Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2021
Guiné 61/74 - P22839: O meu sapatinho de Natal (19): Em 1971 o MNF (Movimento Nacional Feminino) visitou algumas unidades no Ultramar e ofertou discos musicais pelas tropas (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)
Mano Carlos, amigos e companheiros,
A nossa história, enquanto combatentes da Guerra do Ultramar, está recheada de peripécias e acontecimentos, um autêntico livro de memórias e recordações, que a neblina da memória não consegue apagar.
Em 1971 o MNF (Movimento Nacional Feminino) visitou algumas unidades no Ultramar e ofertou discos musicais pelas tropas. A minha companhia, na altura em Bissássema, foi uma delas. Porque eu já tinha rumado às tropas africanas não tenho essa relíquia como recordação.
Porque neste mundo há sempre alguém que guarda, após o meu pedido, vários elementos da CCaç 3327 e outros responderam à minha solicitação, fotos das ofertas recebidas. O Furriel Miliciano Enfermeiro da CCaç 3327, o Rui Esteves, foi muito mais longe do que eu esperava e presenteou-me com um bocadinho da história que ficou daquele Natal de 1971.
Que o vosso sapatinho familiar de Natal seja recheado com muita saúde. Haja Festas Felizes e Bons Anos.
Um abraço transatlântico do
José Câmara
Convosco o MNF e o Natal de 1971 (Clicar na hiperligação e levar o cursor para o princípio):
https://www.youtube.com/watch?v=QOp5IgM5r5M&t=1345s
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de Dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22837: O meu sapatinho de Natal (18): Boas festas 2022: Patrício Ribeiro (Grupo de Bijagós com as suas tradições, Bubaque); Hélder Valério de Sousa; Tibério Borges
Guiné 61/74 - P22838: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (84): A funda que arremessa para o fundo da memória (Conclusão)
Queridos amigos,
Foi esta a surpreendente viagem de Paulo, despedida e reconciliação, muita emoção e comoção, como se esperava. Encontrou destruições do conflito político-militar, encontrou muita gente desavinda, visitou os lugares mas sentiu que lhe faltara tempo para cumprir à risca o programa que desenhara. É no regresso que escreve a Annette, em breve partirá para a sua companhia, vivem dez anos de felicidade e parece que chegou o momento de esta cronista pôr termo ao pedido que Paulo lhe fizera de fazer cruzar a ficção com a realidade, romance dentro de romance, ainda não estão bem reformados, dispersam-se por diferentes atividades, a vida corre-lhes de feição, nunca se poderá ponderar a importância que teve na vida deles a Rua do Eclipse e o romance que lhe deve o nome.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (84): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Lisboa, 2 de dezembro de 2010
Ma gentille Pénélope, cheguei ontem ao amanhecer, o avião saiu de Bissalanca perto das três da manhã, vi o despontar do dia muito antes da chegada a Lisboa. Não te escondo que venho profundamente emocionado, fisicamente exausto. Mas rapidamente me restabelecerei, certo e seguro. Quando em março tomei a decisão de me ir despedir das minhas gentes no Cuor, em Bambadinca, e em regulados limítrofes, tu mostraste profunda apreensão, o que vai fazer este homem com 65 anos, põe-se ao caminho sozinho com o exclusivo propósito de uma derradeira visita? Falei-te no meu estado de alma de que sentira que chegara a hora da reconciliação plena, tu conformaste-me neste meu sonho. Tive sérias ajudas, é bem verdade. Um amigo embaixador deu conta da minha viagem ao atual embaixador português, que me recebeu com muita afabilidade e que me mandou pôr em Bambadinca. Um antigo embaixador guineense contactou o irmão em Santa Helena, na margem esquerda do Geba, em frente a extensa bolanha de Finete, para me dar guarida. Fodé Dahaba arranjou um daqueles carros desconjuntados onde cabem todos e mais algum e durante alguns dias foi agradável andar com velhos camaradas naquela carripana ainda útil para lugares acessíveis. Mas eu desejava vivamente ir a pontos remotos, como Madina e Belel, Buruntoni e Ponta do Inglês, ir até ao fundo do Corubal, lá consegui recrutar um jovem motociclista natural da Guiné Conacri que me acompanhou até 28 de novembro, data em que regressei a Bissau, aqui queria encontrar alguns dirigentes do PAIGC para falarmos desinibidamente do passado. Cumpriu-se o programa, despedi-me da Avó Berta na Pensão Central passava da meia-noite de 30 de novembro.
Quando saí daqui de casa na companhia do Abudu, era um carregamento de perto de 40 quilos, houve peripécias no check-in, quando eu parecia resignado aos 24 quilos prescritos, o Abudu fez-me ver que havia muita expetativa na minha viagem, que tivesse coragem e alombasse com o resto do peso até ao interior do avião, como aconteceu, e ainda bem.
