segunda-feira, 12 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22366: Notas de leitura (1365): “Oito Viagens, Uma Voz”, por Sérgio Matos Ferreira; Edições Vieira da Silva, Lisboa, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Possuímos vários testemunhos de quem assistiu às negociações com o PAIGC, na fase que preludia o reconhecimento do Novo Estado. É admissível que este texto de Sérgio Matos Ferreira, recentemente publicado, seja o seu fiel testemunho do que se passou no encontro, o primeiro, na Mata do Morés entre uma comitiva de homens grandes da região de Mansabá acompanhados por militares e uma representação político-militar do PAIGC. Acima de tudo o que apetece relevar é a qualidade, o fulgor da narrativa, um documento que recorda algo que se passou há 44 anos atrás, deixa vincado um estado de espírito de militares que recusavam continuar a guerra.

Um abraço do
Mário


Sérgio Matos Ferreira volta à Guiné, no fim do Império

Beja Santos

A obra mais recente de Sérgio Matos Ferreira, “Oito Viagens, Uma Voz”, Edições Vieira da Silva, Lisboa, 2018, marca o regresso deste autor à Guiné e, tanto quanto parece, é depoimento autobiográfico, conta a história de um furriel-artilheiro em Mansabá, já houve o 25 de abril, o furriel acompanha uma comitiva que se interna no Morés, chegou a hora das primeiras negociações.
Em recensão feita no blogue em 2016, falou-se da sua obra “O descascar da pele”,[*] datada de 1982, uma narrativa muito ao gosto da corrente literária chamada O Novo Romance que também suscitou a atenção de outros escritores, caso de Álvaro Guerra, a corrente literária gozou de vida efémera, a proposta de Alain Robbe-Grillet não provocou entusiasmo perdurável no mundo das letras.

Também o mais recente escrito de Sérgio Matos Ferreira é constituído por uma sequência de narrativas em diferentes tons onde além daquela de que vamos falar, com o título “A inesperada reunião na Mata do Morés na Guiné”, há salpicos da vida militar, da atmosfera da caserna, de alguém que passou pela Guiné.

A narrativa sobre a reunião na Mata do Morés encerra alguns belos parágrafos, conserva a linha original do escritor de “O descascar da pele”, imagens poéticas e sonoridades, é uma escrita que consegue registar a moleza e o tédio, goza de uma grande economia na descrição do interior do quartel de Mansabá, é brutal quanto baste na crueza da linguagem de caserna. Já houve o 25 de abril, o autor fala-nos a partir de Mansabá:
“Uma revolução sem balas e com cravos espetados nos canos das metralhadoras. Corria o boato das intenções de Lisboa proclamar a tese de Estados federativos em vez da independência. Suspeitava desta solução para acabar com uma guerra estendida a um mar de anos. Este ocasional encontro no meio de um cessar-fogo incerto não lhe dava grande confiança. As ações dos guerrilheiros não pararam. O PAIGC aproveitou este interregno para circular com mais facilidade, tomar posições estratégicas e abastecer-se fortemente de material enviado por países de Leste Europeu em navios que atracavam em Conacri.

Uma semana mais tarde a novidade chegou. Uma ordem dos bastidores autorizava um grupo de comissários políticos do PAIGC a expor aos homens grandes da zona o verdadeiro significado da guerra, as dúvidas que persistiam e os futuros objetivos num país empobrecido. Uma das imposições do nosso Comando em Bissau foi a necessidade de um pequeno grupo de militares acompanhar os civis até ao local do encontro.”

Iniciaram-se os preparativos: “Saíram, desarmados, na direção da porta de armas. O grupo de notáveis da aldeia aproximava-se com ânimo leve, quase flutuante, alma lavada de esperança. Trocaram saudações e aguardaram pelo elemento afeto ao PAIGC que os levasse ao local do deparo, onde comissários políticos aguardavam para a sessão de esclarecimento”.

