Foto nº 1 A > À frente do pelotão o furriel miliciano Luís Macedo; o sexto militar que se vê à direita do Macedo, e que é o mais pequeno de todos, era o Domingos Jonas, que tinha como alcunha "Miúdo", um soldado natural do Huambo [Nova Lisboa]
Foto nº 1 B > O resto do pelotão, em formatura
Angola > Zemba > CCAÇ 3535 (1972/74) > O meu grupo de combate que comandei, quase todo, em Zemba.
Foto (e legenda): © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem do nosso editor Luís Graça , enviada em 12/1/2019 ao Fernando de Sousa Ribeiro [, foto à esquerda]
Fernando: vejo que tens montes de recordações boas de Angola e dos teus/nossos camaradas angolanos... E mais: tens um livro inédito... À espera de quê ?
Podes partilhá-lo no todo ou em parte no nosso blogue...Pelo menos, chegas a um público mais vasto... E há cada cada vez mais gente interessada em conhecer a história, a geografia e a cultura de Angola... e nomeadamente a segunda metade do sec. XX, terrível para o povo angolano...Quando fui lá pela primeira vez, em 2003, havia dezenas e dezenas, talvez centenas, de mutilados de guerra nas ruas... 400 mil deficientes diziam-me, terá sido o balanço da chamada 2ª guerra da independência...
Pediram-me para lá voltar em 2019, não sei se já terei forças... Angola, hoje, não é para todos!
Gostava de poder publicar o texto que escreveste, com as nevessárias adaptações, não vou exibir o vídeo, até porque não falamos da "atualidade política" dos nossos países... Por uma questão de coerência, autenticidade, economia de meios, etc. Seria uma "caixinha de Pandora"... E eu só me interessa o "material vivido", as experiências, as emoções, as recordações do tempo da guerra colonial...
2. Resposta do Fernando de Sousa Ribeiro, com data de 13/01/2019, 17:56
Caro Luís,
Tenho a maior relutância em publicar o meu livro por várias razões.
Uma prende-se com o facto de eu fazer nele acusações claras e diretas a diversas pessoas e organismos, com nomes, descrições, fotografias, etc. Eu quis que as minhas memórias fossem tão factuais quanto possível, mas não pretendo atingir ninguém em concreto, apesar dos pormenores que dou. O que pretendo é mostrar como aconteceram certos factos que não deviam ter acontecido, independentemente de quem os protagonizou. Assim, só no futuro é que o meu livro poderá interessar (ou não) a alguém, mas não enquanto eu estiver vivo.
Por outro lado, publicar um livro de memórias da guerra colonial é o mesmo que deitar dinheiro fora, a menos que eu me chame António Lobo Antunes ou Carlos Vale Ferraz. Já existem dezenas e dezenas de livros publicados sobre a guerra, com os mais diversos pontos de vista, mas cada um deles só tem vendido meia-dúzia de exemplares.
O meu seria mais um livro a acrescentar ao monte. Lembro o caso do primeiro capitão que a minha companhia teve e que também publicou um livro. Dois ou três anos depois de o livro ter sido lançado no mercado, o autor foi contactado pela editora (a D. Quixote), informando-o que os exemplares não vendidos estavam a ocupar um espaço precioso nos armazéns e perguntando-lhe se pretendia ficar com eles ou se preferia que fossem destruídos. Ele quis ficar com eles e agora tem a casa atulhada de livros!
A guerra colonial em Angola foi uma coisa terrível, é verdade que sim, mas ela foi uma brincadeira de crianças comparada com a guerra civil que se seguiu, a qual atingiu um número incomparavelmente maior de pessoas, durou muitíssimo mais tempo e teve consequências infinitamente mais devastadoras. Ainda agora há pessoas que são mortas ou ficam mutiladas por acionarem minas terrestres, apesar dos milhões e milhões de minas que já foram levantados.