Aqui tens imagens estarrecedoras do que foi o conflito político-militar de 1998-1999, aqui estão as marcas da destruição, do Palácio Presidencial, do Centro de Medicina Tropical, do Mercado de Bandim, do Grande Hotel. Visitei os Soncó, a mulher de Abudu e os filhos e Tumblo, o único irmão de Abudu, não sei se te recordas de uma fotografia que lhe tirei em Missirá era ele um miúdo de 10, 11 anos, e muito me impressionava vê-lo na picada, quando íamos em coluna até Bambadinca, com a Mauser a tiracolo.
Matei saudades, percorri o cais do Pidjiquiti, vi muita destruição, desapareceram hotéis e restaurantes, estão agora transformados em escombros, pus-me à porta do antigo Comando da Defesa Marítima, recordei que ali tinha visitado Teixeira da Mota, fui até à Pensão Central, aí houve choraminguice quando me reencontrei com a Avó Berta, ela anda de andarilho, no dia seguinte à minha chegada ali almocei a minha canja de ostra na companhia do embaixador Ricoca Freire. Entreguei as encomendas, depois telefonei-te na agora chamada Praça dos Heróis Nacionais, tinha tomado no Café Império uma bica, que alegria em falar com a minha adorada mulher de Bissau para Bruxelas!
Não te vou contar pormenorizadamente todos os encontros que tive, na maior parte deles chorei desabridamente, deixei muita gente atónita, vi muita pobreza, não ignorava as tremendas condições em que vivem estes antigos camaradas, pediam-me constantemente ajuda, não poucas vezes me fui emocionalmente abaixo, eles então pediam desculpa e logo lhes respondia que era do cansaço, não tinha importância nenhuma, quem pedia desculpa era eu por ofertar insignificâncias. E houve o choque dos mortos ou dos ausentes: Mamadu Silá morrera na semana anterior à minha chegada, Serifo Candé, que eu estimava profundamente, quando lhe disse que o queria ir visitar a Bricama, logo me disseram que não valia a pena, falecera há anos. Jobo Baldé, o nosso padeiro de Missirá, vivia algures na região de Galomaro, não sabia onde, alguém lhe telefonara, não tinha dinheiro para a viagem e tinha vergonha que nosso alfero o visse velho e desdentado.
Inesquecível foi a viagem a Missirá e ao Gambiel, encontrarás uma fotografia com aproveitamento das chapas do meu tempo, usávamos folhas de Flandres, houve sábias reciclagens. Estive com a mãe de Abudu, adornou-se para a fotografia destinada ao filho, de repente apareceu-me Braima Mané, alguém que fora escorraçado pelo irmão que lhe queria ficar com a mulher, ele tinha então um braço tolhido, numa flagelação a Finete um estilhaço de granada de morteiro fendera-lhe os ligamentos. Consegui que fosse visto no Hospital de Bissau, perdera-lhe o rasto, saíra-me da memória de tão penosa situação. Ali em Missirá, avançou para mim e ergueu os braços como se fosse voar, quis surpreender-me com aquele braço ágil que eu conhecera inerte. Sabia perfeitamente que o meu irmão Bacari Soncó tinha falecido anos atrás, fui visitar o seu túmulo, voltei a desabar as emoções, vertiginosamente passaram-me as imagens de conversas, de patrulhamentos, de idas a Mato de Cão, das minhas estadias em Finete em que ele me falava da sua juventude com intensa alegria.
Não te escondo que o programa da minha viagem era excessivamente ambicioso: acabei por não visitar todo o Cuor, a picada entre Canturé a Gã Gémeos ainda estava cheia de água, gostava muito de ter ido a Gã Gémeos, usávamos este local como porto para o Sintex, aqui se deu um acidente que vitimou Cibo Indjai, alguém lhe desfechou um tiro por total imprevidência de uma arma que não estava em segurança, era o nosso exímio caçador e um excelente guia, e fora ele que na Operação Tigre Vadio, no final de março de 1970, levara a corta-mato um contingente de cerca de 300 homens depois da destruição de Belel; vi a correr os Nhabijões, é verdade que visitei o Xitole, o Enxalé, Madina e Belel, obrigatoriamente Mato de Cão, tirei imensas imagens, aqui vão algumas para mostra.
Dói o estado em que vi o país, ter encontrado tanta gente desavinda, enormes potencialidades ao abandono. Tinha partido ciente de ser confrontado com muita dor e muita miséria e muitas perdas. Como compreenderás, meu amor, não regresso confortado a não ser por se ter cumprido esta viagem em que sempre tenho contado contigo como escriba intransigente, rigorosa, exultante. Não ia à procura de alívio, mas testemunhar reconciliação, gravar algum dever de memória que me assiste às gerações futuras.
