quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23772: Fauna e flora (20): crime contra a natureza: mortos, por envenenamento, em 2020, segundo a revista "Science", mais de dois milhares de jagudis (Necrosyrtes monachus) na Guiné-Bissau (José Belo, Suécia)



Jugudé (cr) | Necrosyrtes monachus | Jagudi (pt) | Abutre-de-capuz (pt)  | Hooded vulture (en) | Comprimento  70 cm | Envergadura  176 cm.


Bem conhecido da maior parte das pessoas, é fácil observá-lo em cidades e tabancas, frequentemente em pequenas lixeiras, matadouros e portos onde se alimenta de desperdícios
deixados pelo Homem e de animais mortos. 

O seu papel ecológico na natureza e nas cidades é essencial, ajudando a eliminar doenças e parasitas. Escasso no sudeste e no sul do país. Embora ainda seja abundante na Guiné-Bissau, está muito ameaçado de extinção em toda a África.

Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 36. Ilustração de PF - Pedro Fernandes) (Com a devida vénia...)


Segundo o portal Bird Life International, "suspeita-se que esta espécie esteja atualmente a sofrer uma redução populacional extremamente rápida devido ao envenenamento indiscriminado, tráfico para efeitos de medicina tradicional, caça para alimentação, perseguição e eletrocussão, bem como a perda e degradação do habitat".  Estima.se que 
as taxas globais recentes de redução excedam 80% durante o período atual e futuro de três gerações. O o é, portanto, avaliado como "Criticamente Ameaçado"  população estimada: 131 mil. Área de criação e residência: 22,5 milhões de km2.


1. Mensagem de José Belo, o mais "internacional" dos membros da Tabanca Grande (vive entre a Lapónia sueca, a Suécia e os EUA, Florida, Key West);

Data - sábado, 29/10, 19:45 

Assunto - Os Jagudis de uma saudosa….Guiné

Em Outubro de 2020 foram mortos na Guiné-Bissau mais de 2000 “jagudis”, abutres da espécie Necrosyrtes Monachus (abutres de capuz).

Foi, segundo a revista Science, o envenenamento mais letal de abutres em todo o mundo.

Os abutres terão sido envenenados propositadamente para remover as suas cabeças, asas, unhas e patas para uso em práticas de feitiçaria em diversos países da África Ocidental.

Este envenenamento foi comprovado pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa.

Ainda, e segundo a revista Science,  desapareceram na África Ocidental entre 60 a 70% destas aves.

A Guiné-Bissau alberga mais de 1/5 da população mundial destas aves, sendo um dos mais importantes países para a conservação desta espécie a nível mundial.

Como muitos recordarão, os “jagudis” com os seus voos circulares eram imagem quotidiana no céu da Guiné aquando do feliz (!) tempo colonial.

Na sua função essencial para os humanos e ecossistemas eliminavam grande parte do lixo orgânico nas cidades e vilas do país evitando a proliferação de doenças.

As multas aplicadas pela Administração Colonial quanto ao abatimento destas aves eram elevadas no contexto económico da época.



Um par de jagudis, "pormíscuos e exibicionistas, naturalizados americanos". Imagem fornecida pelo autor, cortesia de "The Guardian" e "CNN" (on line).

Em 2022 a espécie está longe de uma recuperação significativa.

Será que alguns exemplares artificialmente (!) introduzidos na exótica fauna da tão hospitaleira Flórida irão conseguir restabelecer um equilíbrio populacional destas aves?

Tendo vindo a demonstrar uma acentuada capacidade de adaptação a um certo tipo de decadência local (bem característico de, por exemplo, Key West) estão a tornar-se em inesperados e promíscuos... exibicionistas!

As maravilhas da natureza na sua luta pela sobrevivência nunca deixam de surpreender.

Um abraço do JBelo
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22987: Fauna e flora (19): O grou-coroado ou "ganga" (em crioulo), uma ave que "matou a malvada" a alguns de nós, em tempo da guerra... Está agora ameaçada de extinção.

Guiné 61/74 - P23771: Parabéns a você (2112): António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAÇ 4942/72 (Mansoa, Barro e Bigene, 1973/74) e José João Alves Martins, ex-Alf Mil Art do BAC 1 (Guiné, 1967/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23758: Parabéns a você (2111): TGeneral PilAv Ref António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Bissau, 1972/74)

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23770: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VI: os primeiros ataques a Farim, em 1963


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Farim (e dos seus bairos  Nema e Morocunda), além de K3 e Bricama. Recorde-se que cada centímetro da carta corresponde a 500 metros no terreno.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022).


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou em 2015, aos 74 anos. 

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" do livro do Amadu Djaló. Temos vindo a introduzir pequenas correcções toponímicas ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2a. edição. 

Recorde-se, aqui sumariamente, os primerios vinte e poucos anos do Amadú Djaló (1940-2015), a partir dos excertos que já publicámos (**):

(i) o Amadu Djaló era, em 2010, quando o seu livro foi lançado (no Museu Militar en Lisboa) um dos raros sobreviventes que podia falar de todos os anos que durou o conflito, como muito bem lembrou o Virgínio Briote;

(ii) Futa-Fula, natural de Bafatá, oriundo de famílias da antiga Guiné Francesa, Amadu escolheu um dos lados, combateu no Exército Português, juntando-se a milhares de guineenses; mas o seu pai  que era empregado de balcão de um comerciante libanês, em Bafatá, o Assad,  tivera antes o sonho de o levar até ao Senegal, onde dois sobrinhos-netos eram militares do exército francês, ambos 2º sargentos e antigos combatentes da guerra da Indochina; após consulta a um vidente, passou a sonhar com uma carreira militar brilhante para o filho, coisa que ele na Guiné portuguesa, em sua opinião,  nunca poderia ambicionar:

(iii) recenseado pelo concelho de Bafatá, o Amadu acaba por ser  alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(iv) depois da recruta em Bolama, segue-se o CICA/BAC, em Bissau, ponde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas:

(v) é colocado depois em  Bedanda, na 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), em finais de 1962:

(vi) é tranferido, a seu pedido para a 1ª CCaç (mais tarde CCAÇ 3) em Farim, em meados de 1963.