A propósito, refiro-te um facto que talvez desconheças e que se prende com o destino que foi dado aos angolanos que combateram nas fileiras das Forças Armadas Portuguesas. Muito ao contrário do que se terá passado na Guiné, em Angola todos os movimentos procuraram atrair para si os ex-militares que os tinham combatido na guerra colonial, para aproveitarem a sua experiência de combate na guerra civil.
Os meus maravilhosos camaradas angolanos também foram aliciados para aderirem a este ou àquele movimento, depois de terem passado à disponibilidade. Uns aderiram ao MPLA, outros à UNITA, nenhum aderiu à FNLA e a maior parte deles preferiu manter-se na condição civil, sem que fossem molestados por esse facto.
Mando-te em anexo uma fotografia que mostra o grupo de combate que comandei, quase todo, em Zemba. À frente da "formatura" vê-se o heróico furriel Luís Macedo, que é português (Foto nº 1A]. O sexto militar que se vê à direita do Macedo, e que é o mais pequeno de todos, era um soldado natural do Huambo chamado Domingos Jonas, que tinha como alcunha "Miúdo". A valentia deste soldado era inversamente proporcional à sua estatura. Ele e o furriel Macedo foram precisamente os dois militares mais valentes do grupo.
Depois de ter concluído o serviço militar no Exército Português, no fim de agosto de 1974, o soldado Jonas alistou-se nas FAPLA, o braço armado do MPLA, pelas quais combateu até que morreu perto do Huambo em 1982. A notícia da morte do soldado Jonas foi dada por um outro antigo soldado da minha companhia, mas não do meu grupo, chamado Mário Sessendje, que aderiu à UNITA.
Agora repara: o Jonas e o Mário conheceram-se na minha companhia, tornaram-se amigos e a sua amizade prevaleceu sobre o ódio que opôs os movimentos a que aderiram, o MPLA e a UNITA. Mesmo combatendo em campos opostos, o Jonas e o Mário mantiveram-se em contacto e conservaram a sua amizade intacta, até que a morte de um deles os separou.
Só por isso, acho que me posso orgulhar de ter pertencido à Companhia de Caçadores 3535, que promoveu a amizade e não o ódio.
Um abraço
Fernando de Sousa Ribeiro
Podes partilhá-lo no todo ou em parte no nosso blogue...Pelo menos, chegas a um público mais vasto... E há cada cada vez mais gente interessada em conhecer a história, a geografia e a cultura de Angola... e nomeadamente a segunda metade do sec. XX, terrível para o povo angolano...Quando fui lá pela primeira vez, em 2003, havia dezenas e dezenas, talvez centenas, de mutilados de guerra nas ruas... 400 mil deficientes diziam-me, terá sido o balanço da chamada 2ª guerra da independência...
Pediram-me para lá voltar em 2019, não sei se já terei forças... Angola, hoje, não é para todos!
Gostava de poder publicar o texto que escreveste, com as nevessárias adaptações, não vou exibir o vídeo, até porque não falamos da "atualidade política" dos nossos países... Por uma questão de coerência, autenticidade, economia de meios, etc. Seria uma "caixinha de Pandora"... E eu só me interessa o "material vivido", as experiências, as emoções, as recordações do tempo da guerra colonial...
2. Resposta do Fernando de Sousa Ribeiro, com data de 13/01/2019, 17:56
Caro Luís,
Tenho a maior relutância em publicar o meu livro por várias razões.
Uma prende-se com o facto de eu fazer nele acusações claras e diretas a diversas pessoas e organismos, com nomes, descrições, fotografias, etc. Eu quis que as minhas memórias fossem tão factuais quanto possível, mas não pretendo atingir ninguém em concreto, apesar dos pormenores que dou. O que pretendo é mostrar como aconteceram certos factos que não deviam ter acontecido, independentemente de quem os protagonizou. Assim, só no futuro é que o meu livro poderá interessar (ou não) a alguém, mas não enquanto eu estiver vivo.
