1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2019:
Queridos amigos,
Despedimo-nos por ora do Cónego Marcelino Marques de Barros a quem a cultura luso-guineense tanto deve, praticando a tremenda injustiça de o deixar no olvido, como ele não tivesse sido o pioneiro na pesquisa da etnolinguística guineense, um laborioso ajuntador de termos crioulos, tendo mesmo organizado um dicionário e em artigos como este denota uma observação e um estudo pautados pelo possível rigor científico de quem se queixa, como ele faz quando se dirige ao Governador Pedro Inácio de Gouveia,
"vejo bem que me devem ter escapado muitos desalinhos e incorrecções de frase, e mesmo erros na exposição dos factos, como é de esperar que aconteça sempre a todas as obras desta natureza feitas à pressa, na Guiné, sem livros, sem bibliotecas públicas, em quem se vê forçado a recorrer quase exclusivamente à memória dos seus esclarecidos amigos, à sua e aos seus apontamentos, e nada mais".
Um abraço do
Mário
Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes… (3)
Beja Santos
O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 3.ª Série – Nº 12, 1882, publicou um artigo do Vigário-Geral da Guiné, Marcelino Marques de Barros, porventura o primeiro grande intelectual guineense, com o título
“Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens dos seus povos”. Marcelino Marques de Barros tem sido alvo de alguns ensaios, deplora-se que o conjunto da sua obra não tenha tido a republicação que se justifica, ele foi etnolinguístico e explorou, com os seus conhecimentos, a dimensão antropológica, como um verdadeiro pioneiro.
A espiritualidade é tema que o fascina, compreende-se, é vigário, é missionário, debruça-se sobre os outros credos, as outras práticas, teístas ou animistas, interroga-se, como vai escrever neste documento que comprova os seus dotes de investigador. Falando de Deus, diz que não é um negócio fácil ouvir um gentio (a não ser os mouros) pronunciar um nome qualquer que desperte a verdadeira ideia de falarmos de Deus:
“Vulgarmente dizem como os Felupes que Deus é o firmamento azul, a chuva e as borrascas; que a sua voz e as suas armas são os raios e trovões, o que tudo nos leva a recordar até a poesia de Lucrécio. Os nossos pagãos consideram a Terra como a última morada das almas, e os Felupes e Bijagós acreditam na sua transmigração e todos prestam culto aos seus tótemes. A morte para um Bijagó não é mais do que um sono breve, pela certeza que têm de ser instantaneamente concebido no seu país; o Bijagó põe uma corda ao pescoço e aperta-a com a mesma facilidade com que pomos uma gravata”. Falando dos espíritos ou génios, diz que há os bons e maus, o irã, é espírito bom, os génios maus são diabos armados. Quanto a totemismo, fetichismo e idolatria refere que prestam culto a quadrupedes, répteis e aves. Observa que os mouros constroem templos para adorar Alá, os fetichistas têm aras e nas ruas, nas casas, nas florestas e à beira dos rios e dos lagos têm mesmo monumentos megalíticos e até recetáculo do sangue das vítimas.
Da religiosidade remete as suas observações para a habitação, géneros de vida e organização política. Quanto à habitação:
“Os Felupes fabricam muitas casas de taipa, altas, espaçosas, ventiladas e muito limpas, os mais gentios fazem choças e cabanas de barro, de cana ou de mangue. Em toda a parte encontram-se habitações distintas e coletivas”. E quanto ao género de vida:
“Cada raça segue um género de vida que lhe é peculiar. São sedentários os Cassangas, Felupes e Nalus; nómadas certas categorias de Fulas, seminómadas os Balantas e emigrantes os Manjacos da Costa de Baixo”. O seu apontamento sobre a vida doméstica é muito interessante:
“As raças activas, tais como Felupes, Fulas e Balantas, quando não se acham empenhadas em guerras sanguinolentas andam à caça, à pesca, na roça dos matos, na lavra dos campos; outros, como os Cassangas, Papéis e Beafadas, quando não aparecem às portas das tabernas, aparecem empoleirados nas palmeiras de que extraem o vinho chamado de palma, ou então deitados indolentemente, dormem à sombra das árvores. As crianças quase todas andam nos campos a pastorear rebanhos”. A sua atenção vira-se para a vida social, política, intelectual e assim chegamos à família:
“Por não haver entre esta gente o menor vislumbre daquele prestígio moral ou religioso que tornam a união conjugal indissolúvel, o marido é sempre senhor ou amante da sua mulher, que pode banir de sua casa sem prévia sentença de juiz, excepto entre os mouros, que possuem códigos de todos os processos civis e crimes. Os Mandingas herdam as concubinas de seus irmãos. O Nalu espanca o seu pai e herda as suas concubinas. O Felupe despreza e espanca a mãe. O Mandinga é extremoso pelos seus sobrinhos, e o Papel é doido por seus filhos, e todos consideram acto de barbaridade bater numa criança: pode impunemente lançar fogo a um arrozal, envenenar um rebanho inteiro e apedrejar a avó porque não haverá quem lhe arranque uma orelha”.