O excerto que hoje publcamos é referente a esse período em Farim   (segundo semestre de 1963, pelas nossas contas). Mantemos a ortografia original.
  



Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O início da guerra em Farim, no segundo semestre de 1963

(pp. 64-70)

por Amadu Bailo Djaló



Uma coluna de Farim a Susana em cerca de 20 horas

Cerca de um mês depois houve ordem para recolher os pelotões que se encontravam nos destacamentos. A nossa companhia 
[a 1ª CCAÇ]  tinha dois pelotões, um em Porto Gole e outro em Susana.

A minha viatura, depois de descarregada, ficou preparada para fazer parte da coluna com destino a Susana 
[na região de Cacheu]  . Partimos por volta das 08h30, andámos todo esse dia e toda a noite, debaixo de chuva torrencial, numa estrada difícil e lodosa, que exigia muita perícia e um andamento muito cauteloso.

De Farim até Bigene e Barro a estrada não estava muito mal, o pior foi depois, os carros patinavam e atascavam-se a toda a hora.

Quando chegámos a Susana, às 4h00 da madrugada, o pessoal já estava cansado de tanto esperar. Tivemos que carregar tudo rapidamente e por volta das 6h00 iniciámos o regresso a Farim.

Quando passámos pelo Ingoré, vi o alferes Almeida algo preocupado. Andava a ver se arranjava qualquer coisa para dar de comer ao pessoal que estava faminto, já que não comíamos nada desde que tínhamos saído de Farim. Vi-o regressar de mãos vazias. Compreendemos e resignámo-nos, não havia outro remédio.

Para acrescentar, a jangada estava avariada e tivemos que aguardar até às 19h00, que foi quando ficou pronta. Atravessámos o rio 
[Cacheu , seguimos para Bula, onde chegámos à noite, por volta das 21h00.

Aqui, o alferes ganhou esperança em encontrar comida. Mas, tal como no Ingoré,  veio com as mãos a abanar. Não havia nada a fazer e pusemo-nos a caminho de Binar e Bissorã. Em Binar, nem parámos, só quando chegámos a Bissorã descansámos, já passava das 3h00 da madrugada

Refeitos, prosseguimos, primeiro para o Olossato e depois para o K3 e aqui o alferes recebeu uma mensagem para rumar para Mansabá, onde nem parámos e depois para Mansoa.

Desde Susana, trazia de reboque um Unimog “gripado”. Em Mansoa ficámos a aguardar o pelotão que vinha de Porto Gole [1].

Quando chegaram de Porto Gole as duas viaturas, um jipe e um Unimog, a coluna pôs-se finalmente em marcha de regresso a Farim.


Bricama, uma tabanca de pouca confiança


Na tabanca de Bricama, viviam homens válidos para pegar em armas. O comandante da 1ª CCaç, um capitão cujo nome não recordo, era uma pessoa já com certa idade, tratava-me por cunhado, entendeu entregar ao chefe da tabanca dez armas Mauser, para a autodefesa da tabanca. E se tudo corresse bem estava na intenção de entregar, mais tarde, espingardas G-3.

Um mandinga, chamado Malan Injai, também conhecido por Manjai, andava, de tabanca em tabanca, a vender cola e aproveitava para colher informações, que depois passava à tropa. Um dia disse que a tabanca de Bricama não era de confiar e a tropa decidiu recolher as armas.

Um certo dia, Malan Injai entrou no quartel exausto e com ar de sofrimento. Apresentou-se ao oficial de dia e mostrou-lhe as costas em chagas provocadas por chicotadas que lhe tinham dado na mata de Bricama, onde fora preso por uma patrulha do PAIGC, que o acusou de prestar informações à tropa.

Depois de aprisionado e apresentado ao chefe e à população da tabanca, como informador da tropa e traidor, foi levado para um acampamento, onde foi julgado e condenado à morte, por fuzilamento, quando amanhecesse.

Felizmente para o Malan, no grupo que o prendeu, havia um patrício dele que se condoeu e o soltou por volta da meia-noite. Malan pôs-se em fuga e caminhou na mata até Farim, onde chegou mais morto que vivo. Muito emocionado, relatou tudo o que tinha acontecido.

Quando Malan se apresentou ao capitão da 1ª CCaç, em Farim, este, prudentemente, optou por recolher as Mausers que estavam em poder do chefe da tabanca de Bricama.

Para o efeito encarregou o alferes Almeida, do esquadrão de Bafatá 
 [2], para executar a diligência no dia seguinte, na qual eu também participei.

Chegados à tabanca de Bricama fomos acolhidos por pouca gente, ao contrário das outras vezes. O alferes perguntou pelo chefe da tabanca. Veio um filho que informou que o pai se tinha deslocado a Farim, chamado pelo administrador.

– E onde estão as armas?

–  Não posso mostrar. Quando o meu pai sai, fecha a casa e leva as chaves com ele.

–  Por onde passou o teu pai? Não o vimos no caminho!

–   Nós costumamos seguir a corta-mato, que é mais rápido.

Perante esta resposta e como não convinha demorar, o alferes resolveu regressar. Chegados a Farim, fomos directamente à casa do administrador, que informou o alferes Almeida de que o chefe da tabanca tinha ido a casa de Braima Baio, chefe da tabanca de Farim, e que desconhecia se ele ainda regressava naquele dia a Bricama ou se dormia em Farim. O administrador prontificou-se a enviar o motorista a casa de Braima, no bairro de Morocunda, incumbindo-o de trazer o chefe da tabanca, caso ele lá se encontrasse, o que não sucedeu. O motorista, quando regressou, disse que o chefe já tinha regressado à tabanca. E o alferes Almeida prontamente deu a informação ao nosso comandante.