Há dez anos, Deus permitiu o nosso encontro e a nossa viagem em comum onde tão graciosamente coligiste este cadinho de lembranças de uma guerra que se vai apagando do sentimento geral dos portugueses, o tempo imperial não lhes diz nada e muito menos aquela gente africana que, por diferentes razões, nos acompanhou sacrificando a vida ou o seu futuro, destino trágico tiveram muitos dos meus soldados.
Deus permitiu que na velhice eu tenha voltado àqueles cheiros tropicais, a sentir o deslumbramento dos meandros do Geba ou do denso arvoredo da floresta de galeria, pasmado diante do poilão sagrado, sabendo que na Rua do Eclipse tu organizarás esta minha derradeira memória, chave de um passado digno de ser encarecido. Regresso dentro de dois dias para nossa casa, vou ainda aqui visitar os nossos netos, e estou também ansioso por visitar os nossos que aí vivem, uma doce alegria da nossa velhice, a estampa do nosso amor. Avec une tendresse très spéciale, Paulo.
FIM
A comida era muito boa, a dormida não tanto. Mas não merecia este final de vida, jamais se poderá entender porque se deixa destruir o que podia ser recuperado, vê-se à vista desarmada a qualidade dos materiais
Quantas vezes por aqui passei, por esta entrada para o quartel de Bambadinca, durante o dia era permitida a circulação de civis em direção ao mercado ou ao porto ou em sentido contrário, para o Bambadincazinho
Que dor, metíamos as botas neste enlameado, entrava-se na piroga conduzida por Mufali Iafai, ao fundo havia um estreito caminho que os hábeis condutores contornavam as terríveis ciladas do percurso, não poucas vezes se caía no charco e era um bico de obra pôr o guincho a tirá-lo da água fétida
Não me importarei que seja uma das últimas imagens da minha vida, depois de me despedir dos meus entes queridos, não conheço nada de parecido com este fim do dia em que escurece o coberto vegetal
Cancumba, foi uma das minhas alegrias, era povoação abandonada, quando aqui a visitei dispunha de um belo poço, graças à ajuda de uma ONG italiana, uma natureza cheia de vida onde outrora houve percursos de morte
Quando vejo esta imagem só falta pôr-me em sentido, quantas vezes aqui vim para garantir, com os meus bravos soldados, que este rio pudesse ser navegável, que a pontos ermos chegassem víveres, armamento e tudo o que se carece para fazer a guerra
Chama-se Albino Amadu Baldé, tratava-o por Príncipe Samba, era o comandante efetivo das milícias de Missirá, tive a dita de o fixar nesta pose, é uma figura principesca e nada mais acrescento
É a foz do Corubal ou Cocoli, quando retive a imagem, sabe Deus porquê, só pensei no sofrimento que se viveu nesta região chamada Ponta do Inglês, destacamento de vida inglória, um local bafejado pela grande beleza, fazer como eu fiz o itinerário Xime – Ponta do Inglês com toda esta luminosidade vizinha certificou-me que a Guiné, digam o que disserem, tem alguns dos lugares mais vibrantes do mundo
É a despedida, os amigos do nosso alfero vestiram-se a preceito para o almoço, a guerra acabou, ficou esta cumplicidade, e o Branco de Missirá está-lhes eternamente grato
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Nota do editor
Último poste da série de 17 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22816: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória
Guiné 61/74 - P22837: O meu sapatinho de Natal (18): Boas festas 2022: Patrício Ribeiro (Grupo de Bijagós com as suas tradições, Bubaque); Hélder Valério de Sousa; Tibério Borges; José Barros Rocha
Cartão de boas festas enviado em 23/12/2021, 16:45.
Patrício Ribeiro
Impar Lda, Bissau
Há mais de 30 anos na Guiné-Bissau
impar_bissau@hotmail.com
https://www.imparenergia.com/
Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72:
Meus caros e estimados Amigosbr > Desta vez não vos vou incomodar com as minhas evocações de recordações menos boas.
Escrevo, apenas e só, para formular os desejos de que, na medida do possível, tenham umas "Festas Felizes" e que o Novo Ano, que se avizinha, nos possa trazer a esperança de que se consiga viver estes tempos de vida que nos restam (sim, cada dia que passa estamos mais próximos da "partida") com a alegria dos nossos convívios, pois através deles revivemos e vivemos os tempos de juventude e que ajudaram a cimentar as nossas amizades.
