sábado, 18 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17984: Bibliografia (41): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,

Devemos a Mário Pinto de Andrade páginas determinantes sobre a ideologia anticolonial e escritos ou incontornáveis sobre a confluência dos movimentos de libertação que passaram a germinar ainda na década de 1950 e depois passaram a pesar no tablado internacional com o desencadeamento das lutas armadas. Concedeu de 1984 a 1987 uma longa entrevista a Michel Laban, de grande importância. Infelizmente, por razões da sua saúde, ficou incompleta. Mas podemos dispor do seu testemunho da vida angolana da sua infância, a sua vida para Lisboa, as amizades que constituiu com, entre outros, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Francisco Tenreiro, deste guardou uma admiração inexcedível. E lembra o pacto de amizade que estabeleceu com outro influente ideólogo angolano, Viriato da Cruz.

Um abraço do
Mário


Uma importante entrevista de Mário Pinto de Andrade (1)

Beja Santos

Dentre as figuras de proa do pensamento anticolonial produzido em torno das várias colónias portuguesas de África ressaltam Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Eduardo Mondlane. Mário Pinto de Andrade é de leitura obrigatória pelo seu envolvimento na luta anticolonial, muito perto do PAIGC, viveu em Conacri e mais tarde, após a independência da Guiné-Bissau, foi Ministro da Cultura.

“Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997, tem simultaneamente a estatura de uma “autobiografia orientada” e oferece um relato da germinação da luta anticolonial, mostrando como se foram criando os partidos políticos e se processou a sua ideologia. Sintetiza-se o que se pode ler neste livro pelo que se escreve na contracapa:

“Ao longo das sessões, que vão de Março de 1984 a Junho de 1987, Mário Pinto de Andrade concedeu uma importante entrevista a Michel Laban, maître de conferences na Universidade de Paris III e especialista em literatura africana de língua portuguesa. Muito para além de uma biografia, esta entrevista oferece-nos uma visão de Angola dos princípios do século através da geração do seu pai; recria a vivência da Luanda dos anos 30 e 40; retrata as inquietações da sua geração, com ponto de encontro em Lisboa, finais dos anos 40 até 1954; conta-nos da emigração e da atmosfera da vida em Paris, para onde confluíam os intelectuais das várias colónias de África; e, por fim, vêm as memórias e os factos da luta política de Angola”.

Recorde-se que Mário Pinto de Andrade faleceu em Londres em 1990. Temos a infância, o pai polígamo, funcionário das Finanças, daí ele dizer:  

“Nasci no distrito do Golungo Alto, mas vim muito cedo para Luanda, por razões familiares: o meu pai abandonou a minha mãe, houve a partilha das crianças”.

Guardou recordações da primeira viagem de comboio, conheceu a vida rural numa antiga propriedade familiar de um avô, dá notícias da família dispersa, dados sobre os seus ancestrais. Passou a infância nas Ingombotas, um bairro muito familiar com belos edifícios perto da Câmara, a igreja do Carmo e a linha férrea que ia até à estação da Cidade Alta: o caminho-de-ferro do Bungo. E diz a quem o entrevista:  

"Posso descrever-lhe uma das casas onde vivi: uma entrada, um pequeno quintal que podia ser ou não vedado por um muro de adobe, duas entradas: uma que dava para uma pequena sala, uma saleta, depois dois quartos – isto é, um grande quarto que podia ser divido para uma família numerosa –, e o resto, a cozinha, a retrete e o chuveiro ficaram fora, no quintal”.

E não esqueceu o funcionamento da escola:  

“Nós frequentávamos a escola: formalmente, não havia discriminação racial. Estávamos todos nos mesmos bancos das escolas, mas não se levava a merenda às crianças negras, levava-se às crianças brancas. Era uma imagem quotidiana das escolas, das escolas da nossa época: as crianças negras brincam no recreio e as crianças brancas, antes de brincar, são servidas por um criado negro. O criado vinha da casa, que estava muito próxima, com o copo de leite e a merenda. Não me lembro de ter entrado verdadeiramente na casa de um dos meus camaradas de classe brancos – numa casa desafogada. Lembro-me de ter amigos brancos de quem frequentava a casa, mas eram brancos muito pobres. Lembro-me mesmo, na casa de um branco muito pobre de ter pedido simplesmente um copo de água e do criado negro me ter dado uma caneca, naturalmente não lhe passava pela cabeça que um negro pudesse beber por outra coisa se não por uma caneca”.

Fala de gente mais velha, dos jogos, da madrasta. Finda a escola primária, pediu ao pai para entrar no seminário. Não esqueceu a educação que aqui recebeu e a formação que se oferecia e testemunha:

“O latim era a nossa religião, mas as outras matérias não, sobretudo as matérias ditas profanas – matemática, física, etc. Sabia-se muito bem que os estudantes do seminário eram muito bons alunos quando se reconvertiam à vida civil. Este ensino era rígido, os métodos pedagógicos eram muito velhos. Os prefeitos eram padres que nos seguiam nos dormitórios, tinham a cargo a disciplina, manejavam chicote, alguns batiam-nos, outros punham-nos de joelhos. Vivíamos uma época bastante difícil, era a guerra. Não havia racionamento, mas o seminário vivia de doações: comíamos quase todos os dias o mesmo prato que nós chamávamos a bolota, feijão e arroz”.