No dia seguinte, de manhã, voltámos a Bricama e encontrámos o chefe da tabanca. Após os cumprimentos, o alferes quis saber dos motivos que o tinham levado a Farim, a casa do administrador, ao que ele respondeu que era devido ao atraso nos pagamentos do imposto. E o alferes continuou:

– Viemos cá, para falarmos sobre esta questão: o chefe tem entre 60 a 80 homens aptos a usarem armas. E, dentro de algum tempo, nós vamos receber mais armas. Assim temos que recolher todas as Mausers, que estão à sua guarda, a fim de serem substituídas por G-3, que são muito superiores. E, logo que seja possível, entregaremos mais algumas.

De imediato, o chefe da tabanca dirigiu-se a casa e, pouco depois, surgiu com nove armas.

– Não são nove. Pela relação que tenho, são dez Mausers!

A arma que faltava tinha já sido recolhida pelo cabo da arrecadação, uma vez que se tinha verificado anteriormente que a arma não estava em condições. Resolvida a questão, regressámos a Farim.


Os dois primeiros  ataques do PAIGC a Farim, no 2ºseemstre de 1963

Quatro ou cinco meses depois de ter sido transferido para Farim, a 1ª CCaç deslocou-se numa coluna de quatro viaturas, à serração de Carés, que ficava perto de Fajonquito, na linha da fronteira com o Senegal. 
[Carés, topónimo que não existe, mais provavelmente trata-se de Caresse]

Quando chegámos arrumei o meu carro junto de outras viaturas. Na minha viatura vinham soldados africanos, nas outras que me seguiam vinham soldados africanos e europeus, que pertenciam ao esquadrão de Bafatá e que estavam destacados na 1ª CCaç, em Farim.

Quando acabámos de estacionar, fui surpreendido por uma voz conhecida. Era o 1º cabo Eurico.

 Eh, pá, não há como na tropa! Um dia separámo-nos em Cacine, junto à fronteira com a Guiné-Conakry, nunca pensei voltar a encontrar-te na Guiné quanto mais neste local, junto à fronteira com o Senegal!

Chamou os colegas [3], fizemos uma grande festa e perguntei onde estavam agora colocados.

 Em Canhamina    responderam.   [Canhamina ,a seguir a Fajonquito, a nordeste, já na carta de Tendinto, que nos falta].

Pouco tempo depois,
 Carès passou a ser terra de ninguém. Num dia, o proprietário da serração, temendo ser atacado, comprou armas e munições para a defender. Mas não resistiram ao ataque do PAIGC. O dono da serração morreu no local e a serração fechou e foi transferida para Bafatá, para um local perto da minha casa [4].

Estava uma noite de luar. Eu tinha-me deslocado ao bairro de Sinchã e estive a divertir-me com alguns colegas. Com a noite já adiantada, resolvi regressar ao quartel. No caminho, quando estava a chegar ao bairro de Nema, vi o pelotão de milícias formado à porta do régulo Made Sissé. Estavam a preparar-se para se dirigirem para os locais de vigilância à segurança do bairro. Passei por eles, sem me dirigir a ninguém, pois estava com pressa de chegar ao quartel, que não ficava a mais de meio quilómetro.

Uns metros andados fui surpreendido por barulho de tiros e de rebentamentos, que me pareceram atingir toda a vila.

– Mas que é isto?  interroguei-me, espantado, sem saber bem o que fazer.

Se tentasse deslocar-me para o quartel, algum militar que me visse a aproximar, baleava-me logo. Por outro lado não me parecia que regressar ao local de onde tinha partido, fosse uma boa solução. As milícias armadas tinham-se espalhado pelo bairro e o perigo para mim era o mesmo. Agachei-me, colei-me ao chão, a pensar no que havia de fazer. O fogo abrandou e a correr alcancei o bairro de Mancanha, já muito próximo do quartel. Vi uma casa e abriguei-me na varanda. O tiroteio recrudesceu e eu bati à porta.

– Quem é?

– Abra a porta!

– Não!

– Se não abrir, vou ter que arrombar!

– Tenho medo!

– Não tem que ter medo, sou militar!

Vendo a porta aberta, entrei precipitadamente, fechei-a e fiquei com a chave na mão. Era um velho que vivia sozinho.

Desconfiados, mantivemo-nos algum tempo a olhar um para o outro. Não me sentia confiante no meu companheiro e, por isso, resolvi não dormir, embora os olhos se me quisessem fechar. Não o deixei sair, nem para urinar, permaneci toda a noite sentado e só resolvi sair, quando as armas se calaram, o que aconteceu por volta das 5 da manhã. Entreguei-lhe a chave, mostrando-lhe que, em mim, não havia qualquer má intenção, apenas queria abrigar-me do tiroteio.

Dirigi-me a um posto de vigilância, próximo dos Correios, e aguardei a viatura que estava a recolher os vários militares dispersos pelos postos de vigilância.

Quando cheguei ao quartel, viviam-se os momentos habituais depois de um ataque. Cada um falava e contava como tinha sido. Emoções e lembranças surgiam a cada passo. As recordações do acontecido duraram poucos dias. Mas estávamos certos que o 1º ataque, de que houve memória, do PAIGC a Farim se iria repetir.

Uma semana depois da recolha das armas em Bricama, o nosso comandante entendeu estar na altura de ver como a população da tabanca estava a reagir. A minha GMC, carregada de soldados,  abria uma pequena coluna de quatro viaturas. Íamos com destino a Bricama, uma localidade atravessada por um ribeiro com muita água e sobre o qual havia uma ponte de troncos de palmeiras.

A tabanca estava na outra margem, a pouco mais de 50 metros. Quando nos aproximámos da ponte, foi com surpresa que verifiquei que tinha sido queimada.

– Siga, continua    gritou-me o alferes Almeida.

– Então e a ponte, meu alferes?