Como uma "família", que também somos, temos os nossos períodos de harmonia, as nossas zangas, tal como nas famílias de sangue, mas temos o dever de valorizar o que é bom e ultrapassar o que pode ser incómodo, sempre, mas sempre, no respeito pelas opiniões e pontos de vista "dos outros".
Assim nos saibamos comportar.
Boas Festas
Abraços
Hélder Sousa
Mensagem deixada no Formulário de Contacto do Blogger pelo nosso camarada Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72:
A toda a equipa deste Blogue, votos de Boas Festas de Feliz Natal e para que o ano que se aproxima venha com muita saúde.
Um abraço para todos
Cumprimentos,
Tibério Borges
Mensagem deixada no Formulário de Contacto do Blogger pelo nosso camarada José Barros Rocha, ex-Alf Mil da CART 2410 - Os Dráculas, Guileje e Gadamael, 1968/70:
Aos Caríssimos Editores do Blogue (Luís Graça, Carlos Vinhal, Magalhães Ribeiro e Jorge Araújo), bem como a todos os Membros da Tabanca GRANDE:
Votos de um Feliz Natal - com muita saúde ! - e que o próximo ano nos permita o Reencontro.
A todos um grande Abraço de camaradagem e Amizade!
Cumprimentos,
José Rocha
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Nota do editor
Último poste da série > 23 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22834: O meu sapatinho de Natal (17): O meu Natal no mato em 1966 (José António Viegas, ex-Fur Mil)
Guiné 61/74 - P22836: Parabéns a você (2018): Fernando de Jesus Sousa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 6 (Bedanda, 1970/71)
Nota do editor
Último poste da série de 23 de Dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22832: Parabéns a você (2017): Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150/73 (Bigene e Guidaje, 1973/74); Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS do STM/QG/CTIG (Bissau, 1968/70) e Felismina Costa, Amiga Grã-Tabanqueira
quinta-feira, 23 de dezembro de 2021
Guiné 61/74 - P22835: Os nossos seres, saberes e lazeres (483): Guerra e Desporto, mais um artigo de Alexandre Silveira publicado no Jornal Fayal Spor Club, enviado a partir da Mata dos Madeiros (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)
Mano Carlos,
Junto mais um dos meus escritos publicados no Jornal “Fayal Sport Club”, em 1971. Infelizmente não consigo saber exactamente o mês da publicação.
Ao tempo, ainda eu estava em Bissau, numa das minhas noites livres fui ao Estádio “Sarmento Rodrigues” para assistir a um jogo de futebol. Independentemente dos objectivos das minhas observações ao jogo e ao recinto, hoje isso pouco interessa, espero que o escrito traga memórias e recordações a alguns dos nossos companheiros.
Abraço fraterno do mano,
José
Recorte do Jornal Fayal Sport Club, com artigo publicado em 1971 pelo nosso camarada José "Alexandre da Silveira" Câmara, hoje radicado nos EUA.
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Nota do editor
Último poste da série de 18 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22818: Os nossos seres, saberes e lazeres (482): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (22): As surpresas que o Museu de Lisboa nos reserva (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P22834: O meu sapatinho de Natal (17): O meu Natal no mato em 1966 (José António Viegas, ex-Fur Mil)
Caro Luís:
Como não chegavam, nem do Enxalé nem de Bambadinca, mantimentos, o meu cabo Ananias disponibilizou-se para tentar caçar alguma peça de caça.
Na véspera de Natal o repasto seria cabrito, que ele confeccionou e muito bem com arroz de chabéu e de sobremesa pudim que tinha escapado, uma lata de pó.
Depois do repasto o Ananias apresentou a cabeça de cabrito que era não só a de macaco cão, tirando o Furriel Costa, que depois de elogiar o repasto, ficou mal disposto, o resto da malta ficou de repetir. Essa caveira guardada como amuleto seguiu-me para todo o lado levando sumiço quando regressei da África do Sul.
Termino desejando um Santo Natal à malta do blogue e que este maldito inimigo termine de vez.
Um abraço
Zé Viegas
Nota do editor
Último poste da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22829: O meu sapatinho de Natal (16): Mensagens natalícias dos nossos camaradas e/ou amigos: Luís Fonseca; José Carlos Mussá Biai, Valdemar Queiros; Coronel Tirocinado Carlos Cação Silva; Associação Afectos com Letras, ONGD; José Teixeira; casal Giselda e Miguel Pessoa; Joaquim Fernandes Alves
Guiné 61/74 - P22833: Blogues da nossa blogosfera (167): "Os pães e os peixes", conto de Joaquim Mexia Alves no Blogue da Tabanca do Centro
Ali estava na sua sala, sentado, completamente só na noite de Natal, pois os filhos estavam longe e desinteressados da sua vida, a mulher já tinha falecido e a vida madrasta tinha-o deixado apenas nos níveis de sobrevivência, sendo aquela casa o único bem que ainda possuía, não sabia por quanto tempo. Levantou-se e foi à cozinha ver o que haveria para comer na Ceia de Natal. Riu-se interiormente ao pensar em Ceia de Natal, ele que não tinha nada, ter uma qualquer refeição que se assemelhasse sequer a uma ceia, quanto mais a uma Ceia de Natal!
