1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Abril de 2021:
Queridos amigos,
Annette leva muito a peito a organização da comissão de Paulo Guilherme, mais, tem feito leituras sobre a história da Guiné-Bissau, aqui há uns tempos veio a Bruxelas uma comissão de guineenses para uma reunião de doadores, os senhores ficaram assarapantados quando uma intérprete deles se aproximou pedindo-lhes se era possível almoçarem juntos para eles a ajudarem a compreender certos aspetos da Geografia, da Etnologia, da tal guerra de libertação, que não se preocupassem com o rigor da exposição, ela estava a trabalhar para um romance e gostava muito de depoimentos de terceiros, pois quem estava a escrever o romance vivia com intensa paixão, a ela parecia-lhe demasiado, aquela paisagem era assim tão luxuriante, aquele verde tão denso, aquele território tão sulcado de água, a fauna e a flora tão espetaculares? E Annette depois contou esta conversa para Lisboa, os cinquentões estão mesmo em adoração, o romance enquanto ficção continua e dá força a este inesperado romance de amor em que se marcam os dias do calendário à espera de partir para Bruxelas, como se o repouso do guerreiro estivesse na incontornável Rua do Eclipse.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (49): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Annette, très adorée, depois de te ter escrito ontem fiquei a ruminar num conjunto de dados a que tu pedes clarificação, curiosa como és, não posso adiar as informações de que disponho, como cronista queres dispor de todos os elementos para respeitar a cronologia, eu já estou em Bambadinca, há que deixar solucionados os assuntos pendentes do Cuor. Fazes mais perguntas sobre Infali Soncó e Sambel Nhantá. Durante anos foi assunto que não me interessou. Até que regressei em 1990 à Guiné, descobri que o filho mais novo do régulo Malã, que era uma criancinha dos meus tempos de alferes de Missirá, era agora professor e mostrou interesse em conversar comigo. No ano seguinte, como já te disse, voltei uns bons meses com o estatuto de cooperante e então conversei muito com Abdurramane Serifo Soncó, hoje o meu querido irmão Abudu. Era então vivo o último filho sobrevivente de Infali, Alage Soaré Soncó que lhe contou a história do seu pai, aqui vai um resumo do apontamento que ele me entregou em janeiro de 1992. Infali era natural de Berrecolom (que significa Fonte de Pedra) da região do Gabú. À frente dos seus homens conquistou a região de Cumpone, em Boké, hoje na Guiné Conacri, aqui foi feito régulo. Viu-se permanentemente ameaçado pelos Fulas, era seu inimigo Alfa Iaia, de Conacri. Passados uns anos de ser régulo o seu tio Calonandim Mané, régulo do Cossé, região de Bafatá, que mantinha um pacto cordial com os portugueses, pediu-lhe apoio para conquistar o regulado do Cuor (nessa altura escrevia-se Kuôr), o régulo chamava-se Sabel Nhantá que vivia em Sansão. Infali e o seu tio cercaram a tabanca do régulo Sambel e ele fugiu. Os anciãos do local elegeram-no régulo e veio de Bolama o governador Lito Magalhães que o consagrou como régulo. Infali, depois do seu tio Calonandim ter sido morto no Enxalé por Balantas, foi vingar a sua morte, e impôs-se desde Enxalé até Porto Gole.
O régulo Infali envolveu-se numa grave questiúncula com um alferes português, chegou a estar transferido para a região de Fulacunda, voltou e revoltou-se contra os portugueses com o apoio de régulos da vizinhança do Cuor. Está aí a origem das campanhas de 1907-1908 para o derrubar, ele pretendia mais uma vez impedir a navegabilidade do Geba, seria um golpe muito duro nessa via comercial que se estendia até Geba, Fá e Ganjarra, últimos locais da presença portuguesa no interior da Guiné da época. Infali é afastado, substituído por Abdul Indjai, um colaborador muito estreito do capitão Teixeira Pinto, este também se mostrou desrespeitador da soberania portuguesa, foi afastado dos regulados do Oio e do Cuor e Infali perdoado.