Vendo-me parado a olhar para os restos calcinados da ponte, avançou com o jipe.

– Toca a saltar cá para baixo, menos os condutores    ordenou.

Verificando que a travessia não se podia fazer, mandou o pessoal embarcar novamente e regressámos a Farim.

Esta foi a última saída a Bricama e também o adeus à população da tabanca, que julgávamos nós estava libertada da influência do PAIGC. A partir deste acontecimento, redobrámos a vigilância, as vias de acesso a Farim passaram a ser mais controladas e tivemos consciência que a zona de Farim estava a entrar numa nova fase da guerra.

Não ficámos muito admirados, quando dias depois, Farim voltou a ficar debaixo de fogo. Não foi tão violento, nem tão prolongado como o primeiro. Não houve vítimas do nosso lado, do outro não sei. Também desta vez, me encontrava fora do quartel, estava de serviço aos Correios.

 (Continua)

______________

Notas do autor:

[1] Da CCaç 413, comandado por um alferes que me disseram mais tarde ser sobrinho do Brigadeiro Arnaldo Schulz, nomeado Governador-Geral em 29 março de 1964, quando eu me encontrava ainda em Farim.

[2] ERec 385

[3] Do Pel Caç 870

[4] Depois de 25 de Abril de 1974 a serração acabou por ser abandonada.


[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos /  negritos / parênteses rectos, com ntas adicionais, para efeitos de edição deste poste: LG. ]

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(**) Vd. os outros postes anteriores:

22 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23728: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IV: Infância e adolescência

16 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23713: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte III: Colocado em Farim, na 1ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim

14 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23671: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte II: 1962, recruta em Bolama e instrução de especialidade no CICA / BAC, Bissau: o racismo primário do cmdt da CART 240

22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão

22 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14282: Os Nossos Camaradas Guineenses (41): Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 14/11/1940- Lisboa, 15/2/2015): 13 anos ao serviço do exército português (1962-1975), "em perigos e guerras esforçado mais do que prometia a força humana" (Virgínio Briote)


segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23769: Notas de leitura (1514): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Aqui prossegue, em marcha um tanto lenta, a tentativa de sumarização do miolo da obra que o nosso confrade José Matos teve a gentileza de me enviar. Encetou-se este trabalho com o prólogo e estamos agora no contexto histórico da emergência do nacionalismo guineense, que conduzirá à luta armada iniciada em janeiro de 1963. Convém esclarecer que aqui e acolá introduzo um apontamento histórico da minha lavra, não para distorcer o que há de essencial no livro de Hurley e Matos mas para melhor contextualizar o leitor português. Dou simplesmente o exemplo de ter referido o nome de Fernão Gomes e o seu contrato com a Coroa para melhor se entender que era sua obrigação ir explorando para Sul, tudo fazia parte daquele desígnio a que se chama o Projeto Henriquino, ir descobrindo para Sul até encontrar caminho para o Oriente. Assim se perceberá, creio eu, como aquele ponto da costa ocidental africana tinha significado numa rede comercial, nem de longe nem de perto era uma colónia, a nossa presença estava marcada no litoral e na negociação com régulos com quem se fazia a compra e a venda. O texto parece-me rigoroso, é muito incisivo, trata-se de um volume que não chega a 100 páginas, os autores foram forçados a orientar-se pelo que lhe parece de mais essencial para mais adiante se compreender as atividades da Força Aérea Portuguesa na Guiné.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (2)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Na edição anterior procedeu-se a um sumário da introdução, vamos agora entrar no primeiro capítulo que se intitula “O Vento da Mudança”.

Recordam os autores a presença portuguesa nesta região da costa ocidental africana a partir de finais da primeira metade do século XV. Presença limitada a vários pontos de comércio; um rico comerciante, de nome Fernão Gomes, fez contrato com a Coroa, a sua principal obrigação era ir explorando para Sul, fê-lo com êxito; a rede comercial instituída atingia Cabo Verde, Arguim e São Jorge da Mina, prosperou o tráfico negreiro. O monarca português reivindicou a soberania e a exclusividade económica sobre a região, a partir de 1486 acrescentou ao seu título o de “Senhor da Guiné”. Prosseguiram as viagens no reinado do príncipe D. João (futuro D. João II), e depois de se ter chegado à zona do rio Congo, intensificaram-se as viagens até que Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança; preparou-se, então, uma grande expedição para a primeira viagem marítima até o Oriente, o comandante era Vasco da Gama, o ano 1498. Dois anos depois, Pedro Álvares Cabral descobria o Brasil. Iniciava-se um período prodigioso de viagens e comércio. A concorrência estrangeira na costa ocidental era praticamente incontrolável, com a expansão para o Brasil e para o vice-reinado da Índia o comércio africano foi ficando reduzido a uma escala diminuta, durante o período filipino a presença portuguesa ainda ficou mais seriamente afetada por se passar a ter os mesmos adversários que a Espanha.

Com a independência do Brasil, Portugal voltou-se declaradamente para uma presença mais efetiva em África. No caso da colónia da Guiné, a nossa presença era ténue, o clima altamente agressivo, a resistência dos autóctones era ferocíssima. Com as obrigações impostas pela Conferência de Berlim, tiveram início campanhas para subjugar a resistência dos povos locais, considera-se que o território da colónia ficou efetivamente ocupado/pacificado em 1936, depois de uma campanha numa ilha dos Bijagós, que acatou finalmente a soberania portuguesa. E, de facto, começou uma organização administrativa pautada pela criação de infraestruturas, estabelecimento de Circunscrições, uma maior presença de funcionários do quadro da Administração Colonial, criação de bairros para os funcionários, aparecimento de instalações de saúde e poderá considerar-se que com a governação do Comandante Sarmento Rodrigues, que deu largo impulso ao conhecimento da Guiné, e até mesmo trazendo ao território cientistas reputados, a Guiné passou a ter uma posição no mapa, ganhou identidade e chegou ao conhecimento dos portugueses.