Abriu a caixa do pão e viu que tinha dois pãezitos (já um pouco duros) e numa caixa no frigorifico vazio, um carapau frito que já nem sabia de quando era.
Riu-se novamente, mas agora ruidosamente e disse alto, sabendo que ninguém o ouviria: Agora o que me fazia falta era Jesus Cristo para abençoar estes pães e este peixe e, assim, com certeza não faltaria abundância para uma verdadeira Ceia de Natal.
Pegou nos pães e no peixe, num copo de água e foi sentar-se na sala para comer então a sua paupérrima Ceia de Natal.
Apesar da escassez e de tudo o que estava a passar, a tristeza profunda que lhe causava esta Natal sozinho e sem nada, benzeu-se e agradeceu a Deus pelo pouco que tinha porque, apesar de tudo, haveria outros que nem isso teriam com certeza.
Pegou num pão, partiu-o e, quando se preparava para o começar a comer, bateram à porta.
Pôs o pão de lado, levantou-se e foi abrir a porta.
Era um casal seu vizinho com uma caixa grande nas mãos e que lhe disseram: Ó vizinho, sabemos que está sozinho e com dificuldades. Nós também estamos sozinhos, mas graças a Deus ainda temos que nos chegue e assim lembramo-nos de nos fazermos convidados para passar o Natal em sua casa, pois sabíamos que se o convidássemos o vizinho não iria a nossa casa. Deixa-nos entrar?
Embora envergonhado, abriu a porta e deixou-os entrar dizendo: Mas eu não tenho nada para comer! Tenho apenas uns pãezitos e um peixe!
Eles responderam: Não se preocupe. Trazemos aqui nesta caixa um bom peru assado e recheado, com os seus acompanhamentos, que irá servir de Ceia de Natal a todos nós.
Sem palavras, com a voz embargada, agradeceu e sentaram-se à mesa.
Mas, mais uma vez, bateram à porta e ele lá se levantou para ir abrir.
Desta vez era um casal bem mais jovem, com o seu filho ainda criança, seus vizinhos também, e que lhe disseram: Sabíamos que estava sozinho, que se o convidássemos para nossa casa não iria, por isso viemos fazer-lhe companhia nesta noite de Natal. Espero que não leve a mal e nos deixe entrar.
Bem, pensou ele, se já cá estão uns porque não deixar entrar estes também.
Foram entrando e entregando umas caixas dizendo que eram bolos para adoçar a noite.
E, novamente, lá se sentaram todos à mesa. Ele, já bem mais disposto, perguntou alto se mais alguém bateria à porta.
Ainda não tinha acabado de falar e novamente tocam à porta.
Desta vez era um vizinho, só como ele, mas que vivia bem, e lhe disse: Pensei para mim que estando sozinho e o vizinho também, faria mais sentido vir bater à sua porta, fazer-me convidado e assim fazermos companhia um ao outro. Trago aqui umas garrafas de vinho para acompanhar o que houver para comer.
Espantado, admirado, deixou-o entrar e finalmente sentaram-se à mesa, que agora se apresentava bem guarnecida com o peru e os seus acompanhamentos, diversos bolos e vinho que chegava à vontade para todos.
De repente lembrou-se do que tinha dito alto na cozinha quando estava sozinho, de que o que precisava era de Jesus Cristo para abençoar a comida e assim haver abundância na sua mesa.
Soltou uma gargalhada e contou a todos os outros o que tinha acontecido, o que tinha dito e como via ali a multiplicação dos “pães e dos peixes” e também dos amigos.
Riram-se todos com alegria, rezaram um Pai Nosso em acção de graças e a criança disse toda contente: Hoje é mesmo Natal!!! O Menino Jesus está mesmo aqui connosco!!!
