Cerca de um mês depois houve ordem para recolher os pelotões que se encontravam nos destacamentos. A nossa companhia [a 1ª CCAÇ] tinha dois pelotões, um em Porto Gole e outro em Susana.
A minha viatura, depois de descarregada, ficou preparada para fazer parte da coluna com destino a Susana [na região de Cacheu] . Partimos por volta das 08h30, andámos todo esse dia e toda a noite, debaixo de chuva torrencial, numa estrada difícil e lodosa, que exigia muita perícia e um andamento muito cauteloso.
De Farim até Bigene e Barro a estrada não estava muito mal, o pior foi depois, os carros patinavam e atascavam-se a toda a hora.
Quando chegámos a Susana, às 4h00 da madrugada, o pessoal já estava cansado de tanto esperar. Tivemos que carregar tudo rapidamente e por volta das 6h00 iniciámos o regresso a Farim.
Quando passámos pelo Ingoré, vi o alferes Almeida algo preocupado. Andava a ver se arranjava qualquer coisa para dar de comer ao pessoal que estava faminto, já que não comíamos nada desde que tínhamos saído de Farim. Vi-o regressar de mãos vazias. Compreendemos e resignámo-nos, não havia outro remédio.
Para acrescentar, a jangada estava avariada e tivemos que aguardar até às 19h00, que foi quando ficou pronta. Atravessámos o rio [Cacheu , seguimos para Bula, onde chegámos à noite, por volta das 21h00.
Aqui, o alferes ganhou esperança em encontrar comida. Mas, tal como no Ingoré, veio com as mãos a abanar. Não havia nada a fazer e pusemo-nos a caminho de Binar e Bissorã. Em Binar, nem parámos, só quando chegámos a Bissorã descansámos, já passava das 3h00 da madrugada.
Refeitos, prosseguimos, primeiro para o Olossato e depois para o K3 e aqui o alferes recebeu uma mensagem para rumar para Mansabá, onde nem parámos e depois para Mansoa.
Desde Susana, trazia de reboque um Unimog “gripado”. Em Mansoa ficámos a aguardar o pelotão que vinha de Porto Gole [1].
Quando chegaram de Porto Gole as duas viaturas, um jipe e um Unimog, a coluna pôs-se finalmente em marcha de regresso a Farim.
Bricama, uma tabanca de pouca confiança
Na tabanca de Bricama, viviam homens válidos para pegar em armas. O comandante da 1ª CCaç, um capitão cujo nome não recordo, era uma pessoa já com certa idade, tratava-me por cunhado, entendeu entregar ao chefe da tabanca dez armas Mauser, para a autodefesa da tabanca. E se tudo corresse bem estava na intenção de entregar, mais tarde, espingardas G-3.
Um mandinga, chamado Malan Injai, também conhecido por Manjai, andava, de tabanca em tabanca, a vender cola e aproveitava para colher informações, que depois passava à tropa. Um dia disse que a tabanca de Bricama não era de confiar e a tropa decidiu recolher as armas.
Um certo dia, Malan Injai entrou no quartel exausto e com ar de sofrimento. Apresentou-se ao oficial de dia e mostrou-lhe as costas em chagas provocadas por chicotadas que lhe tinham dado na mata de Bricama, onde fora preso por uma patrulha do PAIGC, que o acusou de prestar informações à tropa.
Depois de aprisionado e apresentado ao chefe e à população da tabanca, como informador da tropa e traidor, foi levado para um acampamento, onde foi julgado e condenado à morte, por fuzilamento, quando amanhecesse.
Felizmente para o Malan, no grupo que o prendeu, havia um patrício dele que se condoeu e o soltou por volta da meia-noite. Malan pôs-se em fuga e caminhou na mata até Farim, onde chegou mais morto que vivo. Muito emocionado, relatou tudo o que tinha acontecido.
Quando Malan se apresentou ao capitão da 1ª CCaç, em Farim, este, prudentemente, optou por recolher as Mausers que estavam em poder do chefe da tabanca de Bricama.
Para o efeito encarregou o alferes Almeida, do esquadrão de Bafatá [2], para executar a diligência no dia seguinte, na qual eu também participei.