Por outro lado, publicar um livro de memórias da guerra colonial é o mesmo que deitar dinheiro fora, a menos que eu me chame António Lobo Antunes ou Carlos Vale Ferraz. Já existem dezenas e dezenas de livros publicados sobre a guerra, com os mais diversos pontos de vista, mas cada um deles só tem vendido meia-dúzia de exemplares.
O meu seria mais um livro a acrescentar ao monte. Lembro o caso do primeiro capitão que a minha companhia teve e que também publicou um livro. Dois ou três anos depois de o livro ter sido lançado no mercado, o autor foi contactado pela editora (a D. Quixote), informando-o que os exemplares não vendidos estavam a ocupar um espaço precioso nos armazéns e perguntando-lhe se pretendia ficar com eles ou se preferia que fossem destruídos. Ele quis ficar com eles e agora tem a casa atulhada de livros!
A guerra colonial em Angola foi uma coisa terrível, é verdade que sim, mas ela foi uma brincadeira de crianças comparada com a guerra civil que se seguiu, a qual atingiu um número incomparavelmente maior de pessoas, durou muitíssimo mais tempo e teve consequências infinitamente mais devastadoras. Ainda agora há pessoas que são mortas ou ficam mutiladas por acionarem minas terrestres, apesar dos milhões e milhões de minas que já foram levantados.
A propósito, refiro-te um facto que talvez desconheças e que se prende com o destino que foi dado aos angolanos que combateram nas fileiras das Forças Armadas Portuguesas. Muito ao contrário do que se terá passado na Guiné, em Angola todos os movimentos procuraram atrair para si os ex-militares que os tinham combatido na guerra colonial, para aproveitarem a sua experiência de combate na guerra civil.
Os meus maravilhosos camaradas angolanos também foram aliciados para aderirem a este ou àquele movimento, depois de terem passado à disponibilidade. Uns aderiram ao MPLA, outros à UNITA, nenhum aderiu à FNLA e a maior parte deles preferiu manter-se na condição civil, sem que fossem molestados por esse facto.
Mando-te em anexo uma fotografia que mostra o grupo de combate que comandei, quase todo, em Zemba. À frente da "formatura" vê-se o heróico furriel Luís Macedo, que é português (Foto nº 1A]. O sexto militar que se vê à direita do Macedo, e que é o mais pequeno de todos, era um soldado natural do Huambo chamado Domingos Jonas, que tinha como alcunha "Miúdo". A valentia deste soldado era inversamente proporcional à sua estatura. Ele e o furriel Macedo foram precisamente os dois militares mais valentes do grupo.
Depois de ter concluído o serviço militar no Exército Português, no fim de agosto de 1974, o soldado Jonas alistou-se nas FAPLA, o braço armado do MPLA, pelas quais combateu até que morreu perto do Huambo em 1982. A notícia da morte do soldado Jonas foi dada por um outro antigo soldado da minha companhia, mas não do meu grupo, chamado Mário Sessendje, que aderiu à UNITA.
Agora repara: o Jonas e o Mário conheceram-se na minha companhia, tornaram-se amigos e a sua amizade prevaleceu sobre o ódio que opôs os movimentos a que aderiram, o MPLA e a UNITA. Mesmo combatendo em campos opostos, o Jonas e o Mário mantiveram-se em contacto e conservaram a sua amizade intacta, até que a morte de um deles os separou.
Só por isso, acho que me posso orgulhar de ter pertencido à Companhia de Caçadores 3535, que promoveu a amizade e não o ódio.
Um abraço
Fernando de Sousa Ribeiro
membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780]
2. Nota do editor:
A CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974. Esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes. Pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu).