Monte Real, 22 de Dezembro de 2021
Joaquim Mexia Alves
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Nota do editor
Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22758: Blogues da nossa blogosfera (166): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (73): Palavras e poesia
Guiné 61/74 - P22832: Parabéns a você (2017): Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150/73 (Bigene e Guidaje, 1973/74); Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS do STM/QG/CTIG (Bissau, 1968/70) e Felismina Costa, Amiga Grã-Tabanqueira
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Nota do editor
Último poste da série de 20 de Dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22822: Parabéns a você (2016): José Botelho Colaço, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557 (Cachil e Bafatá, 1963/65) e José Casimiro Carvalho, ex-Fur Mil Op Esp da CART 8350/72 e CCAÇ 11 (Gulieje, Gadamael e Paunca, 1972/74)
quarta-feira, 22 de dezembro de 2021
Guiné 61/74 - P22831: Fotos à procura de...uma legenda (159): Cais de Alcântara ou Cais da Rocha Conde de Óbidos ? (Lucinda Aranha, escritora)
Lisboa > Agosto de 1960 > O Sene Sané, o meu pai, Manuel Joaquim Prazeres, na ponta direita e aminha mãe, ao maio. Vieram, com outras senhoras, depedir-se do Elísio (o segundo a contar da esquerda) que ia partir para Cabo Verde, por via marítima...
Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné](i) Segue foto do régulo Sene Sané com os meus pais e umas senhoras. Tu verás se vale a pena pô-la. São pessoas da Guiné, mas como te disse não sei quem são e só sei que a foto foi tirada em Lisboa durante as Comemorações Henriquinas.
(ii) O meu amigo cabo-verdiano que me ajudou a datar as fotografias é o rapaz que está na foto. Não o estva a reconhecer- Enviei-lhe a foto e espero qu ele tenha alguma ideia do que se passa. O Aranha diz que a foto foi tirada na Praça do Império ao pe da Doca do Bom Sucesso. Vamos a ver o que o Elísio Branco Vicente diz.
(iii) Afinal, Luís, mais uma vez me precipitei. Creio que que a fotografia não interessa. Além do Sene Sané, dos meus pais, da Maria Rosa, irmã do Elísio, que está ao lado da minha mãe, as outras semhoras são cabo-verdianas, e foram todas despedir-se ao Cais de Alcântara, do Elísio, que partia nesse dia para Cabo Verde. De certeza o Sene Sané foi levado em passeio pelos meus pais até porque conheceu o Elísio em nossa casa.
2. Comentário de Luís Graça:
Lucinda, adoro fotos antigas e das pequenas histórias da gente da nossa geração e da geração dos nossos pais. Não vai mal ao mundo se publicarmos a foto, até porque eu tenho outra pista para precisar o local em que foi tirada. Para mim, não se trata da Praça do Império, e Doca do Bom Sucesso, em Belém, nem sequer do Cais de Alcântara... Mas sim do Cais da Rocha Conde de Óbidos...
De facto, era de lá, do Cais da Rocha Conde de Óbidos, que partiam os navios da marinha mercante para as ilhas adjacentes, e para os territórios ultramarinos, incluindo Cabo Verde e Guiné... E os navios de transporte de tropas para a guerra do ultramar (Angola., Guiné, Moçambique)...O Museu Nacional de Arte Antiga fica sobranceiro ao Cais da Rocha Conde de Óbidos. Do lado poente (entrada primcipal), há um jardim adjcente conhecido como o Jardim 9 de Abril, o Jardim das Albertas ou o Jardim da Rocha do Conde de Óbidos). Logo a seguir, a esse jardim, também do lado poente encontra-se o Palácio dos Condes de Óbidos onde está instalada a sede nacional da Cruz Vermelha. Mas esta parte na aparece na foto em questão...
Mas cabe aos nossos leitores decidir, sobretudo aos lisboetas, que conhecem bem a cidade... Veja-se isto como um simples passatempo natalício (**)...
Lisboa > Gare Marítima de Alcântara (arq. Pardal Monteiro), inaugurada em 1943 > 10 de maio de 2015 > O cais e a gare, vistos do navio-escola "Sagres".
Foto (e legenda): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Lisboa > Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos > Arquiteto Pardal Monteiro, foi inaugurada em 1948... Foi daqui que partimos, muitos de nós, para a Guiné... Muitos confundem com o Cais de Alcântara, Nos últimos anos da guerra, a partir de 1972, o transporte já se fazia por via aérea, através dos TAM - Transportes Aéreos Militares. (LG)
Foto do domínio público. Cortesia de Wikipedia.
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Nota do editor:
Último poste da série > 19 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22821: Fotos à procura de... uma legenda (158): Tão meninos que nós éramos!... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)Guiné 61/74 - P22830: Historiografia da presença portuguesa em África (295): Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (2) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Não é novidade para ninguém que os Felupes sempre atraíram a literatura de viagens, quem percorria a costa que hoje corresponde ao Senegal, até para comerciar o rio Casamansa, debandava estas paragens atraído por alguns elementos exóticos e seguramente pela lenda de que este povo tinha costumes antropófagos. O relato de José Joaquim Lopes de Lima tem notas muito curiosas, começa logo por uma extensa exposição das práticas imateriais de cariz religioso, como bom aprendiz de antropólogo e etnólogo revela-se muito atento aos casamentos e funerais e envereda pela observação dos usos e costumes, indo direito às atividades económicas, aos recursos, às formas de habitar. Nunca refere antropofagia nem as relações interétnicas, os Felupes pertencem ao vasto mosaico dos Djolas que existem no Sul do Casamansa e até ao Rio de São Domingos. Não esquecer igualmente os mercadores e viajantes que se dirigiam para o presídio de Cacheu e comerciavam na região de Farim, seguramente que lhes atiçava a curiosidade esta etnia animista e ciosa da sua identidade.