Faz os seus comentários ao direito de propriedade, às formas de alimentação e ao vestuário e expende considerações alargadas sobre a etnogenia (estudo da origem dos povos). Alude aos antigos impérios, às tribos sudanesas, aos reis Mandingas, parece cheio de boa vontade nesta pesquisa dos tempos ancestrais, pois sabe-se que não foi exatamente assim que as coisas se passaram, socorreu-se de narrativas orais, fantasiou acerca da escravatura dos Bijagós, vê-se que é uma etnia que lhe ocupa muita atenção.
E não deixa de ser curioso o que vai dizer sobre os Fulas, a sua vivência:
“Os Futa-Fulas, que escrevem em árabe toda a sua história, contam que, no tempo em que a religião do Profeta se estendia como um turbilhão aos quatro ventos veio levantar no interior do Sudão as suas tendas um chefe que além de uma numerosa colegiada que o acompanhava trouxe um filho havido com a sua mulher Cumba. Morreu o chefe e na menor idade do seu filho foi o aluno mais instruído que tomou o encargo de governar a família. Quando o filho chegou à maioridade, o regente recusou dar-lhe as rédeas do Governo, até que por decisão dos velhos chegou-se à conveniência que se revezassem no Governo do novo Estado que depois de 600 anos constitui hoje uma potência, a mais civilizada de quantas há entre o Senegal e o Gâmbia, e entre o Deserto do Sara e as praias do mar oceânico. Quanto aos Fulas, consta com menos visos de certeza, que os rebanhos de Maomé, o Profeta, estavam entregues ao cuidado de um árabe que era casado com Sirá. Esta pequena família, ou os seus descendentes, acompanharam as caravanas que atravessaram o deserto até às terras dos Futa-Fulas aonde continuaram a vida nómada, essencialmente pastoril e agrícola; e com o seu algodão, leite e manteiga dos seus numerosos rebanhos compraram escravos que se multiplicaram entre si e que se chamaram depois Fulas-Djalons. A escravatura povoou as nossas praças e presídios de uma mistura híbrida de raças de todas as proveniências cujos filhos, depois de libertos e baptizados, tiveram nome de Grumetes, por se entregarem quase exclusivamente às lides de cabotagem comercial. Com o andar dos tempos, os oriundos do arquipélago de Cabo Verde, especialmente os soldados, tiveram filhos nas suas relações com as filhas dos Grumetes; as filhas dos Papéis, Beafadas, Mandingas e Fulas, algum tanto domesticados pelo comércio e pela religião cristã abandonaram os seus pais e o seu país para depois de baptizadas se casarem com os oriundos do referido arquipélago ou com os filhos dos libertos. Os europeus e os seus descendentes, multiplicando-se nas suas relações com as filhas do país, elevaram e aperfeiçoaram a raça dos aborígenes, oferecendo ao mesmo tempo um não pequeno contingente à estatística da população. É deste modo que o povo português indígena aumenta progressivamente como um fluxo indefinido do mar”.
Há para aqui muito consta e disse, a investigação histórica posterior encarregou-se de pôr alguma ordem em tanta consideração fantasista do amável Cónego Marcelino.
Estamos a chegar ao fim, não porque o trabalho do Cónego Marcelino esteja nas derradeiras linhas, é que ele vai entrar em considerações linguísticas, tema que merece ser versado em apartado especial, a sua escrita é empolgante, um só parágrafo, em jeito de despedida:
“A língua mandinga, pela sua incomparável harmonia, elegância e facilidade de pronunciação, é a mais falada em toda a Senegâmbia; e por ser muito cultivada pelos mouros letrados, está elevada a um alto grau de perfeição”.
Assim nos despedimos até à próxima deste louvável pioneiro das ciências sociais e humanas da Guiné.
Nota: Recomenda-se vivamente a consulta dos seus elementos biográficos no site
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4878/1/LS_S2_04_JoaoDVicente.pdf
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Nota do editor
Vd. postes de:
11 de março de 2020 >
Guiné
61/74 - P20723: Antropologia (37): Guiné Portuguesa, breve notícia
sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de
Barros (1) (Mário Beja Santos)
e
18 de março de 2020 >
Guiné 61/74 - P20746: Antropologia (38): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (2) (Mário Beja Santos)