Chegados à tabanca de Bricama fomos acolhidos por pouca gente, ao contrário das outras vezes. O alferes perguntou pelo chefe da tabanca. Veio um filho que informou que o pai se tinha deslocado a Farim, chamado pelo administrador.
– E onde estão as armas?
– Não posso mostrar. Quando o meu pai sai, fecha a casa e leva as chaves com ele.
– Por onde passou o teu pai? Não o vimos no caminho!
– Nós costumamos seguir a corta-mato, que é mais rápido.
Perante esta resposta e como não convinha demorar, o alferes resolveu regressar. Chegados a Farim, fomos directamente à casa do administrador, que informou o alferes Almeida de que o chefe da tabanca tinha ido a casa de Braima Baio, chefe da tabanca de Farim, e que desconhecia se ele ainda regressava naquele dia a Bricama ou se dormia em Farim. O administrador prontificou-se a enviar o motorista a casa de Braima, no bairro de Morocunda, incumbindo-o de trazer o chefe da tabanca, caso ele lá se encontrasse, o que não sucedeu. O motorista, quando regressou, disse que o chefe já tinha regressado à tabanca. E o alferes Almeida prontamente deu a informação ao nosso comandante.
No dia seguinte, de manhã, voltámos a Bricama e encontrámos o chefe da tabanca. Após os cumprimentos, o alferes quis saber dos motivos que o tinham levado a Farim, a casa do administrador, ao que ele respondeu que era devido ao atraso nos pagamentos do imposto. E o alferes continuou:
– Viemos cá, para falarmos sobre esta questão: o chefe tem entre 60 a 80 homens aptos a usarem armas. E, dentro de algum tempo, nós vamos receber mais armas. Assim temos que recolher todas as Mausers, que estão à sua guarda, a fim de serem substituídas por G-3, que são muito superiores. E, logo que seja possível, entregaremos mais algumas.
De imediato, o chefe da tabanca dirigiu-se a casa e, pouco depois, surgiu com nove armas.
– Não são nove. Pela relação que tenho, são dez Mausers!
A arma que faltava tinha já sido recolhida pelo cabo da arrecadação, uma vez que se tinha verificado anteriormente que a arma não estava em condições. Resolvida a questão, regressámos a Farim.
Os dois primeiros ataques do PAIGC a Farim, no 2ºseemstre de 1963
Quatro ou cinco meses depois de ter sido transferido para Farim, a 1ª CCaç deslocou-se numa coluna de quatro viaturas, à serração de Carés, que ficava perto de Fajonquito, na linha da fronteira com o Senegal. [Carés, topónimo que não existe, mais provavelmente trata-se de Caresse]
Quando chegámos arrumei o meu carro junto de outras viaturas. Na minha viatura vinham soldados africanos, nas outras que me seguiam vinham soldados africanos e europeus, que pertenciam ao esquadrão de Bafatá e que estavam destacados na 1ª CCaç, em Farim.
Quando acabámos de estacionar, fui surpreendido por uma voz conhecida. Era o 1º cabo Eurico.
– Eh, pá, não há como na tropa! Um dia separámo-nos em Cacine, junto à fronteira com a Guiné-Conakry, nunca pensei voltar a encontrar-te na Guiné quanto mais neste local, junto à fronteira com o Senegal!
Chamou os colegas [3], fizemos uma grande festa e perguntei onde estavam agora colocados.
– Em Canhamina – responderam. [
Canhamina ,a
seguir a Fajonquito, a nordeste, já na carta de Tendinto, que nos falta].
Pouco tempo depois, Carès passou a ser terra de ninguém. Num dia, o proprietário da serração, temendo ser atacado, comprou armas e munições para a defender. Mas não resistiram ao ataque do PAIGC. O dono da serração morreu no local e a serração fechou e foi transferida para Bafatá, para um local perto da minha casa [4].
Estava uma noite de luar. Eu tinha-me deslocado ao bairro de Sinchã e estive a divertir-me com alguns colegas. Com a noite já adiantada, resolvi regressar ao quartel. No caminho, quando estava a chegar ao bairro de Nema, vi o pelotão de milícias formado à porta do régulo Made Sissé. Estavam a preparar-se para se dirigirem para os locais de vigilância à segurança do bairro. Passei por eles, sem me dirigir a ninguém, pois estava com pressa de chegar ao quartel, que não ficava a mais de meio quilómetro.
