Queridos amigos,
Devemos a Mário Pinto de Andrade páginas determinantes sobre a ideologia anticolonial e escritos ou incontornáveis sobre a confluência dos movimentos de libertação que passaram a germinar ainda na década de 1950 e depois passaram a pesar no tablado internacional com o desencadeamento das lutas armadas. Concedeu de 1984 a 1987 uma longa entrevista a Michel Laban, de grande importância. Infelizmente, por razões da sua saúde, ficou incompleta. Mas podemos dispor do seu testemunho da vida angolana da sua infância, a sua vida para Lisboa, as amizades que constituiu com, entre outros, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Francisco Tenreiro, deste guardou uma admiração inexcedível. E lembra o pacto de amizade que estabeleceu com outro influente ideólogo angolano, Viriato da Cruz.
Um abraço do
Mário
Uma importante entrevista de Mário Pinto de Andrade (1)
Beja Santos
Dentre as figuras de proa do pensamento anticolonial produzido em torno das várias colónias portuguesas de África ressaltam Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Eduardo Mondlane. Mário Pinto de Andrade é de leitura obrigatória pelo seu envolvimento na luta anticolonial, muito perto do PAIGC, viveu em Conacri e mais tarde, após a independência da Guiné-Bissau, foi Ministro da Cultura.
“Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997, tem simultaneamente a estatura de uma “autobiografia orientada” e oferece um relato da germinação da luta anticolonial, mostrando como se foram criando os partidos políticos e se processou a sua ideologia. Sintetiza-se o que se pode ler neste livro pelo que se escreve na contracapa:
“Ao longo das sessões, que vão de Março de 1984 a Junho de 1987, Mário Pinto de Andrade concedeu uma importante entrevista a Michel Laban, maître de conferences na Universidade de Paris III e especialista em literatura africana de língua portuguesa. Muito para além de uma biografia, esta entrevista oferece-nos uma visão de Angola dos princípios do século através da geração do seu pai; recria a vivência da Luanda dos anos 30 e 40; retrata as inquietações da sua geração, com ponto de encontro em Lisboa, finais dos anos 40 até 1954; conta-nos da emigração e da atmosfera da vida em Paris, para onde confluíam os intelectuais das várias colónias de África; e, por fim, vêm as memórias e os factos da luta política de Angola”.
Recorde-se que Mário Pinto de Andrade faleceu em Londres em 1990. Temos a infância, o pai polígamo, funcionário das Finanças, daí ele dizer:
“Nasci no distrito do Golungo Alto, mas vim muito cedo para Luanda, por razões familiares: o meu pai abandonou a minha mãe, houve a partilha das crianças”.
Guardou recordações da primeira viagem de comboio, conheceu a vida rural numa antiga propriedade familiar de um avô, dá notícias da família dispersa, dados sobre os seus ancestrais. Passou a infância nas Ingombotas, um bairro muito familiar com belos edifícios perto da Câmara, a igreja do Carmo e a linha férrea que ia até à estação da Cidade Alta: o caminho-de-ferro do Bungo. E diz a quem o entrevista:
"Posso descrever-lhe uma das casas onde vivi: uma entrada, um pequeno quintal que podia ser ou não vedado por um muro de adobe, duas entradas: uma que dava para uma pequena sala, uma saleta, depois dois quartos – isto é, um grande quarto que podia ser divido para uma família numerosa –, e o resto, a cozinha, a retrete e o chuveiro ficaram fora, no quintal”.
E não esqueceu o funcionamento da escola:
“Nós frequentávamos a escola: formalmente, não havia discriminação racial. Estávamos todos nos mesmos bancos das escolas, mas não se levava a merenda às crianças negras, levava-se às crianças brancas. Era uma imagem quotidiana das escolas, das escolas da nossa época: as crianças negras brincam no recreio e as crianças brancas, antes de brincar, são servidas por um criado negro. O criado vinha da casa, que estava muito próxima, com o copo de leite e a merenda. Não me lembro de ter entrado verdadeiramente na casa de um dos meus camaradas de classe brancos – numa casa desafogada. Lembro-me de ter amigos brancos de quem frequentava a casa, mas eram brancos muito pobres. Lembro-me mesmo, na casa de um branco muito pobre de ter pedido simplesmente um copo de água e do criado negro me ter dado uma caneca, naturalmente não lhe passava pela cabeça que um negro pudesse beber por outra coisa se não por uma caneca”.