Com o aparecimento do Estado Novo, o Império Colonial Português ganhou uma nova moldura jurídica, que vai desde o Acto Colonial até à Concordada com a Santa Sé. O Acto Colonial era bem claro ao definir a função histórica de Portugal em possuir e colonizar domínios ultramarinos e civilizar as respetivas populações indígenas. Realizaram-se exposições, a começar pela Exposição Colonial do Porto até, em plena Segunda Guerra Mundial, a Exposição do Mundo Português, exaltava-se o passado heroico de Portugal e o imutável caráter imperial da nação portuguesa. Em 1960, aproveitando as comemorações do centenário da morte do Infante D. Henrique, falecido cinco séculos antes, voltava-se a uma narrativa nacional, no caso vertente que ia do Minho a Timor, era uma narrativa construída em torno de um país pluricontinental e plurirracial, tudo numa unidade exemplar.

Apercebendo-se dos ventos da mudança, a descolonização estava em curso desde o fim da Segunda Guerra Mundial e Salazar apercebeu-se que a independência da Índia em 1949 iria trazer severas tensões para a sua política externa. Abandonou-se o conceito imperial, deixou-se de falar em colónias, alterou-se a Constituição e apresentou-se ao mundo o ultramar português, as províncias ultramarinas apareciam como politicamente integradas no Estado português. Tanto no interior do regime como nos areópagos internacionais sabia-se que a mudança era puramente cosmética. Salazar não deixava de dizer claramente que o regime não podia sobreviver sem o seu território ultramarino, assim se iniciou uma intensa doutrinação sociopolítica, procurando uma catequização de que este ultramar era um direito adquirido, fazia parte das realizações históricas da Nação. Mas os investimentos no ultramar mantiveram-se no nível baixo, e em 1960 o chamado Portugal europeu caracterizava-se pelo seu maior nível de analfabetismo e o menor rendimento per capita na Europa Ocidental, com níveis altamente preocupantes na mortalidade infantil e nas doenças infetocontagiosas, abaixo de Portugal só a Albânia.

Os autores relatam os acontecimentos da Abrilada, a atividade oposicionista ao regime, o esmagador apoio que a ideia de império/ultramar obtinha junto do Oficialato português. Tanto assim foi que se deu uma rápida mobilização para procurar asfixiar a sublevação em Angola. Houve quem tivesse preconizado que o descontentamento nacionalista africano se iria exprimir em primeiro lugar na Guiné, tal não aconteceu, mas em 1961 o ideal independentista já seguia o seu curso, com apoios firmes na Guiné Conacri e no Senegal. A Guiné atraía poucos capitais, tinha algumas empresas de dimensão média, as suas exportações eram interessantes para o fabrico das oleaginosas e a cultura do arroz permitia que este alimento básico chegasse a Portugal, a Guiné dava sinais de autoabastecimento muito satisfatório no caso do arroz.

Segundo o censo de 1960, a Guiné tinha um pouco mais de meio milhão de habitantes, esmagadoramente era constituída pela população indígena, havia pequenas parcelas de população branca e sírio-libaneses. Apesar da sua insignificância no contexto imperial, o Estado Novo não abdicou de tratar a Guiné como uma província ultramarina, os sinais da descolonização eram por demais evidentes, os franceses já tinham sido expulsos da Indochina, as sublevações na Malásia, Quénia e Argélia não podiam ser iludidas, a Guiné Conacri torna-se independente em 1958, no ano anterior o Gana proclamara a sua independência e a sua política externa era completamente hostil ao espírito colonial, logo na África Subsariana. A questão angolana era prioritária para o Estado Novo, só a partir de 1962, e a um ritmo muito fraco é que Lisboa foi enviando para a Guiné mais efetivos militares.

Os autores dão conta do que foram as tentativas independentistas na Guiné nos anos 1950, referindo a crescente presença do partido dirigido por Amílcar Cabral, nascido na Guiné em 1924, tendo depois vivido em Cabo Verde e tirado o curso de engenheiro agrónomo em Lisboa, seguindo depois como Diretor de Serviços Agrícolas para a Guiné, onde restruturou a Granja do Pessubé e na companhia da mulher procedeu ao recenseamento agrícola, nomeadamente no ano de 1953. Segue-se uma apreciação do contexto internacional que pesou a favor do espírito independentista, o mapa africano alterou-se profundamente e isso deu força a que Cabral propusesse a criação de um partido, ficaria um núcleo ativo no interior da Guiné a preparar a subversão e a canalização de gente para Conacri, ele ficaria na capital com um outro núcleo diretivo, à frente de uma Escola-piloto e conduzindo a sensibilização da opinião pública internacional. Cabral soubera tirar partido das lições dos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959, não havia condições para a subversão urbana, tinha que se ir por outro caminho.
O Governo de Salazar em 1930 junto dos próceres da ditadura nacional, Carmona é o Presidente da República, é o ano do Ato Colonial
Outra imagem do livro “O Santuário Perdido”, reproduz material propagandístico do PAI, a sigla antecessora do PAIGC
Amílcar Cabral a pousar com um grupo de guerrilheiros do PAIGC recentemente regressados de uma ação de formação na China. Nino Vieira está acocorado, é o segundo à esquerda.

(continua)

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Notas do editor:

Vd. poste de 28 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23745: Notas de leitura (1511): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23762: Notas de leitura (1513): "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo; Ku Si Mon Editora, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23768: Manuscrito(s) (Luís Graça) (214): a (ha)ver navios


Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI  (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus, ao fundo,  e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira

Fonte: Saúde e Trabalho . Página de Luís Graça > Textos, 59 > O Hospital Real de Todos os Santos - Parte I (2000)


 a (ha)ver navios

por luís graça 


do alto do jardim das janelas verdes

enxergavas o tejo 

e a sua desmedida desmemória,

e, sob o ecrã, branco de cal, da história,

os navios negreiros zarpando do cais

da rocha conde d’óbidos.


garbosos os soldados imperiais,

alinhados de popa à proa de lisboa,

em chumbo, derretidos.

meninos de sua mãe, tão queridos, 

escrevia o fernando pessoa,

no último aerograma 

que veio na carreira das índias.


e na margem esquerda do estuário

o cristo-rei no seu monstruário,

em louça de barcelos,

fingindo abraçar 

os náufragos e os cativos

dos reinos dos algarves e d'além-mar.