E deixa um desabafo:

“O quadro da minha rebelião contra a autoridade foi-me dado no seminário, não tanto em casa do meu pai. Não me revoltei contra o meu pai, era a autoridade paternal, era difícil, nunca fugi da casa dele, como as outras crianças fizeram”.

Fala da influência dos mais velhos, influência marcante no continente africano, fala dos filmes que viu, das leituras de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Fala dos assimilados, da realeza de Cabinda, do ritual quotidiano do pai, da Liga Nacional Africana, do indigenato, de um prestigiado médico negro, o Dr. Aires de Menezes, do advogado Tomé Agostinho das Neves, também ligado à Liga Nacional Africana. Concluído o liceu, instalou-se como professor no Colégio Portugal e dava lições particulares. Aí por 47, 48, tem contactos literários com alguns amigos, como Viriato da Cruz e Higino Aires:

“Os dois vinham ver-me muitas vezes à casa que eu habitava no musseque, no quilómetro 5. Comecei a estabelecer relações culturais e literárias com estes dois compatriotas. Higino Aires escrevia. Não deixou uma obra muito importante, conhecem-se poucas coisas, a menos que haja manuscritos inéditos. Viriato da Cruz acabava os seus estudos secundários”.


Mário Pinto de Andrade em Paris

Deixa Luanda em Outubro de 48, veio um pouco à aventura para Portugal, decidiu-se pela Filologia Clássica. O pai contestou a partida para Portugal imediatamente após o fim do secundário, queria que ele fosse funcionário durante um ano, para juntar um pouco de dinheiro, o pai queria que ele passasse num concurso de ingresso nas Finanças. Veio para Lisboa no navio Pátria, com o futuro primeiro cardeal e com o irmão, Joaquim Pinto de Andrade. Antes de partir para Lisboa, vai visitar Viriato da Cruz, estava no Hospital Maria Pia, sofria dos pulmões. “Selámos um pacto de amizade, que devia traduzir-se numa correspondência contínua”.

Em Lisboa vai viver numa pensão.

“Havia duas formas de mentalidade africana que nos acompanhavam em Lisboa: a segurança orgânica e o instinto gregário. Na altura não havia cidade universitária em Lisboa e só as raparigas que eram católicas podiam ficar alojadas nos conventos ou escolas religiosas”.

Constituiu-se o seu primeiro grupo de Lisboa, Amílcar Cabral entra na sua vida.

“Foi na rua Luís de Camões, em Santo Amaro, que ia para a Tapada da Ajuda, que conheci Amílcar Cabral. Recordo-me da nossa primeira troca de palavras: era a expressão de um contentamento – uma alegria verdadeira. Para já, Amílcar Cabral era um homem de uma grande humanidade e de uma alegria muito sincera no contacto que estabelecia com outros africanos. Habituei-me a encontrar Amílcar Cabral na Tapada da Ajuda, a conversar com ele”.

O anticolonialismo começa a emergir:

“Este ano de 48, princípio de 49, não foi muito importante é em meados de 49 que as coisas começam a tomar uma outra dimensão com o alargamento do nosso grupo e das nossas preocupações (…). É nesse momento que conheço Agostinho Neto. Agostinho Neto era estudante em Coimbra em 47, depois veio para Lisboa. Foi justamente naquela pensão que eu o conheci. Depois foi viver para o Bairro da Graça. Era um homem que parecia tímido, reservado e começava já a escrever. Posso dizer-lhe vi os primeiros poemas de Agostinho Neto”.

Descobriram um centro de reunião, na rua Ator Vale, era a casa de uma família de S. Tomé, a família Espírito Santo. Esta família foi o ponto de convergência do grupo.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17959: Bibliografia (40): "Um Legado de Espiões", por John le Carré, Publicações Dom Quixote, 2017 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17983: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 5 e 6: Partida nos TAM, com destino ao inferno:




José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74. Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo hoje autor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Senta-se debaixo do poilão da Tabanca Grande no lugar nº 756.




Aerograma do José Claudino da Silva para a namorada, com data de 26 de junho de 1972,


Fotos (e texto): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Prosseguimos a pré-publicação do próximo livro do nosso camarada José Claudino Silva:

Sinopse (*):


(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depiois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74).


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 5  (A partida para o inferno) e 6 (A viagem para o inferno)


[O autor faz questão de não corrigir as transcrições das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, que o criou. ]


5º Capítulo > A PARTIDA PARA O INFERNO


Ainda fui à noite de São João de 1972. Fui a Castelo de Paiva! Levei comigo o Jorge, o 1º cabo Operador Cripto. Fomos na minha Sachs Lebre artilhada. Já a tinha vendido ao Henrique “Ferreiro”, irmão do falecido Fernando. Ele não ia ser militar, em virtude da morte do irmão. Entreguei-lha no dia 25 de junho. Foi a última coisa de que me despedi. Da família, dos amigos e da namorada, tinha-me despedido horas ou até dias antes.

