Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).
Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus, ao fundo, e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira
a (ha)ver navios
por luís graça
do alto do jardim das janelas verdes
enxergavas o tejo
e a sua desmedida desmemória,
e, sob o ecrã, branco de cal, da história,
os navios negreiros zarpando do cais
da rocha conde d’óbidos.
garbosos os soldados imperiais,
alinhados de popa à proa de lisboa,
em chumbo, derretidos.
e na margem esquerda do estuário
o cristo-rei no seu monstruário,
em louça de barcelos,
fingindo abraçar
os náufragos e os
cativos
dos reinos dos algarves e d'além-mar.
quebradas as cadeias do alto império
e os seus frágeis elos,
ai pobre de quem se deixava ficar
para trás,
sem honra nem glória nem epitáfio,
na vala comum do esquecimento dos quatro guês,
em gandembel, guidaje, guileje, gadamael.
remir os cativos, uma e outra vez,
era então obra de misericórdia,
a última missão, disse o capitão.
oxalá inshallah enxalé
bons ventos os trouxessem,
aos pobres dos vivos,
do campo da batalha de alcácer quibir,
a três mil e oitocentos quilómetros da guiné.
lembravas-te que eram de verde-escuro as
janelas
e rubra de sangue a bandeira
do último cruzeiro,
da última cruzada,
da última armada invencível.
via-se a espuma da autoestrada da globalização
a perder-se de vista na última encruzilhada,
no bugio de todos os azimutes.
perdeste a última carreira das índias,
fernando, menino, pessoa, de sua mãe,
quando nem navios havia já para (ha)ver
e subitamente o estuário do tejo
estava reduzido aos cais das colunas
e às lipitutianas dimensões da tua banheira
de criança.
brincavas, na inocência da tua segurança,
com navios de casca de noz,
foi quando veio o tsunami, a dor e o luto.
desististe então de rebobinar o filme da tua vida,
que, de fissura em fissura,
se podia contar,
sem cortes da censura,
num minuto.
lisboa, 28 set 2022 / lourinhã, 1 nov 2022
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Nota do editor:
Último poste da série > 8 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23244: Manuscrito(s) (Luís Graça) (213): Memória dos lugares: a rua da tua infância...
5 comentários:
Parece-me correta a legenda da gravura que representa a Lisboa quinhentista, mas permito-me acrescentar alguns pontos. Por exemplo, é dito na legenda que no Rossio ficava o Paço dos Estaus. Importaria referir que este paço era o edifício onde funcionava a Inquisição! Naquele palácio, que ficava onde agora está o Teatro Nacional D. Maria II, foram julgados e condenados à morte pela fogueira muitos judeus, "herejes", etc. O terramoto de 1755 apagou do mapa tão tenebroso palácio. Dir-se-á: «Ainda bem que ele desapareceu». Não é bem assim, pois com o palácio desapareceram os processos que lá estavam e que poderiam ser de grande utilidade para os historiadores.
É claro que não foi só o Paço dos Estaus que foi apagado do mapa pelo terramoto. Também foi apagado o Hospital de Todos os Santos, foi apagado o Paço da Ribeira, foi apagada a Casa da Índia, etc. A Sé sofreu graves danos, mas sobreviveu. Da Igreja da Conceição Velha só ficou a fachada, que nos dá uma ideia de como poderia ter sido aquele templo manuelino. A igreja do Convento do Carmo, fundado por D. Nuno Álvares Pereira, ainda hoje está em ruínas. Todo o casario que ocupava a atual Baixa Pombalina foi arrasado pelo terramoto e pelo tsunami que se lhe seguiu. E muito mais foi destruído por essa Lisboa fora.
Já agora, como falei na Baixa Pombalina, recordo que as casas que se erguem nas suas ruas retilíneas e de traçado perpendicular são as mais antigas construções antissísmicas do mundo! Aquilo agora pode abanar, mas não cai. Muito mais depressa cairão os edifícios que estão na Av. Almirante Reis, por exemplo, que quase não têm alicerces.