Uns metros andados fui surpreendido por barulho de tiros e de rebentamentos, que me pareceram atingir toda a vila.
– Mas que é isto? – interroguei-me, espantado, sem saber bem o que fazer.
Se tentasse deslocar-me para o quartel, algum militar que me visse a aproximar, baleava-me logo. Por outro lado não me parecia que regressar ao local de onde tinha partido, fosse uma boa solução. As milícias armadas tinham-se espalhado pelo bairro e o perigo para mim era o mesmo. Agachei-me, colei-me ao chão, a pensar no que havia de fazer. O fogo abrandou e a correr alcancei o bairro de Mancanha, já muito próximo do quartel. Vi uma casa e abriguei-me na varanda. O tiroteio recrudesceu e eu bati à porta.
– Quem é?
– Abra a porta!
– Não!
– Se não abrir, vou ter que arrombar!
– Tenho medo!
– Não tem que ter medo, sou militar!
Vendo a porta aberta, entrei precipitadamente, fechei-a e fiquei com a chave na mão. Era um velho que vivia sozinho.
Desconfiados, mantivemo-nos algum tempo a olhar um para o outro. Não me sentia confiante no meu companheiro e, por isso, resolvi não dormir, embora os olhos se me quisessem fechar. Não o deixei sair, nem para urinar, permaneci toda a noite sentado e só resolvi sair, quando as armas se calaram, o que aconteceu por volta das 5 da manhã. Entreguei-lhe a chave, mostrando-lhe que, em mim, não havia qualquer má intenção, apenas queria abrigar-me do tiroteio.
Dirigi-me a um posto de vigilância, próximo dos Correios, e aguardei a viatura que estava a recolher os vários militares dispersos pelos postos de vigilância.
Quando cheguei ao quartel, viviam-se os momentos habituais depois de um ataque. Cada um falava e contava como tinha sido. Emoções e lembranças surgiam a cada passo. As recordações do acontecido duraram poucos dias. Mas estávamos certos que o 1º ataque, de que houve memória, do PAIGC a Farim se iria repetir.
Uma semana depois da recolha das armas em Bricama, o nosso comandante entendeu estar na altura de ver como a população da tabanca estava a reagir. A minha GMC, carregada de soldados, abria uma pequena coluna de quatro viaturas. Íamos com destino a Bricama, uma localidade atravessada por um ribeiro com muita água e sobre o qual havia uma ponte de troncos de palmeiras.
A tabanca estava na outra margem, a pouco mais de 50 metros. Quando nos aproximámos da ponte, foi com surpresa que verifiquei que tinha sido queimada.
– Siga, continua – gritou-me o alferes Almeida.
– Então e a ponte, meu alferes?
Vendo-me parado a olhar para os restos calcinados da ponte, avançou com o jipe.
– Toca a saltar cá para baixo, menos os condutores – ordenou.
Verificando que a travessia não se podia fazer, mandou o pessoal embarcar novamente e regressámos a Farim.
Esta foi a última saída a Bricama e também o adeus à população da tabanca, que julgávamos nós estava libertada da influência do PAIGC. A partir deste acontecimento, redobrámos a vigilância, as vias de acesso a Farim passaram a ser mais controladas e tivemos consciência que a zona de Farim estava a entrar numa nova fase da guerra.
Não ficámos muito admirados, quando dias depois, Farim voltou a ficar debaixo de fogo. Não foi tão violento, nem tão prolongado como o primeiro. Não houve vítimas do nosso lado, do outro não sei. Também desta vez, me encontrava fora do quartel, estava de serviço aos Correios.
(Continua)
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Notas do autor:
[1] Da CCaç 413, comandado por um alferes que me disseram mais tarde ser sobrinho do Brigadeiro Arnaldo Schulz, nomeado Governador-Geral em 29 março de 1964, quando eu me encontrava ainda em Farim.
[2] ERec 385
Do Pel Caç 870
Depois de 25 de Abril de 1974 a serração acabou por ser abandonada.
[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos / parênteses rectos, com ntas adicionais, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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