Constato agora que se eu tivesse morrido na guerra colonial, o meu irmão Zé e o meu irmão Chico não seriam militares; éramos filhos da mesma mãe. Mas o Aníbal, o Fernando e o Luís não teriam essa sorte. Esses eram meus irmãos, apenas de pai e eu não tinha sido perfilhado.

Quando a bordo do comboio rumo a Lisboa, passámos sobre a ponte Dona Maria, na linha do norte. Ainda pude ouvir a música “Quero que vá tudo pró inferno”, canção de Roberto Carlos, que soava nos altifalantes dos carrosséis, nas Fontainhas. Afinal, quem ia para o inferno era a 3ª Companhia do Batalhão de Artilharia 6520.

Julgo não estar muito longe da verdade se disser que um Batalhão é composto por quatro companhias, comandadas por um tenente coronel. Uma companhia é composta por quatro pelotões, comandados por um capitão. Um pelotão não tendo um número fixo de militares; é hierarquicamente composto por um alferes, quatro furriéis, cabos e soldados, divididos em quatro secções, num total aproximado de 30 elementos. Da companhia, fazem ainda parte dois sargentos, sendo um denominado 1º Sargento.

Como já referi, eu pertenci à 3ª Companhia de Artilharia.

Tínhamos deixado o RAL 5 de Penafiel, exactamente às 07h40 dessa longínqua mas, constantemente presente nos meus pensamentos, manhã de 25 de junho de 1972. Chegáramos às 17h45 a Lisboa. Percorrer 330 quilómetros, demorara dez horas e cinco minutos, a maioria de nós nunca tinha ido tão longe.


6º Capítulo > A VIAGEM PARA O INFERNO


“26 de Junho de 1972

A bordo do Boeing 707 dos T.A.M. (Transportes Aéreos Militares).

Minha querida:

Encontro-me neste momento a cerca de onze mil metros de altitude e como vez não deixo de pensar em ti. Devo dizer-te que descolei do aeroporto da Portela às nove horas em ponto e já venho a voar há duas horas. É simplesmente impressionante o avião em que viajo, eu, e juntamente comigo, cerca de duzentos passageiros. Às dez horas em ponto, foi-nos servido o pequeno-almoço e chegaremos à Guiné dentro de duas horas.

Estamos a sobrevoar uma ilha, cujo nome não te sei dizer e confesso que vista daqui; desta altitude, se assemelha a um simples monte de terra. A impressão que sinto dentro deste monte de ferro, é difícil de explicar, mas o que digo, é que nunca estive tão nervoso na minha vida. Não imaginas o que é estarmos tão longe do solo. Que neste caso é mar, irmos a uma velocidade de 900 km hora e termos a sensação que estamos a flutuar parados no ar. É de facto de tal maneira inexplicável que até eu não sei bem definir, confesso que me sinto completamente atordoado.

Cada vez me afasto mais de ti e dos meus entes queridos e me aproximo da terra africana. Meu amor como irei suportar todos estes meses, todos os dias, todas as horas e todos os minutos longe de ti? Como poderei resistir ao desejo de te ter sempre junto de mim? Prefiro morrer a saber que te possa perder.

Do teu DINO."

1º Cabo 158532/71 S.P.M. 2478.


(Continua)

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:



Guiné 61/74 - P17982: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - Parte XVI: Nuku Alofa, Ilhas Tonga, Polinésia: O arquipélago conta com 176 ilhas, sendo 40 delas habitadas, e forma também o único território do Pacífico Sul que nunca foi colonizado por estrangeiros. Os tonganeses têm orgulho nisso.




Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3

Ilhas Tonga, Polinésia


Fotos e legendas: © António Graça de Abreu (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Parte XVI (Segundo volume, pp. 19-22)



1. Continuação da publicação das crónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias", do nosso camarada António Graça de Abreu, escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 200 referências.


É casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais. 


Sinopse (*):

(i) neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016;

(ii) três semanas depois o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento, sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017);

(iii) na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017). No dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano. Navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo;

(iv) ym mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016;

(v) segeuem-se depois as ilhas Tonga, antes do navio chegar a Auckland, Zona Zelânida, em 20/10/2016.


Nuku Alofa, Ilhas Tonga, Polinésia


Às oito e meia da manhã saio do navio para a descoberta impossível-possível desta ilha de Tongatapu onde se situa Nuku Alofa, a capital do reino de Tonga. Reino? Exactamente. Tonga é uma velha monarquia e não existe mais nenhuma em toda a Polinésia. Sua Majestade o rei Tupou VI e a rainha Nanasipau’u dão logo as boas vindas aos recém-chegados, em dois painéis gigantes à entrada do pequeno porto [, Fotro nº1 ],

O arquipélago conta com 176 ilhas, sendo 40 delas habitadas, e forma também o único território do Pacífico Sul que nunca foi colonizado por estrangeiros. Os tonganeses têm orgulho nisso. A sua pele é escura, lábios grossos, olhos grandes, maçãs do rosto salientes, feições marcadas pela origem polinésia. Parecem gente simples, respeitadora do próximo e muito religiosa. Tal como em Samoa, irei comprovar, um pouco por toda a parte, a existência de variadíssimas igrejas católicas e protestantes.

