Aquartelamento de Mansoa
Foto: © César Dias. Todo os direitos reservados
1. Continuação da publicação de Do Ninho de D'Águia até África, de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Op Cripto, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66). iniciada no Poste P10177. O Tony Borié, natural de Águeda, vive nos EUA, Flórida, há 40 anos.
Do Ninho D'Águia até África (4)
No aquartelamento, quase em final de construção
Neste aquartelamento, todos trabalham, ou pelo menos tentam estar ocupados.
Mesmo depois de completas, as principais instalações, havia sempre coisas a improvisar. -sePor exemplo, com a madeira das caixas de munições faziam-se mesas e secretárias, que se usavam para escrever os aerogramas e as cartas para a família e as madrinhas de guerra.
Plantavam pequenas árvores e flores, em alguns locais desertos, que ainda não tinham construção e cada um era proprietário do seu pequeno jardim, que cuidava, e trocavam plantas entre uns e outros.
Chegou a haver uma pequena rivalidade entre o Setúbal e o Trinta e Seis, cada qual tinha o seu jardim, qual deles o mais bonito. O Trinta e Seis era um soldado telegrafista que não sabia quem lhe lhe tinha posto a alcunha, mas todos diziam que era pela estatura do corpo, pois era baixo e forte, mesmo muito baixo e forte, e diziam que era o conjunto de números derivado de uma dúzia. Por exemplo, o corpo inteiro eram doze, metade eram seis, um quarto eram três, e no conjunto dos números, começando por baixo, dava três mais seis, e como ele era baixo e forte, juntaram os números três mais seis e deu no sugestivo nome de Trinta e Seis. Era muito popular entre os militares e conhecido pelo Trinta e Seis.
O Curvas, soldado atirador, alto e refilão, que andava sempre contrariado, não acatava ordens, queria mandar e todos diziam que devia ser general, tinha este nome porque como era alto e magro, caminhava sempre curvado para o lado da frente, por tal motivo ficou a chamar-se o Curvas. Além de andar sempre contrariado, tinha uma linguagem reles, e quando por aquela área passava, dizia:
- Que grande porcaria! Parecem parvos, as flores não servem para comer! Qualquer dia arraso isto tudo!
Com os barris de vinho vazios faziam excelentes cadeiras de encosto e lindos vazos, onde nasciam flores e até pequenas palmeiras. Havia os mais habilidosos que construíam lindas gaiolas para piriquitos, outros pássaros exóticos e macacos bebés.
Os macacos, depois de conhecerem bem o dono, que os trata e lhes dá de comer, não mais abandonam essa pessoa. Dentro do aquartelamento, debaixo de uma grande árvore, a que chamavam a Mangueira do Setúbal, de quem já aqui falámos, havia um autêntico jardim zoológico, tal era o número de gaiolas com pássaros exóticos e macacos. Todos tinham o seu dono, que os tratava, e perdiam horas na sua companhia.
Alguns andavam a passeá-los pelo aquartelamento, e não raro era o caso em que os traziam para a vila, em especial para a sede o clube de futebol, como por exemplo o Setúbal, que chegou a ter dois macacos, um já adulto e outro bebé, e um periquito. Andava de periquito ao ombro e um macaco a cavalo no outro, isto a passear na vila e, tanto o periquito como os macacos, faziam o que ele mandava, parecia como no circo.
Se algum militar era transferido para outro cenário de guerra, levava o animal com ele. Quando uma coluna militar passava pelo aquartelamento, faziam parte dessa coluna militares, civis, macacos e periquitos, entre outras coisas. Esse zoo, no aquartelamento, ajudava na segurança. Se alguém estranho penetrasse no aquartelamento, pela calada da noite, os primeiros a fazerem barulho eram os macacos.
Havia uma árvore de pequena estatura, mas muito florida, que nasceu junto a um pequeno pântano, que existia dentro do aquartelamento, ao fundo, mais a oeste, que pela manhã se cobria de periquitos e outras aves exóticas, muito coloridas. Um furriel miliciano do pelotão de morteiros todos os dias ia lá colocar comida em cima de um tampão de um barril de vinho vazio, onde os pássaros iam comer e se empurravam uns aos outros, pois cobriam completamente o tampão do barril, ao que o furriel, dizia:
- Esta árvore é a minha gaiola, de periquitos.
Quando criança, na sua aldeia no vale do Ninho d’Águia, o Cifra tinha um cão rafeiro, amarelado, que dormia com ele aos pés da cama, feita de colchão de palha de centeio, das terras altas do pinhal. Pela manhã, ao passar o comboio das seis e meia, que apitava, o Cifra, ainda criança, abria os olhos, passava a manga da camisola pelo nariz, limpando algum ranho, camisola essa já bastante coçada, pois já tinha sido do irmão mais velho que depois a passou para o irmão do meio e que finalmente lhe veio parar ao corpo, tocava com o pé no cão piloto, que compreendia o sinal, e logo se levantava, e dando ao rabo, em sinal de alegria, vinha na sua frente, sentar-se na lareira, onde a mãe Joana já preparava o café de chicória, que com umas côdeas de broa amolecidas, e um pouco de leite de cabra, era o seu pequeno-almoço, que repartia com o cão piloto.