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Nota do editor:
Último poste da série > 1 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19458: (In)citações (124): A Angola e os angolanos que eu conheci e que ficaram no meu coração: os nossos camaradas angolanos eram filhos do povo, do admirável e sofrido povo de Angola; (...) para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual, olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem ... (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535, 1972/74)
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Nota do editor:
Último poste da série > 1 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19458: (In)citações (124): A Angola e os angolanos que eu conheci e que ficaram no meu coração: os nossos camaradas angolanos eram filhos do povo, do admirável e sofrido povo de Angola; (...) para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual, olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem ... (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535, 1972/74)
3 comentários:
1. Quem ler isto poderá perguntar-se como é que eu sei o que se passou com os angolanos da companhia (pelo menos com os que eram do Huambo) depois do fim da comissão. Eu explico. Aí por volta de 1986 ou 1987, apareceu num convívio do meu batalhão, cá em Portugal, um angolano que tinha sido do meu pelotão: o Ramiro Elias da Silva. Embora fosse natural de Benguela, o Ramiro casou-se com uma rapariga do Huambo (antiga Nova Lisboa) e foi viver para lá. Em 1984, a situação militar no Huambo estava a tornar-se insuportável. A cidade estava em poder da UNITA, mas sofria cada vez mais com os bombardeamentos da artilharia do MPLA, até que toda a população da cidade fugiu. O Ramiro fugiu também. A cidade do Huambo tornou-se uma cidade-fantasma, à mercê dos encarniçados combates entre a UNITA e o MPLA, com sul-africanos e cubanos à mistura. Em 1986, o Ramiro veio para Portugal, e logo a seguir compareceu a alguns convívios do batalhão.
Tudo o que eu sei sobre o que aconteceu aos meus antigos companheiros angolanos depois do fim da comissão, portanto, devo-o ao Ramiro. Foi ele que me contou o que se passou entre o Domingos Jonas e o Mário Sessendje. Contou-me ainda que, por volta de 1980, houve uma tentativa de organizar em Luanda um convívio entre os angolanos do batalhão. Este convívio não se pôde realizar, porque a guerra estava no seu apogeu, o paradeiro de muitos camaradas tinha-se perdido, as comunicações por terra estavam completamente cortadas (as deslocações entre as cidades apenas se faziam por avião, o que era caríssimo), em Luanda praticamente não havia restaurantes e os géneros alimentícios estavam fortemente racionados. Mas o facto de ter havido alguém que tenha tido a ideia de um convívio do batalhão em Angola, à semelhança dos que fazemos em Portugal, é altamente significativo do espírito que animou os seus militares, o que muito me orgulha.
Após ter participado em alguns convívios do batalhão cá em Portugal, o Ramiro Elias da Silva deixou de comparecer. Provavelmente terá regressado a Angola. Se ainda estiver vivo (espero que esteja), desejo-lhe as maiores felicidades, que bem merece.
2. A minha companhia, CCAÇ 3535, esteve em Zemba, na região dos Dembos (um ano), e em Ponte do Rio Zádi, muito perto da fronteira norte de Angola (o outro ano). Na dependência da companhia do Zádi havia dois destacamentos, ambos situados a cerca de duzentos metros da linha de fronteira, chamados Banza Sosso e Malele. A palavra Zádi (em quicongo Nzadi) significa "rio" e não faz muito sentido, por isso, falar em Ponte do Rio Zádi, porque isso significaria falar em "Ponte do Rio Rio"... Nós chamávamos ao quartel "Ponte do Zádi" ou apenas "Zádi". O Zádi era único rio digno desse nome existente em toda a região de Maquela do Zombo, com crocodilos e tudo.
O comandante do meu batalhão, BCAÇ 3880, era Armando Duarte de Azevedo, que teve o posto de tenente-coronel durante o primeiro ano de comissão (em Zemba, portanto), mas foi promovido a coronel no início do segundo ano. Mesmo quando já tinha a patente de coronel, ele manteve-se no comando do batalhão até ao fim.
Um abraço
Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535, 1972/74
De notar que nos distritos aqui mencionados, Huambo, Benguela e Sá da Bandeira (Lubango), nunca houve "Guerra do Ultramar".
Falo de regiões do tamanho de vários alentejos mal acomparado.
... Excelente 'post'.
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