A ilha é plana, sem edifícios altos. Em Nuku Alofa, destaca-se o palácio do rei, um excelente conjunto arquitectónico rodeado de relvados e jardins, de madeira pintada em branco, com telhados vermelhos pré-fabricado na Nova Zelândia em finais do século XIX e depois trazido para a ilha e aqui montado. Não é visitável porque Sua Majestade habita no palácio, não costuma receber convidados e mais raramente ainda é visto pelo seu povo.

Dou uma volta pelo centro de Nuku Alofa, uma cidadezinha com 20 mil habitantes, não muito interessante. Descubro uma originalidade, uma agência de viagens que tem o curioso nome de Teta Tours. Entro num mini-bus que leva passageiros para parte incerta, a leste, e pergunto ao condutor se vamos passar por alguma praia. Ele responde, num catastrófico inglês, que no fim da linha existe uma praia.

Avanço. Foram 20 a 25 quilómetros de estrada, sentado no meio da gente boa e simples de Tonga, sempre a sair, sempre a entrar, surpreendida por encontrar dois estrangeiros na carrinha de transporte. Passamos por um hospital moderno, circundamos a grande laguna que entra por dentro da ilha e quase a corta ao meio, atravessamos a vila de Mu’a. Continuamos viagem para norte, já não há ninguém no mini-autocarro, só nós dois e o motorista. Pergunto-lhe pela praia. Diz-me que fica dois quilómetros mais adiante mas temos de pagar dois dólares US pela continuação do trajecto. Ok! 

Chegamos à praia, pequena, com pouca areia e as águas não completamente limpas. Falo-lhe em outras praias, mais bonitas. Sim, ele pode-nos levar, fecha o mini-bus ao serviço público – ficará por nossa conta --, e vamos dar a volta a toda a ilha, coisa aí para quatro horas. São 150 dólares US. Não era bem isto que eu queria. Pagamos os dois dólares cada um e saímos. Olho o mapa, podemos caminhar ao longo do mar e retomar mais adiante a estrada de regresso.

Encontro três tonganeses que metem conversa. Só a mulher fala um pouco de inglês e pergunta de onde é que nós somos. Não sei se entendeu o nome de Portugal, mas acrescentei, “Viajamos desde a Europa num grande navio italiano.” Algum espanto no semblante dos ilhéus que habitam em três ou quatro pobres casas de madeira, do outro lado da estrada, frente ao mar. Têm porcos pretos que andam à solta pela rua procurando comida, chafurdando à vontade por tudo quanto é sitio. Uma mãe porca, extremosa e dedicada, deixa seis ou sete bacorinhos chuparem desalmadamente as suas tetas. Os leitões assustam-se com a minha aproximação para tirar uma fotografia e fogem, cada um para seu lado. Depois voltam à protecção da mãe e às saborosas tetas da porca. Associo a cena ao nome da agência de viagens de Nuku Alofa, rigorosamente Teta Tours. É isto mesmo. Pergunto aos tonganeses se podemos tomar banho na praia. A mulher diz-me que sim, mas acrescenta que quando alguém mergulha naquelas águas lisas é normal um porco atravessar a estrada, fazer companhia ao banhista e meter-se também por dentro do mar. [Foto nº2].

Tomar banho na praia de uma apetecível ilha da Polinésia, na companhia de um porco preto?

Regresso a Nuku Alofa, com paragem no porto primitivo onde o capitão Cook, descobridor do sul da Austrália, desembarcou em 1777, na vinda a este lugar. Na pequena estação de autocarros da capital pergunto por um mini-bus que me leve para o outro lado, o oeste da ilha, até à praia de Ha’atafu que, segundo o mapa de Tonga e a fotografia do folheto turístico, me parece ser um lugar excelente.

Mais trinta quilómetros por boa estrada marginada por casas de melhor qualidade do que as do lado leste da ilha, e chegamos a Ha’atafu. A praia não exibe os predicados que eu imaginava. Tem águas límpidas, mas também muita pedra e areia pouco fina. Saudades das praias das Caraíbas, mas provavelmente ainda não acertei numa boa praia do Pacífico. Um bom banho, duas horas de papo para o ar e é tempo de pensar no regresso ao navio [Foto nº3].

Uma longa caminhada pelo estreito alcatrão da estrada, por entre uma estonteante floresta tropical, algumas casas bonitas rodeadas de jardins, o verde intenso dos relvados e arbustos, e chego a uma singular aldeia grande que dá pelo nome de Nukunuku. Com nome tão sugestivo, estou com curiosidade em conhecer. 

Vou descobrindo que o idioma tonga também é muito traiçoeiro. Pergunto qual o significado de tão estranho topónimo. Muitos simples, nuku significa “habitação, casa”, nukunuku será uma “aldeia”, “um conjunto de casas.” O nome de Nuku Alofa, a capital, tem a ver com nuku, ou seja “casa” e alofa que significa “amor”. Portanto haverá “amor nas casas”, ou um conjunto de nukus, as “casas” onde reina o “amor.”

