domingo, 15 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18525: Efemérides (273): No 24º aniversário da Apoiar - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra: "Ter que matar para sobreviver", texto de Mário Gaspar, originalmente publicado no jornal Apoiar, nº 2, jul / set 1996


 Cartaz com o convite  para a sessão de comemoração do 24º Aniversário da APOIAR, Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra. O evento realizar-se-á na sede da APOIAR, sito na Rua C, Lote 10, Lj. 1.10, Piso 1 – Bairro Liberdade 1070-023 Lisboa, na quarta-feira, dia 18 de abril de 2017, pelas 15:00.Aderir através do Facebook. Vd página da associação aqui.



1. Mensagem,  com data 12 de abril de 2018, do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar:

[foto atual à esquerda; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem mais de. 100 referências no nosso blogue]




Caros Camaradas

Logo no início da fundação da APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra, registada no dia 18 de Abril de 1994, sendo fundador, também do Jornal APOIAR  (fui primeiro Director), vi-me na necessidade de escrever muitos textos sobre o tema. Lembrar que deixara de escrever desde que terminara Comissão na Guiné.

Este foi talvez o texto que teve mais impacto no Jornal fundado em Janeiro de 1996.

Já que dentro de dias a APOIAR comemora o aniversário [, o 24º], talvez fosse bom recordar o tema escolhido para falar de um tema que temos de afirmar era tabu. Lembrar que foi escrito dirigido a Combatentes que sentiam na pele o trauma da guerra.

Cumprimentos

Mário Vitorino Gaspar


Cabeçalho do jornal Apoiar, nº 2, jul / set 1966

2. Ter que Matar para Sobreviver 

[adaptação de texto publicado no Jornal Apoiar, nº 2, julho / setembro de 1996, pp. 10/11, "Ele teve que matar para sobreviver", da autoria de Mário Gaspar]

por Mário Vitorino Gaspar


“Nos nossos livros de escola glorificam a guerra
 escondem seus horrores.
Eles incutem ódio nas veias das crianças.
Eu preferia ensinar a paz do que a guerra.
Eu preferia incutir amor do que ódio.”


Albert Einstein


(...) O assistir a mortes e ter que matar para sobreviver; estar presente em acções de violência; passar fome e sede; assistir e/ ou participar na morte de crianças e mulheres; estar presente em acções de bombardeamentos, tiroteios intensivos; rebentamentos de minas e armadilhas, fornilhos e o tão famigerado napalm e as dificuldades de ambientação ao clima e o estar longe da família, tornou aqueles jovens sorridentes, ávidos de vida, em homens precocemente envelhecidos. Farrapos humanos, remendados.

Uns já haviam constituído família, outros fizeram-no logo de imediato, os restantes ficaram solteiros. Marcham para a vida, mas diferentes. As mulheres e os filhos paridos muitas vezes de atos sexuais de violência, mulheres violadas pelo guerreiro, e não pelo amor do marido. De imediato, ou posteriormente, o ex-combatente isola-se como se a aldeia, a vila ou a cidade fosse um aquartelamento. Não fala da guerra nem aos pais, à mulher, aos filhos, a familiares e amigos, como não o fizera quando combatia. Ao fazê-lo com alguém só narra as bebedeiras. E sorria.

Na generalidade, e num período curto ou mais lasso, volta a vestir a farda, embora civil, agride, esbofeteando a mulher, os filhos, ou ambos. Não tem paciência para o diálogo e, por vezes, a família embrião é destruída como por acção de um rebentamento. Os filhos ficam a cargo da mãe violada pela guerra colonial. Ele teve que matar para sobreviver na guerra. É o funeral da família. Foi uma mina, uma armadilha ou um fornilho?

Pais, irmãos, mulheres e os filhos daqueles que haviam contraído matrimónio antes da partida, num porão ou num avião, assim como as namoradas ou noivas, familiares e amigos, traumatizados pelo seu ente querido e amigos, choraram à partida para a guerra. Os pais, em muitos casos, morrem precocemente. O Estado português ignora e deixa viúvas, por vezes mães, na miséria. Um ex-combatente suicida-se. Perguntam: porque se suicidou? E não entendem. E os vivos, os ex-combatentes, vivem (se isso é viver!) com medo do futuro. Aqueles que ainda possuem o amor das esposas, dos filhos, por vezes partem portas, armários e outros utensílios domésticos, talvez por não quererem agredi-los.

No quotidiano, aqueles dóceis seres humanos que partiram para a guerra, são despedidos no trabalho. Na rua são presos por criarem conflitos e são desconfiados. São possuidores de um forte espírito de justiça.

