviii) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste);

(xix) como responsável pelos reebastecimentos, a sua preocupção é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xx) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacaunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xxi) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e umas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 41 e 42

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]
 41º Capítulo > 16 HORAS NO MATO

Entre o amor, um copo, uma piada e a guerra, aquilo de que gosto menos de escrever é sobre a guerra. Neste projecto a que me propus, tenho de o fazer e basta-me copiar:

“Não é costume escrever-te de manhã mas hoje tenho uma série de coisas para te contar e decidi fazê-lo.

Quero que saibas que ontem os meus camaradas saíram para o mato, apanharam três “turras” e duas metralhadoras, agora eles estão aqui no quartel presos até vir uma avioneta busca-los para Bissau.


Eles foram capturados numa aldeia chamada Farnan que fica a mais de 35 km daqui. Os meus colegas saíram às duas horas da manhã e chegaram aqui às seis da tarde, por isso já podes ver que andaram durante 16 horas. Atravessaram rios, bolanhas, pântanos, matas etc. Quando chegaram aqui confesso que até chorei com pena deles.

Os meus camaradas eram 76, nós aqui no quartel só ficamos 65 para defender Fulacunda. Ao chegarem vinham completamente exaustos, até o capitão que também foi não podia dar mais um passo. Uns vinham descalços com os pés ensanguentados, outros com a farda rasgada inclusive o capitão. Acredita meu bem ser soldado numa guerra é a pior coisa que pode acontecer a um homem, ainda bem que houve uma coisa que lhes deu coragem que foi terem trazido esses três “turras” e as armas pois assim sabem que o esforço não foi em vão.

É assim meu bem eu tive imensa sorte, por aquilo que te digo e não é tudo já vês o que os meus camaradas passam, e vês também que esta guerra não é uma guerra de brincar como no cinema.
Não sei se ouves na rádio, ou se lês no jornal, os boletins das forças armadas da Guiné, se ouvisses ou lesses, saberias que aqui todos os dias há lutas entre as nossas tropas e o inimigo e ocorrem em toda a província e também sabias que por cada morto nosso morrem dez deles, de maneira que a Guiné não interessa a ninguém. Pelo menos para aqueles que como nós estão destacados no mato.”

As armas capturadas foram duas AK 47 (Kalashnikov)

No dia seguinte, foi domingo. Pedi para a metrópole que me mandassem umas garrafas de vinho e enviei o postal da Praça do Império, em Bissau.

Continuando os meus relatos estupidamente descritos nestas páginas, quero que libertem a vossa mente, porque dois dias após o que acabei de vos dizer, esteve alegremente e comigo quase toda a companhia, a ouvir o festival da canção.

No dia 26 de Fevereiro de 1973, quando eu completei oito meses de Guiné, ouvi, num pequeno rádio a 4000 km de distância, uma das melhores canções de sempre num festival da canção. Fernando Tordo ganhou com a canção “Tourada”; letra de José Carlos Ary dos Santos. Talvez o melhor poema sarcástico interpretado até hoje num festival para a Eurovisão.

Nesse dia, o capitão disse-me:

“Olha lá ó 118! Tens-te portado bem, se quiseres ir de férias à Metrópole eu assino a autorização”

Três dias depois já escrevia:

“Talvez me safe, ando doente do estômago se for de férias dou baixa ao hospital militar”



42º Capítulo > SOLIDARIEDADE

Uma das mais fascinantes memórias que guardo está descrita no aerograma do dia 7 de Março de 1973. O carnaval tinha sido no dia anterior, festejado a preceito. O Zé Leal recebeu uma encomenda com os artigos que tinha pedido aos pais. Não foi uma encomenda normal.



“Queridinha, ontem veio na avioneta uma encomenda que o Leal mandou vir que continha roupas para o rapazito que nos lava a loiça, não imaginas a esfusiante alegria que o moço sentiu. Conto-te isto porque fiquei deveras sentido com a reacção do moço quando ele viu a roupa, até chorou de alegria. Menciono isto para mais tarde poder recordar que um pouco de roupa deu uma alegria das Maiores que assisti até hoje”.


Em todas as gerações, há sempre quem se destaque em momentos de enorme altruísmo e partilha, sem olhar a quem, e sem disso fazer alarde. Devem ser muito poucos os soldados que tiveram a atitude do Zé Leal. Lembro-me que aquele gesto me influenciou a proceder de igual modo. Honestamente, não sei se o concretizei. Se na restante correspondência encontrar algo que o prove, di-lo-ei. Com o gesto do meu amigo, até a guerra parou e houve uma festa. Afinal, era dia de carnaval.

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Nota do editor:

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