(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;
(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no
Barracão da Cultura;
(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);
(iv) tem
página no Facebook; é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.
2. Sinopse dos postes anteriores:
(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;
(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);
(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;
(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;
(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;
(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;
(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";
(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";
(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...
(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerograma as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.
(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;
(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.
(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);
(xv) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;
(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;
(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;
(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.
(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;
(xxvi) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical
Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné.
3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 63 e 64
[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]
63º Capítulo > Natal e Passagem de Ano 1973
Adoeci e fui evacuado para o hospital, em Bissau. Não havia camas vagas na enfermaria e fui parar ao quartel dos Adidos, medicado com meia dúzia de comprimidos e um xarope. Não informei nenhum familiar, nem escrevi a ninguém sobre o meu estado de saúde. O meu mapa ficou em branco durante três semanas.
Apenas tenho comigo uma foto da noite de Natal de 1973 para provar que a passei nesse local. Embora não goste, vou contar de memória, e muito resumidamente, o que se passou na noite de Natal.
Os únicos soldados estranhos à unidade que estavam nos Adidos eram eu e mais cinco colegas. Falhara o nosso regresso a Fulacunda que devia acontecer antes do Natal, por falta de transporte. Não sabendo que não iríamos regressar ao quartel, eu e os meus colegas gastámos o dinheiro quase todo na boémia, em Bissau.
Orgulho-me do que fiz nessa época, juntamente com um sargento que nunca conhecera antes. Alugámos um táxi e fomos ao quartel-general, onde o cabo cozinheiro que ficou a substituir o meu amigo Castro nos arranjou batatas, bacalhau, grão-de-bico, ovos e me emprestou mil escudos.
Dividindo os gastos com o senhor sargento, comprámos bebidas e vários produtos ligados ao Natal, que conseguimos encontrar nas lojas de Bissau. Com autorização do oficial de dia nos Adidos, pudemos usar a cozinha e recordo que cozinhámos em terrinas e não em panelas. O certo foi que mais uma vez festejei a ceia de Natal em franco convívio e, podem acreditar, também nessa noite as bebidas chegaram para mais de cem soldados dessa unidade que eu e o sargento andámos a distribuir por quem estava de serviço.
Acordei de manhã na cama do sr. oficial de dia com uma garrafa de whisky ao lado. Foi ele que mandou o ordenança deitar-me completamente embriagado.
Obrigado, sargento.
Na noite de passagem de ano de 1973 para 74, ainda pior estávamos. Tinham-nos dito que regressaríamos antes do fim do ano sem falta e isso não aconteceu. O dinheiro que ainda restava do empréstimo teve de chegar para todos. Comemos o rancho do quartel.
No dia 3 de Janeiro de 74 já estava em Fulacunda e no dia seguinte voltava ao normal. Se é que conto a seguir pode entrar nos padrões da normalidade!
64º Capítulo > A boite Shá Tuá [Chez Toi]
“Deves estranhar só teres recebido dois aerogramas meus neste tempo todo e um apenas dizendo que ia para Bissau e outro com desenhos alusivos à quadra natalícia”.
A realidade é esta: durante um tempo achei que não me safava e decidi cortar com tudo.
- Penso que não devo andar a ficar muito bom da tola -disse eu ao 1º sargento Santos.
“Estive doente e devo voltar para o hospital outra vez em breve parece que será logo no inicio de Fevereiro. Ninguém me diz o que tenho, ou não sabem, ou não querem dizer. Sei que estou a ficar outra vez com pouco peso, se morrer que se foda estou farto disto.
Agora temos de viajar de barco porque derrubam os aviões. Disseram-me que os “turras” tem uma arma nova que se chama RPG 7, decerto é com essa arma que derrubam os nossos aviões. Ou decerto até tem mísseis. Até o Zé Leal que foi passar uns dias a Bissau em gozo de férias, foi no barco que eu vim. Tive pena dele não ir quando eu estava lá.
Ao menos tenho aqui aquele chato do Zé Alves e os outros amigos do costume, mais o tal que conheceu a namorada por carta que também tem nome. É outro Silva.
Durante os dias que estive em Bissau fui a um local frequentado pelas chamadas mulheres da vida fácil é uma boite (diz-se buáte) que se chama Shá Tuá mas fui lá só para ouvir música. Está lá um conjunto formidável cujo baterista é um rapaz chamado Álvaro Azevedo que ainda é primo dos meus familiares de Amarante e que era o baterista dos Pop Five Music Incorporated. Só estive lá mais ou menos duas horas mas nem dancei contentei-me apenas em ouvir musica e em tomar umas bebidas.
Não posso de maneira alguma dizer que naquele ambiente não senti desejo de ter relações sexuais, senti sim até porque as boites existem mesmo para isso, simplesmente sempre que se trate de mulheres que não sejas tu eu não levo ao fim os meus desejos, contigo custa-me resistir mas se não estás a meu lado está a tua imagem e pelo muito que te amo não posso de maneira alguma trair-te. Confesso que nunca fui assim e até era bastante mais volúvel, mas agora sou teu e apenas vivo para ti, portanto podes ter confiança em mim, eu amo-te e apenas os teus braços é que me abrigam pois só envolto neles tenho a certeza dum amor cheio de pureza”.
Que grande burro! Aposto que nenhuma mulher acreditava nesta treta. Então a Amélia é que nem pensar!
Estou ansioso por saber o que ela me respondeu, até vou andar mais rapidamente na leitura.
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Nota do editor: