Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Quinta de Candoz > Vindimas > 1979 > "De calças arregaçadas até ao joelho ou em cuecas, lá vão eles [, amigos, vizinhos e familiares do dono] pisando e repisando os cachos das uvas tintas até que a grainha comece a boiar no cimo do mosto. Às mulheres era interdita esta função: 'estragavam o mosto', diziam os antigos. Era um tabu que, a custo, só hoje foi esquecido e ultrapassado." (*) ...
No foto, vê-se, de perfil, ao canto direito, o dono da casa e da quinta, o José Carneiro (1911-1996), aos 68 anos. Está a servir canecas de vinho tinto aos homens do lagar que fazem uma pausa para comer uns peticos (ovos mexidos com salpicão mais aletria quente com canela...). Faria 110 anos, se fosse vivo, no passado dia 26 de setembro.
Foto (e legenda) : © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
Por isso, volta aqui a reproduzir-se alguns excertos das primeiras páginas do livro (pp. 15-19), com a amável condescendência do autor, e como incentivo à sua leitura integral.
Setembro era o mês de maior azáfama, porque se juntava a colheita do milho e a vindima, não havendo um minuto de folga naqueles dias ainda grandes, mas já sem as reparadoras sestas.
As desfolhadas eram feitas também à noite, ao ar livre, com a luz do luar, se fosse dia dele, com a ajuda de algumas pessoas vizinhas, das nossas boas relações, sobretudo mulheres e raparigas bem novas que se juntavam na nossa eira, a pouco mais de cem metros de casa. Alguns, ainda crianças, à medida que o folhelho se ia juntando, adormeciam cansados, debaixo dele.
Encontrando-se a terra bem desfeita logo se começava a semeadura. Numa ponta do campo, aproveitando a sombra de alguma árvore, à minha mãe cabia sempre o trabalho de partir as batatas de semente, o que ela fazia com uma rapidez impressionante, tendo ainda o cuidado de deixar um só galeiro para cada bocado.
Naquele tempo não se usavam herbicidas, por isso logo que as primeiras ervas daninhas afloravam à superfície recorria-se ao trabalho de mulheres que vinham fazer a sacha removendo toda a vegetação nociva.
Os campos de batatas ficavam disponíveis para nova cultura , a partir de agosto, semeando-se então, nabos, em quase todos eles, no mês de setembro, logo que, na mudança do vento, se adivinhava a ocorrência das primeiras chuvadas outonais, aproveitando-se a generosa estrumação de que tinham beneficiado.
A ÁREA BRAVIA E A LAVRADIA
Nenhuma casa de lavoura podia ter grande expressão nem sustentabilidade se não tivesse uma área de terreno bravio proporcional ao terreno lavradio, onde os lavradores tinham as suas reservas de mato para as camas do gado.
E a importância dos matos, constituídos fundamentalmente por queiró, carqueja e tojo, tornou-se mesmo decisiva, quando a cultura do milho e da batata se impuseram, em detrimento da cultura do linho e dos cereais de grão miúdo, no séc. XIX, exigindo a estabulação do gado bovino para, deste modo, se obter maior quantidade de estrume.
Ora nessa área de terreno inculto, dispersa por várias parcelas a que os lavradores chamavam sortes, por terem sido distribuídas por sorteio, em número proporcional à área agricultada de cada um, não crescia só o mato, mas medravam ainda o pinheiro e o eucalipto, para além das espécies autóctones, como o carvalho, o sobreiro, o castanheiro, o salgueiro e o medronheiro, estes em progressiva redução.
Os lavradores maiores que tinham excedentes de mato, vendiam, para os fornos do Porto, alguma carqueja e queiró, mas era na venda de lenha de eucalipto e pinho que eles, anualmente, incorporavam no seu orçamento familiar, uma verba significativa.
Habitualmente era no fim do verão fim do verão que vendiam os seus pinheiros, reservando para consumo doméstico toda a ramagem que era empilhada ao lado das casas, perto da cozinha, numa meda proporcional ao número de pessoas de cada família. Eram essas rameiras, em vez das lenhas mais nobres, que se utilizavam nas lareiras de quase todas as casas, antes da chegada dos fogões a gás e a eletricidade.