Annette, eu lia livros que falavam de Sambel Nhantá, via mapas onde se falava de Sambel Nhantá e ninguém sabia dizer-me onde era esta povoação. Estava ainda no Cuor e um dia perguntei ao régulo Malam onde estavam sepultados os seus ancestrais e ele disse-me prontamente que estavam sepultados em Sansão, era esta a tabanca de Infali e do pai de Malam, Bacari. Fomos até lá, de facto havia umas estacas de pé, propus ao régulo que se pusesse tudo em ordem e deixámos cimentados os locais. Minha adorada Annette, creio que era esta a informação que tu me pedias sobre os Soncó. Enviei-te pelo correio o caderninho de apontamentos das minhas conversas com o irmão do régulo, o padre Lânsana, foi ele que me ensinou o nome das diferentes árvores, as caraterísticas das trovoadas e dos tornados, o nome correto dos legumes que são cultivados nas hortas dentro e fora das aldeias. Nesse caderninho também poderás verificar o tipo de compras que fazíamos nas despensas de Bambadinca, não havia legumes frescos, era tudo enlatados, verificarás que comprávamos esparguete e outras massas, salsichas e chouriço (era impraticável comprar fiambre, deteriorava-se rapidamente com aquele clima), arroz, um pouco de feijão e grão, conseguíamos com certa regularidade comprar batata e cebola e tinha muito bom bacalhau, barricas com pé de porco, latas de dobrada – no fundamental era isto. Não se podia beber água da fonte, bebíamos todos água engarrafada, recordo-me que era água Perrier e Evian. Daí a certa monotonia alimentar.
Estranhaste uma história que escrevi à minha irmã sobre um acidente bizarro que se passou na primeira emboscada noturna que fizemos em novembro, bem perto do aquartelamento de Bambadinca. Recordarás que Bambadinca foi flagelada em maio desse ano e que se criou um sistema defensivo que passava por montar emboscadas nos principais pontos de acesso, uns vindos da região de Mansambo, outros da região do Xime. Tu perguntas-me quem era este Arnaldo Lima, eu nunca te tinha falado neste furriel. É verdade que nunca o mencionei, era um homem sem escrúpulos, sempre a inventar dores de cabeça ou a pretextar problemas de ouvidos e dentes, para fazer estadias em Bissau. Era mais ausente do que presente, adoecia na véspera das operações, não gostava da contabilidade, alegava nada saber sobre construção ou reparação nos quartéis, chegava ao cúmulo de quando ia fazer patrulhamentos em Finete se ausentar para Bambadinca (ali era mais seguro…). O Lima era para todos nós um fardo, um amoral. Depois naquela noite fui com ele e vinte homens e passei algumas das horas mais insólitas da minha vida. Selecionámos uma força de sensivelmente 20 homens, marcámos a hora de saída do quartel, e começámos a caminhar em direção de Undunduma, era aí que se ia montar a emboscada. Ter-se-ia progredido um quilómetro em que só se ouviam as nossas passadas a esmagar o saibro e subitamente ouviu-se um urro medonho a atravessar a noite, deu prontamente para perceber que não estávamos a ser emboscados nem houvera mina. Fui logo para o local da gritaria e ali estava o Lima estatelado no chão a gemer, não consegui perceber logo o que se tinha passado até que Ussumane Baldé me chamou a atenção para o braço direito do Lima, fui ver e ele tinha o dedo mindinho dentro do tapa-chamas da G3. Não levávamos maqueiro, procurou-se remover o dedo, a gritaria não parava. O que acontecera fora simplesmente que ele escorregara e o mais improvável dos acidentes acontecera, ao cair meteu o dedo mindinho e da arma não saía. Para pôr termo àquela bulha, com toda a gente a dar palpites, regressámos prontamente ao quartel, por prudência retirei-lhe o carregador da arma, o grupo avançou para a enfermaria, o Lima sentado, o rosto desfigurado, o braço direito todo esticado com a arma em cima da marquesa, fui a correr chamar o médico, o meu querido amigo David Payne, de quem já te falei. O David entrou na enfermaria, olhou para o insólito da situação, o facto é que o dedo ia inchando e todas as tentativas para pôr o dedo cá fora falhavam. O David tudo tentava, o rosto inundado de suor, até pôs a hipótese de lhe cortar o dedo, o Lima aí levantou-se aos