segunda-feira, 16 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18527: Notas de leitura (1058): “Memórias da minha guerra colonial”, de João Matos Lourenço Rosa; edição de autor de 2009 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Pela mão do Mário Vitorino Gaspar cheguei a este livro escrito por um auxiliar de serviço religioso.
Já tínhamos relatos de capelães, de combatentes a desnudarem as suas profissões de fé, sempre achei que fazia falta estas escavações junto daqueles que não eram formalmente combatentes, mas que acabaram por o ser pela força das circunstâncias ou resolvendo a quem vivia em destacamento no mato os problemas das transmissões, das viaturas e até os cortes de cabelo.
Li o relato do primeiro-cabo Lourenço Rosa e lembrei-me do Costa de quem o David Payne Pereira dizia ser o seu lugar tenente. Do Costa, que já se apresentou no blogue, tenho justificadas saudades e gratidão: pelos frascos de vitaminas, pelos cortes de cabelo, pela população do Cuor que lhe passou pelas mãos, pela sua presença na capela de Bambadinca.

Onde quer que tu estejas, Costa, um abraço muito afetuoso deste teu confrade,
Mário


O que era um auxiliar do serviço religioso nas nossas guerras africanas

Beja Santos

Uma das preocupações constantes no respigo de textos e no espírito das recensões é desvelar a natureza das especialidades de cada um, operações especiais, atiradores, capelães, médicos, enfermeiros, a todos se procura dar guarida. Tenho para mim que continuamos sem testemunhos que abarquem os soldados básicos, os maqueiros e aqueles que nas CCS auxiliavam nas transmissões, na manutenção das viaturas, nas cozinhas, etc. Neste entendimento, julgo que terá interesse dar atenção às “Memórias da minha guerra colonial”, de João Matos Lourenço Rosa, edição de autor de 2009. Esclareça-se que ele cumpriu a sua missão em Moçambique entre 1971 e 1974, integrado no BCAÇ 3866, destacado em Furancungo, no Tete. É um homem com itinerário curioso. Veio aos 12 anos da Portela do Fojo (Pampilhosa da Serra) para Lisboa, trabalhou numa fábrica de calçado, em feiras, num restaurante, em carrosséis de diversão, foi resineiro, teve uma passagem fugaz pelo Seminário dos Missionários Comboianos e até cumprir o serviço militar obrigatório tirou cursos profissionais nas áreas de eletrónica e da carpintaria mecânica. Vindo da guerra, trabalhou na Brisa, foi dirigente sindical, e ficamos por aqui.

Foi à inspeção, assentou praça em Aveiro, onde jurou bandeira. Colocado no RI 6 do Porto, onde se preparou a sério para ser auxiliar do serviço religioso, daqui seguiu para Espinho, já mobilizado para ir para Moçambique, houve viagem com peripécias, incluindo um pequeno incêndio no Niassa que obrigou a uma reparação em Bissau. Em Outubro de 1971 chegaram a Lourenço Marques, não gostou da chacota dos Moçambicanos brancos que os alcunhavam de “pior que pretos”, pessoas de baixo nível. Da capital seguem para a Beira. Diz abertamente que o capelão não lhe é uma pessoa cara:
“Era um homem que não tinha carisma, não tinha o dom da palavra. Mas eu haveria de encontrar bem piores em Nampula. Aí alguns não tinham mesmo qualquer feitio ou mesmo vocação para o sacerdócio. O padre de Nampula namorava com uma mulher da metrópole e casaria com ela quando chegou da sua guerra. Quanto ao padre Emílio, o do meu Batalhão, também ele pediu ao Papa a sua resignação e casou com uma senhora professora lá da terra”.

Da Beira rumam com destino a Moatize, são depois transportados de Berliet para a base aérea de Tete e depois Furancungo. O auxiliar do serviço religioso é cabo escriturário, faz rondas, é escalado para vigilâncias, dá catequese na Missão Nazareno e no Baué, quando necessário guarda urnas, os reforços de noite tornam-se um tormento, passa a ter graves problemas de sono, o médico receitou-lhe Fenobarbital, Diazepan e Bialzepan, mas nunca mais teve sono normal. É enviado a Nampula, ao serviço de psiquiatria, dois meses depois teve alta, o médico considerou que ele estava bem de saúde e que era um manhoso. Volta a Furancungo, no meio disto tudo houve uma punição, foi despromovido e depois promovido. Volta a Nampula, tem um desentendimento com a Polícia Militar, apanha 10 dias de detenção. Passa as férias com a família em Moçambique. Já vai no terceiro Natal passado na guerra. E em Dezembro de 1973, Furancungo é alvo do primeiro ataque com morteiros de 122 mm. Formou-se um grupo de combate, uma história patética. Os problemas com o sono não param. Nisto vem o fim da comissão, faz-se a viagem em sentido inverso, Furancungo-Tete, comboio a Moatize até à Beira, embarca de avião com escala em Luanda, Lisboa, acolhimento familiar, em 1974 casa-se com a menina que namora há muito.

O João Lourenço Rosa é despretensioso e não se ufana de quaisquer atos heróicos, no caso de uma mina anticarro com emboscada diz abertamente que se atirou para debaixo da viatura.

Fiquei a pensar neste relato e a procurar nos escaninhos da memória quem era o auxiliar do serviço religioso em Bambadinca. E recordei-me do Costa, que até já se apresentou no blogue. Extremamente gentil e prestimoso, era barbeiro, creio que escriturava, viu-o ajudar no posto de enfermagem e acolitava na celebração da missa na capela de Bambadinca. Era portanto uma especialidade com diferentes usos, um pouco como vem no relato de João Lourenço Rosa. Oxalá o Costa me leia e decida contar a sua comissão pluriprofissional, desde que se preparou para auxiliar de serviço religioso. E bom seria que chovessem mais depoimentos, a começar pelos maqueiros, os que comigo trabalharam eram incansáveis e forçosamente pluriprofissionais, faziam reforços, acompanhavam os patrulhamentos e nas horas difíceis faziam trabalho de trolha e outros místeres delicados. “Os do mato” não escondiam um relativo desdém pela malta da CCS, os que cozinhavam, reparavam viaturas, os cabo-cripto, a malta da manutenção. E como eles foram tão importantes, tão importantes para a nossa vida de combatentes!
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE ABRIL DE 2018 > Guiné 61/74 - P18519: Notas de leitura (1057): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (30) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Beja Santos sempre.

Gostei de ler esta da «chacota dos Moçambicanos brancos que os alcunhavam de “pior que pretos”, pessoas de baixo nível».

A gente às vezes lemos escritores de nomeada, sobre aquela guerra de 13 anos, em calhamaços de centenas de páginas, mas por vezes é nestes escritos de gente anónima que vemos o que foi aquela guerra em toda a sua extensão.