Um abraço do
Mário
Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (2)
Mário Beja Santos
O nome José Joaquim Lopes de Lima não nos é estranho, pode aparecer associado às principais narrativas referentes à Senegâmbia na primeira metade do século XIX, podemos juntá-lo aos trabalhos de Conrado de Chelmicki, Senna Barcelos, Travassos Valdez e Honório Pereira Barreto.
De todos os seus escritos, o mais útil e continuadamente estudado pelos investigadores são os Ensaios sobre a estatística das possessões portuguesas na África Ocidental e Oriental, tomos publicados em 1840 e 1846. É no livro I – parte II que descreve a Guiné de Cabo Verde (páginas 80 a 119). Despede-se deste seu trabalho frente à Guiné com a seguinte observação: “Em mais de um lugar nesta obra eu fiz ver os imensos lucros que daria o comércio de Bissau e Cacheu a uma companhia mercantil portuguesa a quem se concedesse o exclusivo da navegação e resgates de compra e venda dentro nos rios de Geba e Farim (e muito mais se ela tentasse explorar de novo o Rio Grande e o Rio Nuno), com a única condição de ela compreender no seu grémio portugueses que se resolvessem, como os nossos antepassados, a ir afrontar por uma vez somente uma febre aguda, para depois gozarem por anos dilatados de todas as vantagens do homem rico e poderoso, sem mais receio pela sua existência, de que se vivessem na Europa”. Esta memória sobre os Felupes foi publicada em O Archivo Popular, Semanário Pintoresco, N.º40, em 5 de outubro de 1839 e no N.º41 de 10 do mesmo mês e ano. Já se fez referência a tudo quanto ele menciona sobre a religião dos Felupes, vejamos agora os casamentos e funerais.
“Os Felupes adotam a poligamia e mudam de mulher quando lhes apraz. No dia do consórcio envia o noivo um pote de vinho de palma a cada uma das chinas (balobeiras) do lugar, para ser derramado e bebido. Em chegando a noite, o noivo e a noiva se dirigem em companhia dos parentes ao covil de jambacós (feiticeiro), e lhe ofertam uma galinha para que ele se digne tirar uma manilha delgada de ferro que tanto o noivo como a noiva trazem no pulso direito; tirada esta pela mão do impostor, a cerimónia está concluída”. E escreve acerca dos funerais: “É uso logo que alguém morrer darem uma salva fúnebre de tiros de espingarda: imediatamente se lhe arma defronte da porta uma espécie de eça feita de paus cruzados à maneira dos tronos antigos: sobre esta se deposita o cadáver amortalhado. Se o morto é mancebo, ou homem na flor da idade, todo o povo se cobre de lama, e se repetem amiudadamente as salvas de espingardaria; se é mulher, não se dão sinais de alegria nem de tristeza; se é velho ou velha todo o mundo se regozija durante o tempo das exéquias: estas duram 24 horas, no fim das quais, tendo aberto a cova no lugar que o defunto tinha indicado em vida, a ela se conduz o corpo em umas andas. A cova não é aberta como as nossas: começam por cavar um poço redondo de 8 ou 10 pés de profundidade e alguns 15 de diâmetro: em um dos lados dele abrem uma pequena mina em que o corpo possa caber e forram-na de tábuas de cibe; trazido ali o corpo descem-no ao poço com muita honra, é introduzido na mina, tapada a entrada com uma tábua, e novamente atulhado o poço”.
E o autor explica que é interdito sepultar pessoas em terrenos de lavoura e que em casa do morto as mulheres cantam e choram três vezes no dia. Falando agora dos usos e costumes, depois de nos dizer que os Felupes são ágeis, robustos em geral, que têm fisionomias interessantes, que não têm beiços grossos nem nariz chato, trata-se de um povo afável, amigo dos brancos (sobretudo dos portugueses), são hospitaleiros. Mas há o reverso: “Uma vez ofendidos, são iracundos, bravos e mais de aplacar, resolutos e firmes no momento da cólera ou no combate; de caráter franco, mas desconfiado e a desconfiança torna-os dissimulados: são teimosos, traiçoeiros, imitadores, imitam mesmo os nomes portugueses, das pessoas e coisas. São muito laboriosos; mas também sabem mal repartir o tempo, e qualquer conversação insignificante é bastante para distraí-los. São incansáveis na agricultura do seu arroz, aferrados a más rotinas e possuidores de um terreno demasiadamente alagadiço.