Lembrando toda esta cena, não tardou muito tempo que não tivesse também o seu macaco, um pouco maior, era uma raça a que os naturais chamavam “macaco cão”. Depois de alguns meses de convívio, já fazia algumas habilidades. Alguns até diziam que era mais inteligente que o Curvas, o tal soldado atirador, alto e refilão. O macaco que obedecia ao Cifra, deitava-se, sentava-se, dava a mão, fazia cambalhota, abria a boca, mostrando os dentes e saltava. Era uma cópia do que o Cifra fez quando foi “às sortes”, no quartel da cidade, onde lhe fizeram a inspecção militar, antes de ser incorporado no exército de Portugal. Esse macaco chamava-se Piloto em homenagem ao seu querido Piloto.
Mas voltando ao aquartelamento, enquanto decorriam os trabalhos da sua construção, algumas vezes, durante a noite, o Cifra e os seus companheiros eram flagelados do lado sul, onde havia matas, por granadas de morteiro, seguidos de rajadas de metralhadora, e quando em vez tiros de pistola.
Ninguém sabia porquê, mas até aquela data nunca acertaram no aquartelamento. Voavam granadas de morteiro, que quase sempre vinham cair no que nós chamávamos campo de aviação, no tal terreno plano próximo da aldeia, com casas cobertas de colmo. Pela manhã, era normal sairem diversas secções de combate, ou até mesmo pelotões completos, a fazer incursões no interior das matas. Este conjunto de militares era sempre acompanhado por uns tantos africanos que, pelo menos, mostravam que eram fiéis aos militares, serviam de guias e tradutores, passavam em certas áreas, visitavam aldeias, pediam identificação a alguns naturais, verificavam se havia algo de suspeito e faziam algumas perguntas quando suspeitavam de algo.
Quase sempre por onde passavam não viam ninguém, só talvez pessoas já de uma certa idade, mesmo velhas, a trabalharem nos pântanos do arroz, e crianças, mesmo crianças, com menos de dez anos, a guardarem algum gado, como se fossem pastores.
Quando os militares andavam em patrulha, por essas áreas, se por qualquer circunstância encontrassem um jovem, tanto fazia ser homem ou mulher, que aparentasse idade entre os quinze e os trinta anos, mais ou menos, e não tivesse identificação, ficava nesse momento com o rótulo de guerrilheiro e era aprisionado e trazido para o aquartelamento, como fosse guerrilheiro das forças de libertação, para ser interrogado. Este era o sistema e as ordens que na altura havia.
Os guerrilheiros que compunham os diversos grupos de combate, que queriam a independência, da dita província e a quem o governo de Portugal chamava “terroristas”, embora ainda não tivessem muita experiência de combate, sabiam o que faziam, sabiam estar no terreno. Talvez avisados, precaviam-se e desapareciam dessas áreas. Dava a entender que sabiam o sistema como actuavam os militares.
No aquartelamento dizia-se que aqueles ataques esporádicos, que o aquartelamento sofria, eram só para os militares saberem que eles andavam por ali, e que existiam.
Ninguém sabe se era essa a verdade. Contudo, raro era o dia em que as nossas forças, no regresso ao aquartelamento, traziam de volta prisioneiros, ou qualquer outra informação. Pelo contrário vinham exaustos e com cara de sofrimento.
Num desses ataques, o Curvas, o tal soldado atirador, alto e refilão, que andava sempre contrariado e não acatava ordens, que queria mandar e todos diziam que devia ser general, sai sozinho do aquartelamento, por uma parte onde ainda não havia arame farpado, para o lado das matas, com a G3 em punho, aos tiros, de peito aberto, gritando:
- Venham cá, filhos da puta!. Turras da merda!. Eu vou matá-los a todos!
Era assim o homem, não obedecia e fazia o que queria. Por acaso não lhe aconteceu nada e regressou ao aquartelamento, pelo mesmo sítio, com a cara vermelha e coberto de suor, deitando saliva pelos lábios, com os olhos vidrados, talvez de fúria.
O tal capitão, que diziam que partia tudo à bofetada, estava lá, viu toda esta cena, na frente de todos, mas nem se aproximou do Curvas, e diziam que a partir desse momento deixou de bater nos soldados.
O Curvas pertencia ao pelotão de morteiros e era amigo do Trinta e Seis, pois só o Trinta e Seis lhe dava ordens e o acalmava.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 31 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10212: Do Ninho d'Águia até África (3): Uma pausa para reflectir, guerra é guerra (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)