Em Nukunuku, ao lado da estrada, um grupo de miúdos joga à bola no recreio da escola. Num grande relvado, rapazes e raparigas correm, lançam-se à molhada para agarrar uma bola oval, não de futebol, mas de rugby. Tonga tem a Nova Zelândia e a Austrália como países de referência, as ilhas Fiji ficam relativamente perto. Aqui o desporto nacional é o rugby. Terminou o jogo, acabou o tempo de recreio na escola de Nukunuku. A campainha que marca a reentrada nas aulas é uma bilha de gás vazia percutida com uma espécie de martelo agitado impiedosamente pela mão de uma professora.

Outro mini-bus e estou de novo em Nuku Alofa, num aprazível café onde bebo um razoável “expresso” e utilizo o wi-fi gratuito. Na minha tablet vejo os mails da última semana e leio as notícias do Portugal distante. Pelo telemóvel, ligo para os meus filhos. Dois deles ignoravam por completo que existissem umas ilhas chamadas Tonga.

Últimas, e únicas, compras. Por oito dólares US, trago uma espectacular t-shirt preta com um golfinho dourado estampado no peito e, nas costas, também a dourado, as palavras Kingdom of Tonga. É para vestir no Verão, em dia de festa, em homenagem ao povo desta ilha.

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Guiné 61/74 - P17981: Parabéns a você (1343): António Mateus, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série >  16  de novembro de  2017 > Guiné 61/74 - P17975: Parabéns a você (1342): José António Viegas, ex-Fur Mil Art do Pel Caç Nat 54 (Guiné, 1966/68) e T-Coronel José Francisco Robalo Borrego, ex-Furriel Art do QP do 9.º Pel Art (Guiné, 1970/72)

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17980: Historiografia da presença portuguesa em África (101): António Estácio: O Contributo Chinês para a Orizicultura Guineense - Parte III: (v) sistemas de cultivo e variedades de arroz







V Encontro Nacional da Tabanca Grande, Leiria, Monte Real, 2010 > António Estácio, 



1. Continuação da publicação da comunicação do António Estácio, sobre o contributo da comunidade chinesa na Guiné, para o desenvolvimento da cultura do arroz. nas primeiras décadas do séc. XX, Temos a autorização expressa do autor, o nosso amigo e camarada António [Júlio Emerenciano ] Estácio, que tem 45 referências no nosso blogue. Eis aqui uma breve nota curriucular sobre ele:

(i) é lusoguineense, nascido em 1947, e criado no chão de Papel, em Bissau, com raízes transmontanas, tendo vivido também em Bolama;

(ii) formou-se como engenheiro técnico agrário (Coimbra, 1964-1967, Escola de Regentes Agrícolas, onde foi condiscípulo do Paulo Santiago), depois de frequentar o Liceu Honório Barreto;

(iii) fez a tropa (e a guerra) em Angola, como alferes miliciano (1970/72);

(iv) trabalhou depois em Macau (de 1972 a 1998);

(v) vive há quase duas décadas em Portugal, em Algueirão, no concelho de Sintra;

(vi) é membro da nossa Tabanca Grande desde maio de 2010;

(viii) tem-se dedicado à escrita, dois dos seus livros mais recentes narram as histórias de vida de duas "Mulheres Grandes" da Guiné, a cabo-verdiana Nha Carlota (1889-1970) e a guineense Nha Bijagó (1871-1959);

(ix) o seu livro mais recente (2016, 491 pp.), de temática guineense, tem como título "Bolama, a saudosa", edição de autor;

(x) a comunicação que agora se reproduz foi feita no âmbito da V Semana Cultural da China, de 21 a 26 de janeiro de 2002;


2. O Contributo Chinês para a Orizicultura Guineense - Parte III: (iv) sistemas de cultivo e variedades de arroz (pp. 446-452):













(Continua)


Texto e infogravuras: © António Estácio (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Nota do editior

Vd. postes anteriores da série:

16 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17977: Historiografia da presença portuguesa em África (100): António Estácio: O Contributo Chinês para a Orizicultura Guineense - Parte II: (iii) da pesca à agricultura; (iv) os primeiros chineses e seus descendentes

15 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17974: Historiografia da presença portuguesa em África (99): António Estácio: O Contributo Chinês para a Orizicultura Guineense - Parte I: (i) preâmbulo: (ii) generalidades

Guiné 61/74 - P17979: Blogues da nossa blogosfera (79): Carlos Esteves Vinhal, editor de mais um blogue, o da Associação Universidade Sénior de Matosinhos (Luís Graça)


Folha de rosto do blogue da AUMS - Associação Universidade Sénior de Matosinhos, associação essa que "está inserida no Museu Quinta de Santiago em Leça da Palmeira, para ocupação cultural dos tempos livres de pessoas séniores, através de Cursos diversos, Conferências, Visitas a museus, Passeios Culturais, etc."...O blogue foi criado em outubro passado, tem já 16 postes e cerca de 800 visualizações. O editor (e administrador) é o nosso querido Carlos Esteves Vinhal,

1. Há dias recebi a seguinte  mensagem  do Carlos Vinhal,  meu querido amigo, camarada de armas e companheiro desta aventura bloguística, a edição e administração do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (que vai fazer 14 anos em 23/4/2018, tem 760 membros registados e está prestes a atingir a fantástica cifra dos 10 milhões de visualizações):