E isto por existir um desdobramento em duas personagens distintas: a boa, porque era um jovem alegre, e a má porque partira para a guerra, onde ele teve que matar para sobreviver.

E é por tal razão que, na maioria dos casos odeiam fardas, qualquer tipo de fardas, inclusive a dos bombeiros, embora os adorem. E porque a farda alimenta o ódio, nas suas mentes amputadas, parecendo paradoxo, andam fardados, diariamente, andam em guerra consigo e com os outros, armados, imaginariamente, de arma na mão, como se os pavimentos fossem matas, atentos aos ruídos, passos e chorando como quando uma criança chora, lembrando, nalguns casos a criança que viram matar ou mataram.

Pela noite dentro, já depois de ingerirem doses excessivas de medicamentos, sonhos, pesadelos angustiantes, sufocantes, com gritos, choros, sangue em corpos retalhados, rebentamentos, tudo numa amálgama. Restando do sono três ou quatro horas de descanso, se é descanso, isto após inúmeras dificuldades em adormecer. Ao levantarem-se pretendem iniciar um novo dia, mas tudo se repete.

Na guerra bebia-se ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. E também nos intervalos. E a bebida normalmente não faltava. Uma das principais razões de se ingerir álcool em demasia era, talvez terem que sofrer a sede nas operações, outra razão era para esquecer. Bebia-se, mas menos, nas matas quando acabava a água no cantil, o líquido dos charcos, onde por vezes se urinava. Aqueles que fumam fazem-no em excesso. Há ainda os que se tornaram toxicodependentes.

Ex-combatentes com PTSD [, sigla inglesa, Post-Traumatic Stress Disorder, em português Perturbação de Stress Pós-Traumático] de Guerra têm dificuldades de concentração, esquecem, quer se alaguem em álcool quer se droguem ou não. Têm, por vezes, tremuras, ranger de dentes e gaguejam, por vezes. A família não entende o medo que vai dentro deles, quando se deslocam a hipermercados, supermercados e outros locais de forte concentração de pessoas. Medo dos grandes espaços, não estando bem em local algum, nem no lar, se o possuem, no café, no restaurante ou noutro local público. Querem abandonar os locais onde se encontram. Não querem estar fechados. Quanto aos transportes, alguns nem sequer tiraram a carta de condução, porque sabiam que o carro na estrada podia ser um foco de conflitos com os outros; não andam, em muitos casos, de metro, não querem servir-se de elevadores e outros transportes públicos, principalmente os superlotados. Estar metido em bichas é uma afronta, uma agressão. Detestam.

São estes ex-combatentes, que no dia-a-dia estão em guerra consigo – a guerra continua, dentro deles. Na grande maioria não estão amputados de membros, não estão cegos, sem cicatrizes visíveis e não possuem próteses. Foram eles que transportaram – sim porque foram eles que o fizeram – os tais amputados, os cegos e inúmeras vezes foram eles que lhes salvaram as vidas. Apanharam das bolanhas, das matas, os pedaços dos mortos, escorrendo o sangue pelos seus corpos, colocando esses restos de corpos, bocado, a bocado em sacos de plástico e outros recipientes. Transportaram os feridos e choraram de dor os mortos.

Hoje os ex-combatentes com perturbações de stress pós traumático de guerra são autênticos despojos humanos, com as vísceras sangrando-lhes os corpos, dos camaradas abatidos pelo inimigo.

Os ex-combatentes com stress de guerra são portadores de outras doenças associadas: problemas musculares, cardíacos, ósseos, de pele, sexuais, etc.. Possuem uma vida curta. Vivem com problemas que a nossa sociedade desconhece. E por culpa de quem? (...)

Contem a história da Guerra Colonial nos manuais escolares, não a façam prisioneira.

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18494: Efemérides (272): No Centenário da Batalha de La Lys, homenagem aos Combatentes do Concelho de Barcelos (Manuel Luís Lomba)

1 comentário:

Anónimo disse...

Foram os psis que "inventaram" essa da Perturbação do Stress Pós-Traumátrico de Guerra e vivem bem com isso... Ainda há tempos o pai de um amigo meu, que foi dos comandos em Moçambique, me contou que o velhote, agora que se reformou, anda metido com um desses gurus da psiquiatria, bem conhecidos da nossa praça... Cada consulta são 160 mocas... Quem é que ganha com o negócio dos maluquinhos da guerra ? Gostava de saber.

José Machado, Trafaria