 

quebradas as cadeias do alto império

 e os seus frágeis elos,

ai pobre de quem se deixava ficar para trás,

sem honra nem glória nem epitáfio,

na vala comum do esquecimento dos quatro guês,

em gandembel, guidaje, guileje, gadamael.


remir os cativos, uma e outra vez, 

era então obra de misericórdia,

a última missão, disse o capitão.

oxalá inshallah enxalé

bons ventos os trouxessem,

aos pobres dos vivos,

do campo da batalha de alcácer quibir,

a três mil e oitocentos quilómetros da guiné.


lembravas-te que eram de verde-escuro as janelas

e rubra de sangue a bandeira

do último cruzeiro,

da última cruzada,

da última armada invencível.

via-se a espuma da autoestrada da globalização

a perder-se de vista na última encruzilhada,

no  bugio de todos os azimutes.


perdeste a última carreira das índias,

fernando, menino, pessoa, de sua mãe,

quando nem navios havia já para (ha)ver

e subitamente o estuário do tejo

estava reduzido aos cais das colunas

e às lipitutianas dimensões da tua banheira

de criança.


brincavas, na inocência da tua segurança, 

com navios de casca de noz,

foi quando veio o tsunami, a dor e o luto.

desististe então de rebobinar o filme da tua vida,

que, de fissura em fissura,

se podia contar, 

sem cortes da censura,

num minuto.


lisboa, 28 set 2022 / lourinhã, 1 nov 2022

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Nota do editor:

Último poste da série >  8 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23244: Manuscrito(s) (Luís Graça) (213): Memória dos lugares: a rua da tua infância...

domingo, 6 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23767: Efemérides (375): Faria hoje 78 anos, se fosse vivo, o nosso querido "alfero Cabral", de seu nome completo Jorge Pedro Almeida Cabral (1944-2021)...

1. O nosso querido amigo e camarada 
Jorge Cabral (Lisboa, 1944 - Cascais, 2021) faria hoje 78 anos, se fosse vivo (*).

Recorde-se o seu percurso de vida: jurista, advogado de barra, docente universitário,  ex-alf mil at art, cmdt Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, setor L1, Bambadinca, 1969/71. Foi nomeadamente durante 4 décadas professor de direito penal, no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa e depois na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. 

É autor, entre outras obras, de "Estórias Cabralianas", vol. I, ed José Almendra, 2020, 144 pp. Muitas alunas e alunos, amigos e amigos, além de camaradas de armas, o recordam com muita saudade. 

Reproduzimos aqui uma pequena amostra das mensagens que lhe deixaram neste dia, na sua página do Facebook. E voltamos a reproduzir uma das suas deliciosas "estórias cabralianas" (**), a nº 74, que ele, todavia, não selecionou para o 1º volume. Muito provavelmente iria incluí-la no II volume, que tinha em preparação ou praticamente concluído quando a doença e depois a morte o surpreenderam. 

O "alfero Cabral cá mori"...  Fisicamente, morreu, mas continua bem presente na nossa memória e no nosso coração. Há um ano atrás, havíamos-lhe escrito o seguinte (***): 

(...) Faz hoje anos, porém está doente (...). Continua a ser uma das estrelas da nossa Tabanca Grande.  

(...) Mestre do microconto, da "short story", senhor de uma ironia fina, é responsável por alguns dos melhores postes que aqui fomos publicando, entre 2006 e 2016. É pena, porém, que os "mais novos", os "periquitos" da Tabanca Grande, não o conheçam. De há meia dúzia de anos a esta parte, foram rareando as "estórias cabralianas", série que chegou quase à centenas de postes.

Fazendo votos para que o "alfero Cabral" ainda tenha forças, saúde, coragem, motivação e o tal "grãozinho de loucura" que dá pica à vida, para publicar o seu prometido 2º volume das "estórias cabralianas" (infelizmente o seu editor também adoeceu, entretanto), republicamos hoje, em dia de festa, um das "pérolas literárias" com que em tempos nos brindou (e que está no seu livro, é a estória nº 17) (...). 



Professor, espero que esteja a passar um bom dia de aniversário celestial e que tenha o descanso merecido por todo o contributo que deu para o ensino e por ter marcado tantas vidas, "tantas almas peregrinas". Sinto-me grata por tê-lo conhecido e por sido sua aluna. Se houver internet aí no céu envie-nos um email para sabermos de si. Beijinhos e um forte abraço

(ii) Mariia Manuel Jácomo

Há dias que não podemos esquecer um amigo virtual...! Para a Eternidade que está toda iluminada e em festa , que chegue esta minha pequena homenagem de Parabéns.
06.11.2022


Oh! Alma peregrina! Hoje é o seu dia Mestre Jorge Almeida Cabral e recordo-o com saudades mas sobretudo por tanto que ficou por dizer e por fazermos Professor.

{ Gritam e vociferam - "Abaixo a Lei! Fora o Direito! Morra o Professor!"
Tento intervir e, nada! O fogo alastra e ardem-me as barbas! Balbucio timidamente - Oh! Almas! O Direito também é uma ciência oculta! }


(iv) Ana Margarida Esteves Candeias

Saudades suas! Um grande beijinho onde quer que esteja. Oh Alma… 


Um grande beijinho para o Céu, querido Professor! Único e insubstituível!!

(vi) Mónica Santos

Podemos não cortar a rua para celebrar a “ressurreição”, como combinado há um ano atrás na festa de aniversário improvisada, mas o eterno professor Jorge Almeida Cabral estará sempre nas memórias e esteja onde estiver certamente estará em festa e a celebrar a pessoa, o docente e as boas memórias que nos deixa a tod@s.