Carlos Esteves Vinhal
 15/11/2017
Assunto - Mais um blogue

Luís, acho que ainda não conheces o meu filho mais novo.
Vai aqui: http://ausmatosinhos.blogspot.pt

Abraço
Carlos

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Ex-Fur Mil da CART 2732
Mansabá/Guiné/1970-72

Co-Editor dos Blogues:
Luís Graça & Camaradas da Guiné
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt

CART 2732
https://cart2732.blogspot.pt

Tabanca dos Melros
https://tabancadosmelros.blogspot.pt

Editor do Blogue
ASSOCIAÇÃO UNIVERSIDADE SÉNIOR DE MATOSINHOS
https://ausmatosinhos.blogspot.pt

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1.º Secretário da Mesa da Assembleia Geral
do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes

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2. Comentário do editor LG:

Carlos, tiro-te o chapéu!...Tu não páras, e geres muito bem o teu "tempo livre"... de 24 horas por dia... És um exemplo estimulante, para todos nós, és mesmo um "caso sério" de um "sénior" (eu prefiro o termo, "jovem idoso"...) que sabe "envelhecer" de maneira "ativa, produtiva e saudável"...

Fazes o que gostas, que é editar blogues, e és útil à(s) comunidade(s) a que pertences, a começar pela tua terra ou terra onde onde vives (Leça da Palmeira) e concelho (Matosinhos)... Eu sei que Matosinhos é uma... Nação, e que Leça da Palmeira, hoje integrada na cidade de Matosinhos, tem mais pergaminhos, pedigree e património histórico... do que a antiga "Bouça"... (Espero que os matosinhenses não me batam!)

Dou-te os parabéns!... Vejo que a tua experiência como coeditor do nosso blogue te tem sido muito útil, e que estás agora em condições de  partilhá-la com outros... Lembro-me que, quando te convidei, para meu braço direito, mal sabias da "poda" (isto é, informática, internet, edição de blogues...). Mas tudo se aprende, e quem aprende chega a mestre (ou pode chegar a mestre), já que não há idade para aprender... como não há idade para amar, viver e ser feliz...

Enfim, és também coeditor de outros blogues (CART 2732; Tabanca dos Melros; Luís Graça & Camaradas da Guiné....).  Este, o da AUSM,  podes  mesmo chamar-lhe "filho", já que é uma "criatura" tua, de pleno direito... E não precisas de fazer o teste de paternidade: não é nenhum "filho do vento"...

Além disso, ainda arranjas tempo para pertencer aos corpos sociais do Núcleo de Matosinhos da Liga dos  Combatentes... E não é pelo penacho, pela boina, pelo crachá, pelo ronco, pela fotografia... É mesmo para trabalhar... Quem te conhece, sabe que não és do tipo de "capinar sentado", como a gente diz na Tabanca de Candoz... (A piada é para mim que, na quinta de Candoz, só sei fazer versos e tirar fotos...).

Desejo-te boa sorte, boa saúde, bom trabalho, à frente do blogue da Associação Universidade Sénior de Matosinhos. E continuo, continuamos,  a contar contigo, pelo menos até aos 100 anos, quando formos mesmo "velhinhos, velhinhos"...

E que vivam os nossos amigos e camaradas séniores de Matosinhos bem como a AUSM!...
(LG)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P17978: Notas de leitura (1015): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (9) (Mário Beja Santos)

Bissau velho


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,

Folheando toda esta documentação que o Arquivo Histórico do BNU me está a disponibilizar, dou conta da inusitada franqueza com que o gerente observa não só o poder político, como os servidores do Estado, as práticas comerciais, destilando por vezes críticas brutais, mencionando os boatos que correm, os desacertos protocolares, neste caso peço a vossa atenção para a primorosa descrição da chegada dos aviadores e a organização dos festejos, não falta ali o picante dos humoristas da época como André Brun ou Gervásio Lobato, reproduzíamos no espaço colonial as mesmas farroncas que usávamos na capital.

São páginas que revelam o outro lado da presença portuguesa ao tempo em que se falava de pacificação mas eram frequentes os sobressaltos de revoltosos.

E, por último, uma chamada de atenção para aqueles aviadores que lançavam granadas sobre tabancas que não estavam em revolta...

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (9)

Beja Santos

Em 21 de Maio de 1925, o gerente da filial de Bolama envia um extenso ofício para Lisboa, o assunto mencionado diz: Revolta indígena. Pela sua importância, vale a pena destacar alguns extratos significativos:  

“Desde fins de Março, princípios de Abril, que começou a constar aqui que os indígenas da ilha de Canhabaque estavam revoltados. Eram desencontradas as informações que corriam sobre a origem dessa revolta, diziam uns que ela era motivada por os indígenas se querem recusar ao pagamento do imposto, outros diziam que era devida à teimosia do governo em estabelecer postos militares em sítios que, eles indígenas, consideram como chão sagrado.