Fala de gente mais velha, dos jogos, da madrasta. Finda a escola primária, pediu ao pai para entrar no seminário. Não esqueceu a educação que aqui recebeu e a formação que se oferecia e testemunha:
“O latim era a nossa religião, mas as outras matérias não, sobretudo as matérias ditas profanas – matemática, física, etc. Sabia-se muito bem que os estudantes do seminário eram muito bons alunos quando se reconvertiam à vida civil. Este ensino era rígido, os métodos pedagógicos eram muito velhos. Os prefeitos eram padres que nos seguiam nos dormitórios, tinham a cargo a disciplina, manejavam chicote, alguns batiam-nos, outros punham-nos de joelhos. Vivíamos uma época bastante difícil, era a guerra. Não havia racionamento, mas o seminário vivia de doações: comíamos quase todos os dias o mesmo prato que nós chamávamos a bolota, feijão e arroz”.
E deixa um desabafo:
“O quadro da minha rebelião contra a autoridade foi-me dado no seminário, não tanto em casa do meu pai. Não me revoltei contra o meu pai, era a autoridade paternal, era difícil, nunca fugi da casa dele, como as outras crianças fizeram”.
Fala da influência dos mais velhos, influência marcante no continente africano, fala dos filmes que viu, das leituras de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Fala dos assimilados, da realeza de Cabinda, do ritual quotidiano do pai, da Liga Nacional Africana, do indigenato, de um prestigiado médico negro, o Dr. Aires de Menezes, do advogado Tomé Agostinho das Neves, também ligado à Liga Nacional Africana. Concluído o liceu, instalou-se como professor no Colégio Portugal e dava lições particulares. Aí por 47, 48, tem contactos literários com alguns amigos, como Viriato da Cruz e Higino Aires:
“Os dois vinham ver-me muitas vezes à casa que eu habitava no musseque, no quilómetro 5. Comecei a estabelecer relações culturais e literárias com estes dois compatriotas. Higino Aires escrevia. Não deixou uma obra muito importante, conhecem-se poucas coisas, a menos que haja manuscritos inéditos. Viriato da Cruz acabava os seus estudos secundários”.
Mário Pinto de Andrade em Paris
Deixa Luanda em Outubro de 48, veio um pouco à aventura para Portugal, decidiu-se pela Filologia Clássica. O pai contestou a partida para Portugal imediatamente após o fim do secundário, queria que ele fosse funcionário durante um ano, para juntar um pouco de dinheiro, o pai queria que ele passasse num concurso de ingresso nas Finanças. Veio para Lisboa no navio Pátria, com o futuro primeiro cardeal e com o irmão, Joaquim Pinto de Andrade. Antes de partir para Lisboa, vai visitar Viriato da Cruz, estava no Hospital Maria Pia, sofria dos pulmões. “Selámos um pacto de amizade, que devia traduzir-se numa correspondência contínua”.
Em Lisboa vai viver numa pensão.
“Havia duas formas de mentalidade africana que nos acompanhavam em Lisboa: a segurança orgânica e o instinto gregário. Na altura não havia cidade universitária em Lisboa e só as raparigas que eram católicas podiam ficar alojadas nos conventos ou escolas religiosas”.
Constituiu-se o seu primeiro grupo de Lisboa, Amílcar Cabral entra na sua vida.
“Foi na rua Luís de Camões, em Santo Amaro, que ia para a Tapada da Ajuda, que conheci Amílcar Cabral. Recordo-me da nossa primeira troca de palavras: era a expressão de um contentamento – uma alegria verdadeira. Para já, Amílcar Cabral era um homem de uma grande humanidade e de uma alegria muito sincera no contacto que estabelecia com outros africanos. Habituei-me a encontrar Amílcar Cabral na Tapada da Ajuda, a conversar com ele”.