berros, que não, que estava pronto a aceitar todas as dores até se encontrar uma solução para manter o dedo inteiro. Entrou o alferes sapador, o Mena Reis olhou, saiu e voltou com umas varetas e começou a esgravatar à volta do tapa-chamas, o Lima insultou-o, o Mena Reis enfiou-lhe um estalo, vi jeitos do Lima afocinhar no chão com a G3, lá o endireitámos e pusemos braço e G3 na marquesa. Alguém mais inspirado lembrou-se do primeiro-cabo desempanador Alexandre, talvez ele tivesse uma boa resposta para este imbróglio. Estou a vê-lo entrar na enfermaria, alto e magricela, com um ar esgrouviado, avançou de olhos bem abertos para o Lima e para o seu braço e para a G3 e foi lesto a responder que a primeira coisa a fazer era desatarraxar o tapa-chamas, o Lima ainda ensaiou um impropério, o Alexandre não teve para os ajustes, segurou-lhe bem o braço, trazia com ele um outro ajudante que foi removendo lentamente a G3, operação morosa mas bem sucedida, o dedo tinha a falangeta quebrada, com fratura exposta, o David Payne deu-lhe um calmante, o Lima voltou a Bissau, era o local que ele mais apreciava para passar a sua comissão e nós voltámos para a emboscada na região de Undunduma. Annette, acredites ou não, um dedo mindinho pode enterrar-se dentro de uma espingarda, e é o cabo dos trabalhos salvar um dedo.
Trago-te agora talvez uma boa-nova. Recebi três convocatórias e duas delas têm a ver com reuniões em Bruxelas, melhor, há um seminário em Gand, um dia inteiro para falar dos novos desafios da automedicação, isto em representação da Confederação Europeia dos Sindicatos, dois dias em Bruxelas para a assembleia-geral da Associação Europeia dos Consumidores, precedida na véspera de uma audição promovida pelo Parlamento Europeu com o Comité dos Consumidores sobre matérias inerentes à regulamentação do rótulo ecológico e as alterações na legislação das viagens organizadas. Tudo isto vai acontecer na última semana de abril. Não podes imaginar a felicidade que sinto em voltar para ti. Até lá, tenho que trabalhar quase a dobrar, dar aulas suplementares, produzir papéis, o Gilles Jacquemain manda-me diariamente novos elementos para o nosso relatório. E estamos num período de trabalho aqui no Instituto do Consumidor, eu coordeno o Concurso Europeu do Jovem Consumidor, são muitos os contatos com as escolas, há muitos textos a traduzir e a enviar para estes estabelecimentos de ensino. Infelizmente são escassas as dezenas de inscrições, mas isto também vai significar deslocações para falar com os professores e com os alunos que estão envolvidos no concurso.
Os meus filhos andam bem, são estes novos tempos da precarização, é um mundo que nada tem a ver com aquele em que nós, então jovens adultos, nos lançávamos no trabalho, havia outras regras, outras seguranças, agora é tudo sorrisos numa cortesia abstrata, desalmada.
Telefono esta noite, e amanhã, e depois. A almoçar ou a jantar, sinto que às vezes era bom que tu ali estivesses para partilharmos a conversa com os outros convivas. Não descuro o que me propuseste de nos reformarmos mais cedo, por ora só vejo obstáculos, mas são tantos e tais os lenitivos de poder estar na tua companhia todos os dias, basta este pretexto das coisas da Guiné, basta esta atividade que desenvolvo com os meus colegas europeus e na minha participação associativa, e até mesmo como funcionário público, que me permite andar sempre em ânsias para viajar até Bruxelas e entregar-me a ti de alma e coração. Bisous, multiplicados por mil, minha inesquecível companheira e adorada mulherzinha, bien à toi, Paulo
Infali Soncó, régulo do Cuor, sentado no centro, durante conversações com tropas portuguesas
É um livro admirável, relata ao pormenor a campanha no Cuor para submeter Infali Soncó, em 1908
Bambadinca, ponte do rio Udunduma, fotografia do blogue
Uma imagem que não carece de comentários
Guiné Portuguesa, Bilhete postal, Pescadora (Papel). Edição: Agência-Geral do Ultramar.
Guiné Portuguesa, Postal Ilustrado, Rapaz Balanta (Bissau). Ed. Foto SERRA, Bissau
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Nota do editor
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