Guiné > Região de Bafatá  > Sector L1 (Bambadinca) >  Missirá > 1971 > Pel Caç Nat 63 > Os furriéis milicianos do "alfero Cabral": da esquerda para a direita, Pires, Branquinho e Amaral, o saudoso Amaral. O António Branquinho é irmão do Alfredo Branquinho, membro da nossa Tabanca Grande.

Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

2. Estórias cabrailanas > Danado para as cúpulas ? 

por Jorge Cabral (1944-2021)


 – Branquinho, eu era danado para as cúpulas ? –  perguntei-lhe um dia destes, porque  habitualmente me socorro da sua memória. 

Ainda há meses, logo depois do almoço da CCS do BArt 2917, em Guimarães, no qual contaram tantas estórias do meu  Missirá, tive de procurar confirmação junto dele. Praticamente eram todas invenções, pois também têm direito…

A esta questão, o Branquinho nem soube responder.

Cúpulas ? Quais cúpulas?

Lá lhe relatei o encontro com o Belmiro, um rapaz dos  Morteiros, que esteve connosco largos meses. Vinha com um cunhado e a certa altura  afiançou-lhe:

Aqui o Alferes era danado para as cúpulas!

Não percebi. Sorri e concordei:

– Pois era !  mas a expressão não me saiu da cabeça.

Danado para as cúpulas? Matutei, matutei e penso que descobri.

Em Missirá, a mesa das refeições servia também de secretária, na qual escrevíamos  as nossas cartas e aerogramas. No início até me pediam para escrever às namoradas. Mas depois da má experiência, documentada na estória “O Básico Apaixonado”, passei a funcionar como uma espécie de Ciberdúvidas [da Língua Portuguesa]:

 – Meu Alferes,   como se escreve isto? Meu Alferes como se escreve aquilo?

Ora, uma tarde o Belmiro perguntou-me:

– Meu Alferes, f…..é com u ou com o?

– Mas para quem estás a escrever? Põe copular, é assim que se diz.

Não sei se seguiu o meu conselho. A carta era para o irmão e certamente o Belmiro  gabava-se das suas proezas sexuais.

Mais de quarenta anos depois deve ter relembrado a palavra.

– Mas atenção,  Belmiro, como  a outra, esta também se escreve com um o.

Bem, aqui entre nós, o ou u não interessa mesmo nada. Até porque é bem melhor de fazer do que de escrever…

Jorge Cabral

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Notas do editr:

(*) Último poste da série > 1 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23754: Efemérides (374): No Dia de Finados, lembremos os/as amigos/as e camaradas que já deixaram a Terra da Alegria, ao longo dos 18 anos de existência do nosso blogue: 127, ou seja, cerca de 15% de um total de 866


(***) Vd.. poste de 6 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22693: Antologia (79): "Alfero Cabral", oficial e cavalheiro... ou o último dos românticos do império (Jorge Cabral, autor de "Estórias cabralianas", 1º volume, 2020)

Guiné 61/74 - P23766: Lembrete (43): É já no próximo dia 12 de Novembro que vai ser lançado o livro de poemas "Palavras que o vento (E)leva", da autoria do nosso camarada José Teixeira, no Centro Cultural de Leça do Balio, às 16h30, com apresentação do Dr. José Almeida da Silva


1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 5 de Novembro de 2022.

Meus bons amigos editores
Abusando da vossa bondade, pedia o favor de, se possível, colocarem esta lembrança no nosso blogue sobre o lançamento do meu livro de poesia.
Junto um poema que pode ser incorporado.

Fraterno abraço do
zé teixeira



O mundo em que vivemos

Gostava de saber quem sou,
Saber de onde venho,
Conhecer o caminho para onde vou.
Ser eu, ser livre…
E não sou,
Poder falar, gritar, chorar,
Sorrir, brincar…
Pensar…
Pensar e agir…
Agir em consciência, sem pressões ou constrangimentos,
Nem julgamentos.
Mas a minha vida parece um circo…
Apresento, represento, faço vénias, sorrisinhos
Aparento…
Aparento o que não quero, e não gosto de ser!
Sim. Sou um macaquinho de imitação,
– Para não cair no ridículo…
– Para que me deem atenção.
Tenho ideias,
Grandes ideias…
Talvez… pequenas, sábias, inconsistentes
Talvez incongruentes,
Concretas, porque não?!
São ideias, propostas, projetos, sonhos, opiniões
Fantasias, devaneios, aspirações…
Crivadas!...
Crivadas pelo medo da ambiência.
O crivo da sociedade critica, abafa, empurra…
Isola, manieta, exclui…
Destrói…
Em lume brando… lenta paciência.

Desde o nascimento me ensinaram que não vivo sozinho
Vivo com eles e para eles…
Vivo para o sistema!
Prá sociedade que me dá tudo e nada,
A sociedade que me condena
Se não faço o que ela me ordena
E não me deixa ser quem sou…
E de tão subtil que é,
Neste circo animado,
Conduze-me por caminhos que não os meus,
E eu sigo-a como um camelo amestrado.


José Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23701: Lembrete (42): Amanhã, dia 13 de Outubro, pelas 17h00, apresentação do livro "Rua do Eclipse", de Mário Beja Santos, a levar a efeito no Salão Nobre do Palácio da Independência, Largo de São Luís, em Lisboa

Guiné 61/74 - P23765: Dando a mão a palmatória (34): nas nossas cartas militares, na escala de 1/50.000, cada centímetro corresponde a 500 metros... (e não a 1 km)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá >  Setor L1 (Bambadinca) > Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Nhabijões, Mero e Santa Helena, três tabancas consideradas, desde o início da guerra, como estando "sob duplo controlo", ou seja, com população (maioritariamente balanta) que tinha parentes no "mato" (zona controlada pelo PAIGC)... Em Finete, Missirá e Fá Mandinga havia destacamentos nossos. Entre Bambadinca e Fá Mandinga ficava Ponta Brandão. Havia aqui uma destilaria, de cana de acúcar... Bambadinca era sede de posto administrativo e tinha correios, telégrafo e telefone, além de um posto sanitário ("missão do Sono")... Era, além disso, um importante porto fluvial. Era banhado pelo caprichoso Rio Geba (ou Xaianga). Até 1968 as LDG da Marinha chegavam até lá... Depois, já em 1969, ficavam-se pelo Xime... De Bambadinca a Bafatá (cerac de 30 km) a estrada era já alcatroada...no meu tempo (1969/71). (LG)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).







Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

1.  Já aqui deixámos expresso por escrito, mais do que uma vez, a nossa admiração por (e prestámos a nossa homenagem a) os nossos cartógrafos militares a que devemos as extraordinárias cartas da Guiné Portuguesa dos anos 50. 

Não brincavam em serviço, esses nosso cartógrafos, e é bom que se diga que prestaram um alto serviço científico e cultural ao povo da Guiné-Bissau, cartografando ao milímetro todas aquelas terras, ilhas, ilhotas, rios, mar, braços de mar, lalas, bolanhas, tabancas, savanas arbustivas, florestas-galeria, palmeirais...,  do Cacheu ao Cacine, de Bolama a Buruntuma, de Varela ao Como... Ainda hoje estas cartas são uma preciosidade.  E, para nós, amigos e camaradas da Guiné, foram e continuam a ser um extraordinário auxiliar de memória... Já há muito que nos teríamos perdido nos labirintos de memória sem estas cartas geográficas, disponíveis "on line", com grande resolução, no nosso blogue...  

Agora  o que os nossos cartógrafos, se ainda fossem vivos, nunca nos perdoariam é aquela calinada de dizer que  na escala de 1 / 50.000 um centímetro na carta corresponde a um quilómetro (*)... 

Felizmente, o meu amigo e camarada António Duarte, da CCAÇ 12, da "3ª geração" (Bambadinca e Xime, 1973/74) estava atento e topou o erro, ou não fosse ele bancário e economista: se um quilómetro corresponde a 1000 metros e cada metro tem 100 cm, 100 mil centimetros (ou seja, um quilómetro) a dividir por 50 mil são 2... centímetros! 

Não é preciso um gajo ser licenciado, mestre ou doutor para saber (e poder) fazer estas contas de cabeça!

2. Fica aqui a emenda do erro que é de palmatória!... Dou, humildemente, a mão à menina dos cinco olhinhos... como no meu/nosso tempo da instrução primária (**). 

Dito isto, não é demais realçar que as cartas da antiga Província Portuguesa da Guiné são de uma enorme  riqueza documental, em termos geográficos, E cada centímetro de papel é um passeio de 500 metros por aquelas terras onde destilámos "sangue, suor e lágrimas"... de quem guardamos algumas boas recordações da sua sua boa gente.

Nunca é demais lembrar que, sessenta / setenta anos depois,  estas cartas permitem-nos, por exemplo,  saber hoje coisas espantosas como: 

  • quais as tabancas que existiam antes da guerra (e ver depois as que foram abandonadas ou destruídas); 
  • qual o número médio aproximado de moranças ou casas (cada ponto correspondendo em geral a uma morança); 
  • as tabancas temporárias e as abandonadas;
  • as povoações "de tipo europeu" e as "indígenas" (e dentro destas, as "cerradas" e as com "arruamentos" definidos);
  • conforme o tamanho maior ou menor da letra dos topónimos, distinguir as povoações "indígenas" com mais de 50 casas, as entre 50 e 10, e as menos de 10;
  • o regulado a que pertenciam;
  • as que eram sede de circunscrição (equivalente ao nosso concelho, caso de Bafatá) e as que eram sede de posto administrativo;
  • as que, de categoria inferior a sede de circunscrição, tinham serviços de correio, telégrafo e telefone (caso de Bambadinca) e, nas fornteiras, serviços alfandegários;
  • mas também localizar as bolanhas (arrozais de regadio), as lalas (capinzais)  (de água doce e água salgada, com ou sem tufos de palmeiras), os mangais,   as florestas-galeria, as savanas arbustivas, as terras incultas... 
  • os diferentes tipos de palmeiras e palmares: palmeira-de-tara (Phoenix reclinata); palmeira de dendém (ou azeite), conforme a sua densidade: massiços consideráveis ou não desbravados; palmares desbravados com culturas diversas; 
  • mas igualmente as "pontas" (ou hortas) (que em geral eram exploradas por cabo-verdianos e europeus, e que tinham o nome do dono ou fundador: Ponta do Inglês, Ponta João Dias)... 
  • e ainda calcular distâncias entre duas povoações, por estrada ou em linha recta; estimar a largura de um rio ou o comprimento de uma bolanha...
Tudo isto, afinal,  feito ainda "no bom tempo" (anos 50 do séc. XX), ou seja, antes do vendaval da guerra em que desaparecem regulados inteiros ou em parte (alguns eu conheci: Xime, Bissari, Badora, Cossé, Corubal, Enxalé, Cuor, Mansomine, Oio,  Joladu, Ganado, Padada...) e foram abandonadas ou destruídas muitas e muitas dezenas (senão não algumas centenas) de povoações (por exemplo, ao longo da bacia do rio Corubal)... para não falar de regiões inteiras, como a de Quínara e a de Tombali, no sul (que eu só vim a conhecer depois da guerra)...

Tiro o quico, bato a pala, aos nossos valorosos e competentes cartógrafos militares. E peço, mais uma vez, desculpa pelo meu... dislate. (LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 

4 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23761: Voltamos a recuperar as antigas cartas da província portuguesa da Guiné, um dos recursos mais preciosos do nosso blogue - Parte IV: De Quinhamel a Xitole