O anticolonialismo começa a emergir:
“Este ano de 48, princípio de 49, não foi muito importante é em meados de 49 que as coisas começam a tomar uma outra dimensão com o alargamento do nosso grupo e das nossas preocupações (…). É nesse momento que conheço Agostinho Neto. Agostinho Neto era estudante em Coimbra em 47, depois veio para Lisboa. Foi justamente naquela pensão que eu o conheci. Depois foi viver para o Bairro da Graça. Era um homem que parecia tímido, reservado e começava já a escrever. Posso dizer-lhe vi os primeiros poemas de Agostinho Neto”.
Descobriram um centro de reunião, na rua Ator Vale, era a casa de uma família de S. Tomé, a família Espírito Santo. Esta família foi o ponto de convergência do grupo.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17959: Bibliografia (40): "Um Legado de Espiões", por John le Carré, Publicações Dom Quixote, 2017 (Mário Beja Santos)
4 comentários:
Estes antigos "estudantes do império" africanos quando se autobiografam ou se auto-retratam para a posteridade, fazem-no de uma maneira que o que fica é a ideia que eram todos uns Gandis, Mandelas, ou uns Afonso Henriques a quem apareceu Cristo, em que o contava era uma ideologia apenas e só anti-colonialista e jamais se misturavam ambições pessoais, vaidades e ódios...sendo que muitos o sonho nem passava de uns pontapés na bola, como quem conheceu, sabe que foram a maioria que ficaram pela "bola" ou em "aguas de bacalhau".
Pois bem, posto isto, quero dizer que nenhum dirigente africano se imaginou vir a ser um dia um qualquer ditador com contas na Europa, América, passear-se por moradias familiares de luxo nas grandes capitais do mundo e os povos que se "virassem".
Mas por outro lado, como soube quem eram algumas da famílias dos "estudantes do império" angolanos, também sabemos que era gente bem formada e não mereciam imensas dessas famílias virem a ser desterradas como retornadas para a(s) metrópole(s), como aconteceu na realidade.
Nada a fazer com estes comentários do Mário Beja Santos. Sempre eles, os revolucionários anti-colonialistas ,os bons, e nós, os execrandos colonialistas, os maus, vivendo um longo filme de horrores, já com quinhentos anos, a nossa de História comum. Apetece fugir, face a tanta sapiência bem informada, face a tanto enxovalho, do Mário Beja Santos.
Não concordo com a "discordância" de Antonio Graça de Abreu, em relação a Mário Beja Santos.
Sem Mário Beja Santos limitavamo-nos aqui a dar uns tiros de G3 e levar outros tantos tiros de Kalashes, e a verdadeira Guerra do Ultramar ficava reduzida ao mínimo.
Nem sabíamos quem foram estes heróis das guerras das independências e da descolonização, os vencedores gerais, mesmo sem pegarem em armas.
Mas que mesmo sem armas na mão, heróis como este angolano que foi herói pelo MPLA e simultaneamente pelo PAIGC, foram na realidade os organizadores dos movimentos vencedores finais, arrumando com a colonização lusa, e com todos os concorrentes.
E que pelo MPLA é perseguido em Angola, de onde dá o fora onde nunca mais pôs os pés, e pelo PAIGC, em Bissau, onde se refugiou como ministro da Cultura de Luís Cabral, de onde dá o fora em 1980, para não ser engaiolado, onde também nunca mais pôs os pés.
Estes heróis africanos, tal como Mário Pinto de Andrade, portugueses de 500 anos, têm que ser bem descodificados, para um dia sabermos o que foi Portugal durante 500 anos dos seus 900.
AGA, sem BS a vida não era a mesma coisa.
Olá Camaradas
Por mim creio que a CEI é uma invenção do Salazar para provar que os pretos afinal tinham oportunidades para se valorizar. Claro que o feitiço virou-se contra o feiticeiro.
Quem lhes deu as razões para se sublevar também sabemos.
No final da aventura tinham que dar uma de bonzinhos e humanistas, como se fosse possível dirigir um movimento subversivo sem ser "à bruta".
Acredito na fase inicial da vida do personagem até à vinda para Lisboa. Era assim e não tenho dúvidas.
Depois também sabemos como foi.
Mas, como já disse isto não são contas do meu rosário.
Como se recordam os "sóvias do Bregenieve" e os "chinocas do 9-7-1" eram grandes apoiantes deles.
Mas, coitados não tinham outros...
Ide dormir!
Um Ab.
António J. P. Costa
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