Começou depois correndo o boato de que a situação se ia agravando; o mutismo oficial continuou até que, em certo dia, começaram armando com artilharia e tropa dois vapores que o governo aqui tem e que são os únicos que estão em poder navegar. Acompanhava essa expedição um tenente do exército, o qual por ter bastantes anos de permanência na Guiné dizia conhecer bem o terreno e costumes dos Bijagós e exercer sobre eles grande influência. Ia esse tenente incumbido de diplomaticamente conseguir que os revoltosos voltassem à ordem. Poucos dias depois, regressou a essa expedição, mas continuou a nada se dizer sobre o assunto. Pouco tempo depois, porém, começaram novamente a correr boatos de agravamento da situação, de novo tornaram a armar os referidos vapores, chegaram vários grupos indígenas, na maioria Fulas, acompanhados dos seus régulos, a quem começaram a distribuir armamento para formarem uma coluna militar.
Aproveitando a estada aqui dos aviadores que fizeram o raide Lisboa-Guiné, foram estes com o seu aparelho lançar sobre os revoltosos algumas granadas; como, porém, não houve o bom senso de fazer acompanhar os aviadores por alguém que conhecesse bem a topografia das ilhas, isso deu em resultado que lançassem algumas dessas granadas sobre tabancas que não estavam em revolta. Isso deu em resultado que esses indígenas se irritassem e se unissem aos revoltosos.

Finalmente, em 18 de Abril, resolveu-se o governo a quebrar o seu silêncio, publicando em suplemento ao Boletim, uma portaria declarando estado de sítio em várias ilhas do arquipélago. Partiu então para ali o governador acompanhado do seu Estado-Maior, e durante muitos dias nada mais se soube. Em 5 ou 6 do corrente começou a correr o boato de que as operações estavam terminadas e que a coluna ia regressar. Todos se admiram disso, pois que até a essa data ainda aqui não tinham aparecido nenhuns prisioneiros nem mesmo feridos ou mortos. Em 7 do corrente, quebrou o governo o silêncio publicando outro suplementos ao Boletim em que se declara que as operações estavam quase concluídas e que a ilha onde a revolta mais intensamente se tinha manifestado fora completamente batida. Nesse mesmo dia, apareceu aqui de regresso uma força acompanhando vinte e tal prisioneiros, na sua maioria mulheres e crianças. Publicado este suplemento e talvez para desfazer a má impressão causada pelo diminuto número e qualidade dos prisioneiros, fez-se constar que uma parte da coluna comandada pelo tal tenente se dirigira par a Ilha das Galinhas onde supunham que os revoltosos se tinham refugiado. Essa parte da coluna já aqui regressou mas não consta que tenha trazido mais prisioneiros. Em 3 do corrente, regressou o governador com o seu Estado-Maior. Corre o boato de que as ilhas revoltadas ficaram ocupadas pelos Balantas. Se assim é, segundo a opinião de pessoas conhecedoras, esses Balantas a pouco e pouco irão sendo disseminados pelo arquipélago.

Em resumo, as conclusões a tirar do resultado das operações são as seguintes: como certo, um desfalque nas finanças da província; um grande e duplo abalo na influência da nossa soberania visto que não se chegou a dar o devido corretivo aos revoltosos. Dizemos duplo porque essa nossa soberania perdeu muito. Como provável: dentro de um prazo mais ou menos curto, nova revolta ou provocada pelos mesmos Bijagós que se encontrão em melhores condições de armamento, visto terem-se certamente apoderado das armas que os mortos e feridos deixaram no campo, e ainda daquelas com que ficaram os Balantas ocupantes das ilhas. Se essa revolta não for promovida pelos Bijagós será, então pelos mesmos Balantas que, com a força moral que lhes deram fazendo-os ocupantes das Ilhas, e com as armas que lhes deixaram, se sentiram fortes para ela”.

No mês anterior, o gerente da filial do BNU dava conhecimento a Lisboa da chegada dos aviadores Capitão Pinheiro Corrêa e do Tenente Sérgio da Silva como do Sargento Mecânico Manuel António. Veja-se o que há de desconcertante no ofício:

“Apesar do campo da viação estar repleto de gente, a receção feitas aos mesmos foi bastante fria, por falta de iniciativa das entidades oficiais pois que, nem sequer o governador teve a lembrança de, ao receber as cartas que o Presidente da República e o General Inspetor da Aeronáutica Militar enviaram em mão do Capitão Corrêa, as ler perante o público que ali se encontrava, o que certamente daria lugar em manifestações bem merecidas. No dia seguinte teve-se conhecimento que as festas oficiais se resumiam a uma soirée na residência do governo no dia 4 e a um projetado piquenique a promover pela câmara municipal com o auxílio do comércio, no dia 6, na Ilha das Cobras”.