Chegou o homem do Morés, “um homem alto, vestido à ocidental, acompanhado por seis guerreiros engatilhados, dirigiu-se para a porta de armas. Cumprimentou os homens mais importantes da tabanca. De seguida, devolveu o olhar para os militares. O capitão avançou, apresentou-se com a saudação militar e só depois apertaram as mãos. O gelo estava quebrado”. E começou a viagem: “Tomaram a direção da cerradíssima Mata do Morés através de uma picada irregular. Um caminho de sal e terra com homens de sangue igual e mortes diferentes. Num ápice, foram engolidos por uma vegetação espessa, de um verde gelatinoso. Andavam numa fila única ou a dois, conforme a largura do trilho. Um cacarejar de vozes juntava-se ao ranger das botas dos militares e das alparcatas dos guerrilheiros em cima do folhado seco. Caminhavam há um pedaço de tempo. Os dois guerrilheiros, descontraídos, riam. Os furriéis na sua ingenuidade gracejavam. Os oficiais mais reservados falavam baixo. Os homens da aldeia trocavam palavras. E o oficial de ligação na cabeça do cortejo a comandar este grupo assimétrico”.

E o encontro vai realizar-se, numa clareira onde a comitiva é esperada pelos comissários políticos. Segue-se a descrição:
“No silêncio do mato a voz de um dos comissários entoava a melodia da vitória. Avançou um indivíduo baixo, entroncado, acentuada a cor preta da pele, e com um vozeirão espanta pássaros. Sem cerimónia em português, evidenciou o curso do PAIGC desde a passagem da fase política à insurreição nacional contra os colonialistas. Houve um momento que despertou a vigilância do artilheiro. O comissário entroncado começou a falar em dialeto. Atento, olhou para os civis inquietos com a sonoridade agressiva das palavras. Não passou despercebida esta alteração de voz aos militares. Alguma coisa o comissário dissera para provocar um sussurro alongado. Passou a mão pela testa suada. Olhou para ambos os lados, dois guerrilheiros fitavam-no. Olhos de carvão fixos no alvo. Um deles tamborilou os dedos no carregador da metralhadora. Um sapateado metálico que o sobressaltou. O comissário certamente avisou os civis de um possível desaire nas negociações. O guerrilheiro entregou-lhe uma mensagem mais curta, eficiente, na culatra da Kalashnikov.

Sem receios, com os olhos caídos no capitão, traduziu:
- Enquanto o governo de Lisboa não reconhecer a independência e os militares não partirem, a guerra continua. Estamos num período de tréguas, mas sejam rápidos a decidir.”

Dá-se o regresso. E assim remata a narrativa:
“Naquela noite, durante o jantar particularmente silencioso, um furriel-atirador inserido na companhia bebeu num trago o copo de vinho e sem olhar para ninguém, com os olhos embaciados na face vidrada do copo, berrou:
- Tomem nota, a minha G3 ainda não disparou e assim vai continuar.

Todos, sem exceção, fixaram o homem que acabara de nascer. O artilheiro, por sua vez, acreditava na esperança e na clareza dos homens que, em Lisboa, decidiam as vertentes da revolução. O desenlace do conflito era evidente: nem mais um tiro, nem mais um militar.”
____________

Notas do editor:

[*] - Vd. poste de 5 DE SETEMBRO DE 2016 > Guiné 63/74 - P16450: Notas de leitura (877): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22344: Notas de leitura (1364): “O Colonialismo Europeu no Continente Africano”, por Mário Gonçalves Martins; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Sabemos as consequências, o que com estes personagens resultou de tudo isto. Uma maré-cheia de lágrimas inundou o Cumbijã, o Cacheu e o Geba.
Então, os povos da Guiné e do mundo, não tinham o direito de se libertarem do colonialismo?
Claro que sim. Mas sabemos as consequências. Lutas tribais, milhões de mortos em limpezas inter-étnicas, desrespeito completo pelos mais elementares direitos humanos. O homem, lobo do homem.

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

libertaram-se do colonialismo português, mas aceitaram outros.E nestas coisas quem se trama é o povo.Depois um território com tantas etnias precisa de um "árbitro" e o arbitro capaz de pôr todos a falar uns com os outros, ou conviver com as diferenças entre as mesmas etnias acabou.
Basta ver o que se passou na guerra em 1998 na guiné em que os mais velhos se revoltaram contra o Nino lá estivemos mal ou bem a mediar entre as partes em conflicto, com os venenosos dos franceses a tentar sabotar as negociações e a manupular Conacry e o Senegal.Enfim já tudo pertence ao passado.E penso que não é agora que as coisas vão melhorar.

Abraço
Carlos Gaspar