Os mancebos Felupes enquanto não casam, andam de ordinário nus com um pequeno avental nas partes que a natureza ensina a cobrir, em cuja pele pregam botões que o enfeitam e embaraçam que flutue este avental que é preso em roda das virilhas; na cabeça usam os mais ricos um capacete de cauris furados, enfiados em fio de vela. Os homens casados apenas conservam nos braços uma manilha delgada e um fio de contas no pescoço, com algum anel de cobre no dedo. Tanto rapazes como raparigas, em chegando à idade de casar, aguçam os dentes da maneira mais bárbara: vão a casa do ferreiro, que habituado já a esta operação, com talhadeira e martelo afeiçoa ao uso da moda os dentes do malfadado. De resto, os costumes deste povo são extraordinários para uma nação selvagem: vêm-se entre eles mui raros aleijões, pelo cuidado que têm as mães de abafar ao nascer as crianças que vêm defeituosas. Ignoram os conhecimentos humanos até o que muitas nações bárbaras conhecem: o aspeto do seu nada lhes ensina, apenas conhecem as lunações e dessas só as conjunções; não têm meio algum de figurar tradicionalmente os seus pensamentos nem de memorar as suas épocas; não contam nem nomeiam os meses; e mesmo o dia primeiro de cada ano (que festejam) é amovível à vontade dos grandes, contanto que entre na Lua Nova de Novembro. A sua semana é de 6 dias, 5 dos quais empregam no trabalho, e o 6º em dormir, beber e lutar, tais são os seus divertimentos. Usam também de uma dança modelada ao som do tambor, muito semelhante à de todos os povos africanos. Nas Artes apenas conhecem imperfeitamente a cultura do arroz, a ferraria e a olaria: os seus ferreiros sabem igualmente trabalhar o ferro, o cobre, o latão e a até sabem fundir e caldear estes dois últimos.
As casas felupes são construídas de um barro que em secando é tão rijo como o adobe; são quase todas de forma circular, têm todas uma sala espaçosa que abre comunicação com vários quartos laterais; se não cozinhassem dentro seriam sofríveis. A mobília de um Felupe é um coiro em que se deita, um búzio de mar que lhe serve de candeeiro, uma escudela de pau em que come, as panelas de barro em que faz a comida (que consiste em arroz cozido em água e sal e algumas vezes peixe e marisco).
Falando da sua economia o autor diz que os Felupes possuem um terreno parte lodoso parte arenoso; mas em toda a parte alagadiço e cortado de rios. A única produção valiosa dos terrenos Felupes é uma imensa quantidade de arroz ordinário, cuja cultura seria suscetível de melhoramento se os cultivadores o fossem de instrução rural: este é semeado em alfobres ou viveiros, e dali transplantado às terras em que produz, como se usa na Europa para com as hortaliças: conservam-no na palha de uns anos para os outros nos sótãos das casas em que todo o ano dura um fumo insofrível, podem muito bem ser estas as causas da cor escura que apresenta, pois ele de seu natural é claro.
As árvores que mais trivialmente se encontram nestes países são o poilão, de que se fazem as canoas; o mangue, bom para lenha; o cibe, excelente para emadeiramento das casas; e a palmeira, de cujo fruto se faz o azeite; é muito raro encontrar árvores frutíferas. Os Felupes vendem muito arroz no presídio português de Cacheu e ao gentio Papel em troca de vacas pequenas. Quando algum branco chega a Bolor para fazer negócio, é do uso mandar ao rei um ou dois frascos de aguardente e algum tabaco, rogando-lhe que venha a casa do seu hóspede para pôr as medidas.
Os Felupes negoceiam pouco em escravos, pois que eles não escravizam pessoa alguma, e apenas servem de corredores dos escravos que lhes remetem do Interior para serem vendidos aos brancos. Os Felupes não cultivam legumes nem hortaliças, mas o seu terreno é muito próprio para uma e outra coisa. Em geral, esta costa não é tão doentia como se supõe. As frutas do país são a banana, a papaia, a laranja e o ananás.
Eis aqui o que pude colher dos costumes felupes, que diversificam algum tanto na forma do governo, mas em tudo o mais se assemelham aos dos outros gentios que povoam as costas da Guiné Portuguesa.
Nota do editor
Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22810: Historiografia da presença portuguesa em África (294): Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (1) (Mário Beja Santos)