Obrigado, Fernando, pelos teus valiosos contributos. Mesmo sendo tu um "portista" ou "tripeiro", tens uma invejável vasta cultura olissiponense...
O infamante Tribunal do Santo Ofício fartou-de de "trabalhar" (do latim, "triplarie", torturar alguém com o "tripaliu(m)"...), de 1536 a 1821, ou sejam, durante quase 300 anos... Não é pela destruição do Palácio dos Estaus, em 1 de novembro de 1755, que os historiadores ficam sem "matéria-prima" para estudar esta tenebrosa organização que contribuiu para alienar uma grande parte do escol científico, técnico e profissional deste país, preso, torturado, morto, fugido ou expulso do país, gente descenete de judeus sefarditas e outros que apanharam por tabela...
Vê aqui na Torre do Tombo a imensa documentação existente:
https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2299703
Sobre o Hospital Real de Todos os Santos (HRTS), podemos ler aqui dois textos meus:
https://arquivo.pt/wayback/20160225185017/http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos59.html
https://arquivo.pt/wayback/20160225185047/http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos60.html
O HRTS continuou a funcionar depois de terramoto (ou terremoto) de 1755, onde sofreu mais um grande incêndio (o 3º da sua história) e ficou em grande parte destruído... Beneficiou de sucessivas e intermináveis reparações, e deu origem em 1775 ao Hospital Real de São José, alojado no antigo colégio dos jesuítas, o Colégio de Santo Antão, o edifício de maior volumetria da Baixa Lisboeta (bem visível por exemplo do mais famoso e magnífico miradouro de Lisboa, o da Senhora do Monte, na Graça).
http://blog-de-historia.blogspot.com/search/label/Hospital%20de%20Todos%20os%20Santos
Luis, eu não sou "portista", sou portuense. O portista é o adepto do F.C.Porto, como o benfiquista é o adepto do Benfica e o sportinguista é o adepto do Sporting. Eu não tenho clube; não vou em futebóis. Sou portuense.
A minha relação com Lisboa vem quase desde que nasci.
No tempo da monarquia, um meu bisavô foi viver para Lisboa, por ter sido eleito deputado pelo Partido Regenerador. Mesmo depois da implantação da República, ele deixou-se ficar por Lisboa.
O meu avô materno, filho dele, acabou por seguir-lhe os passos, e mudou-se também para Lisboa. Desde a minha mais tenra idade, portanto, eu rumava a Lisboa de vez em quando, para passar o Natal ou uns dias de férias com os meus avós.
Mais tarde, fui operado aos olhos também em Lisboa. Durante alguns meses após as intervenções cirúrgicas, eu ia diariamente ao consultório da oftalmologista que me operou, a fim de exercitar os olhos numa maquineta que lá havia, e ia sozinho. Apanhava um autocarro nos Restauradores e saía na Rua D. Estefânia, onde ficava o consultório dela. Imagina um tripeirinho de dez anos sozinho por Lisboa! Qual é o miúdo de dez anos que agora faz o mesmo? Nenhum. Os tempos eram outros.
Depois de concluir o meu curso na Faculdade, e dado que tinha dificuldade em encontrar um emprego compatível no Porto, mudei-me eu igualmente para Lisboa, onde vivi cerca de doze anos. Por fim, regressei definitivamente ao Porto, até me reformar. Portanto, já sou quase mais alfacinha do que tripeiro...
Fernando, mil e uma desculpas...Portuense, sim, portista, não... Fica esclarecido, e eu dou a mão à palmatória...
Não aqui é sitio, de resto, para a gente falar das nossas paixões clubísticas (os que as têm, que não é o teu caso nem o meu). Mas o dicionário não deixa dúvidas, se é que as houvesse:
portista
portista | adj. 2 g. n. 2 g.
por·tis·ta
([Futebol Clube do] Porto, sociónimo + -ista)
adjectivo de dois géneros e nome de dois géneros
[Desporto] Relativo ao Futebol Clube do Porto ou o que é seu jogador, adepto ou membro. = AZUL E BRANCO
"portista", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/portista [consultado em 15-11-2022].
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