Bem à portuguesa, uns espontâneos quiseram organizar um baile e pediram as instalações ao BNU, diz-se no ofício que a soirée foi bastante animada, o gerente não quis participar porque tinha pouco gosto em andar em festas, mas lá compareceu por insistência do governador. Segue-se outro acontecimento à portuguesa:

“O presidente da câmara também nos tinha procurado para subscrevermos para o piquenique. Como na ocasião a Casa Gouveia ainda não tivesse indicada quantia que subscrevia, dissemos ao presidente que só depois daquela Casa indicar a sua quota nós indicaríamos a nossa. Recebemos depois convite para o piquenique mas estranhado que o presidente da câmara não voltasse a procurar-nos para saber qual a verba com que subscrevíamos, tratámos de averiguar o que havia e soubemos então que, tendo um comerciante dos mais importantes da praça concorrido apenas com 80 escudos, o governador descontente com isso ordenara à câmara para restituir os dinheiros recebidos e que custeasse do seu cofre as despesas a fazer. Constou-nos logo que o comércio melindrado pela atitude do governador resolvera não comparecer ao piquenique e, para que não se julgasse que nós nos solidarizávamos com o comércio neste protesto resolvemos, embora bastante contrariados, ir assistir ao mesmo, dando também feriado ao nosso pessoal para ele também poder ir. Correu tudo muito bem e com muito entusiasmo, tiraram-se várias fotografias e a pedido dos nossos empregados tirámos um grupo especial em que apenas figuramos nós, os aviadores e os empregados da Filial; já vimos uma prova dessa fotografia que não ficou muito boa devido a ser tirada quando a luz já era escassa, e logo que o fotógrafo a reproduza enviaremos uma V. Exas.”.


O relatório de 1925 alude categoricamente a que a Fazenda tem falta de fundos para resolver os seus compromissos, havia penúria nos cofres do governo, despesas com as comunicações e com os vencimentos do servidor de Estado. Falando destes últimos, o gerente entendeu por bem citar o padre António Vieira: “Quando mais comem e consomem, tanto menos se fartam”.

Casa Gouveia



Quanto à situação da praça, é referida uma relativa crise. E o gerente entendeu por bem dirigir uma catilinária ao comércio:  

“A forma como aqui se comercia é de ocasião e absolutamente primitiva. Aproveitando-se grosseiramente da falta de navegação, elevam com o mais alvar descaramento, os preços, quando determinada mercadoria escasseia na praça. É positivamente um comércio de assalto. Na sua maioria, comerciantes aqui desembarcados de saca e socos muito deixam a desejar. Orgulham-se, tolamente, de não precisarem do banco, mendigando-nos depois, miseravelmente, transferências. Apenas aqui existe uma casa comercial digna desse nome: é a Casa Gouveia! Não obstante, esta não deixa de enfermar de todos os vícios gananciosos do pequeno comércio, cultivando-os até com requintes de exagero”.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 10 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17956: Notas de leitura (1013): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (8) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17965: Notas de leitura (1014): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17977: Historiografia da presença portuguesa em África (100): António Estácio: O Contributo Chinês para a Orizicultura Guineense - Parte II: (iii) da pesca à agricultura; (iv) os primeiros chineses e seus descendentes




V Encontro Nacional da Tabanca Grande, Leiria, Monte Real, 2010 > António Estácio, 


1. Continuação da publicação da comunicação do António Estácio, sobre o contributo da comunidade chinesa na Guiné, para o desenvolvimento da cultura do arroz. nas primeiras décadas do séc. XX, Temos a autorização expressa do autor, o nosso amigo e camarada António [Júlio Emerenciano ] Estácio, que tem 45 referências no nosso blogue. Eis aqui uma breve nota curriucular sobre ele:

(i) é lusoguineense, nascido em 1947, e criado no chão de Papel, em Bissau, com raízes transmontanas, tendo vivido também em Bolama;

(ii) formou-se como engenheiro técnico agrário (Coimbra, 1964-1967, Escola de Regentes Agrícolas, onde foi condiscípulo do Paulo Santiago), depois de frequentar o Liceu Honório Barreto;

(iii) fez a tropa (e a guerra) em Angola, como alferes miliciano (1970/72); 

(iv) trabalhou depois em Macau (de 1972 a 1998); 

(v) vive há quase duas décadas em Portugal, no concelho de Sintra; 

(vi) é membro da nossa Tabanca Grande desde maio de 2010; 

(viii) tem-se dedicado à escrita, dois dos seus livros mais recentes narram as histórias de vida de duas "Mulheres Grandes" da Guiné, a cabo-verdiana Nha Carlota (1889-1970) e a guineense Nha Bijagó (1871-1959);

(ix) o seu livro mais recente (2016, 491 pp.), de temática guineense, tem como título "Bolama, a saudosa", edição de autor;

(x) a comunicação que agora se reproduz foi feita no âmbito da V Semana Cultural da China, de 21 a 26 de janeiro de 2002;


2. O Contributo Chinês para a Orizicultura Guineense - Parte II: (iii) da pesca à agricultura: (iv) os primeiros chineses e seus descendentes (pp. 440-446)


In: Estácio, António J.E. (2002) – O Contributo Chinês para a Orizicultura Guineense, in: Actas, V. Semana Cultural da China, Centro de Estudos Orientais, ISCSP/UTL: 431‑66




















(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série >  15 de novembro de 2017 >  Guiné 61/74 - P17974: Historiografia da presença portuguesa em África (99): António Estácio: O Contributo Chinês para a Orizicultura Guineense - Parte I:  (i) preâmbulo: (ii) generalidades