A lenha das videiras que resultavam da poda, bem como os carolos do milho eram também combustíveis excelentes usados nas lareiras e nos fornos domésticos. As famílias que não tinham sortes pediam aos lavradores autorização para cortar uma rodada de ramos em cada pinheiro, carregando-os em feixes à cabeça, até suas casa.
As medas de ramos de pinho feitas todos os anos, no fim do verão, à porta de cada família, faziam também parte dos monumentos rurais da minha freguesia e das vizinhas, e pelo seu tamanho também se ajuizava da pujança da casa.
O AZEITE , O ÓLEO DOURADO
Na agricultura de auto-suficiência tudo o que fosse importante para a alimentação havia de ser produzido numa casa de lavoura.
Mas a oliveira não gosta dos ares marítimos do litoral nem dos nevoeiros, por isso dificilmente alguma casa de lavoura das Medas, por maior que fosse, produzia meia pipa de azeite [talvez cerca de 200 litros]. em anos bons, sendo que, na rigorosa gestão da nossa casa, era imperativo guardá-lo, dos anos melhores para os minguados.
Entre novembro e dezembro era a altura de se colher a azeitona nas oliveiras invariavelmente plantadas no bordo dos campos, para não ensombrarem as outras culturas. O povo dizia que eram aneiras, por isso nunca acreditava que a um ano farto pudesse suceder outro igual e tratava-as como parentes pobres da agricultura, sem grandes cuidados, deixando que as copas se desenvolvessem na vertical, sempre com o propósito de evitar que se apoderassem do solo com a sua sombra.
A colheita era quase toda feita através de escadas de pinho com passais de oliveira que os rapazes ou homens feitos escalavam, de canistrel na mão, para chegarem até onde fosse possível. Nalguns casos era mesmo imperioso varejar os ramos mais altos.
Ultimamente estendíamos, debaixo de algumas oliveiras, um panal feito de serapilheira para a recolha da azeitona que varejávamos do chão e de cima das escadas.
A azeitona colhida mais cedo e sempre à mão era para curtir em talhas de barro almudeiras, e era também nestas talhas grandes que se guardava o azeite, esse preciosíssimo óleo que era servido à mesa muito moderadamente e quase só em batatas cozidas, quando não fossem acompanhadas de carne gorda.
Na culinária a gordura que se usava mais
frequentemente era o pingue de porco, branco como a neve, guardado em pequenas talhas para o ano.
António Carvalho
(Continua)
PS - Selecão de excertos, itálicos e negritos, da responsabilidade do editor LG.
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Fonte: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.O livro pode ser adquirido, ao preço de 15,00 Euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) Contactos do autor, António Carvalho, Medas, Gondomar
Email: ascarvalho7274@gmail.com | Telemóvel: 919 401 036
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Notas do editor:
(*) Vd. postes de:3 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22593: Notas de leitura (1386): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte II (Luís Graça)
5 comentários:
António, gostava que comentasses e respondesses: quantos quilos era um carro de milho em Medas ? E uma pipa de vinho, quantes litros ? E meia pipa de azeite ? E um almude?
Ainda hoje não falamos a mesma língua, de Norte a Sul do país...
Caro Luís e combatentes
Embora , na nossa idade, os conceitos de pipa, almude, carro, canada, quartilho e outros sejam geralmente conhecidos, passo a indicar os valores correspondentes:
1 pipa - 500 litros
1 almude - 25 litros
1 canada - 2 litros
1 quartilho - 0,5 litro = um quarto de canada
1 carro de milho - 40 alqueires = cerca de 600 litros
1 alqueire- 15 litros
Um grande abraço
Carvalho de Mampatá.
António, assim, está bem, assim já a gente se entende. O que é espantoso é a sobrevivência, ao fim de mais de século e emio, da terminologia, nos nossos campos, do antigo sistema de pesos e medidas...
Obrigado, António,é preciso "ir a Medas" para saber, com precisão, o equivalente a um carro de milho, um almude, uma canada, um quartinho..., termos que também se usam ou usavam em Candoz.
Quartilho e não Quartinho... desculpem.
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