quarta-feira, 23 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3087: Memória dos Lugares (11): Gadamael, CART 2410, 1968/69, Parte II (Luís Guerreiro, Montreal, Canadá)


Luís Guerreiro
Ex-Fur Mil
CART 2410 e Pel Caç Nat 65
(Gadamael e Ganturé,
1968/70) (1)






(Continuação)


1. Fotos enviadas pelo Luís Guerreiro, que vive desde 1971 no Canadá, em Montreal. Entrou em Março último para a nossa Tabanca Grane. Foi Fur Mil no 4.º Grupo de Combate da CART 2410, sob o comando do Alf Mil Jerónimo. Mais tarde esteve no Pel Caç Nat 65. Esteve em Gadamael e Ganturé entre Outubro de 1968 e Junho de 1969.


Leu no nosso blogue o relato do José Rocha sobre o ataque da nossa aviação a Sangonhá. Confirma o que se passou nesse dia 6 de Janeiro de 1969:

"Eu sofri esse ataque em Ganturé, pois era o meu Grupo de Combate que estava lá e era comandado pelo Alferes Jerónimo. Estava ainda no meu quarto nessa manhã de 6 de Janeiro, quando o ataque começou por volta das 8 horas. Corri e comecei a fazer fogo com o morteiro 81, passados uns minutos o ataque parou, deu-me tempo para ir tomar o pequeno almoço pois pensei que tudo tinha acabado" (...) (1).


Foto 1 > Último almoço do 4.º Gr Comb da CART 2410, em Ganturé

Foto 2 > 4.º Gr Comb da CART 2410, em Ganturé

Foto 3 > Uma das ruas principais de Gadamael

Foto 4 > Gadamael, com o mastro da bandeira ao fundo

Foto 5 > Gadamael, abrigo do morteiro 81, em plena tabanca

Foto 6 > Cruzamento de Guileje, coluna de Gadamael, transporte do obus 11.4, em 19 de Março de 1969

Foto 7 > Coluna para Guileje, 19 Março de 1969

Foto 8 > Coluna, subida depois do cruzamento, 19 Março de 1969

Foto 9 > Coluna de 19 Março de 1969, obus 14 existente em Guileje

Foto 10 > Guileje, granadas do obus 14.

Foto 11 > Guileje, junto ao obus 14, eu e o Furriel Mourato (já falecido).

Foto 12 > Visita do general Spínola a Gadamael; em T-shirt branca, o nosso capitão Amilcar Cardigos .

Foto 13 > Visita do general Spínola às novas moranças [reordenamento] (2), de Gadamael.

Foto 14 > Cais de Gadamael, eu e o alferes Jerónimo

Foto 15 > Gadamael, furriéis da Cart 2410 e do Pel Fox 2085, comendo ostras, com umas cervejas a acompanhar

Foto 16 > Gadamael, Messe de Sargentos

Fotos e legendas: ©
Luis Guerreiro (2008). Direitos reservados (3)

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Notas de CV:

(1) Vd. poste de 18 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2663: Tabanca Grande (58): Luís Guerreiro, ex-Fur Mil da CART 2410 e Pel Caç Nat 65 (Ganturé, 1968/70)

(2) Vd. poste de 2 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3013: Reordenamentos (1): Gadamael, o primeiro, na sequência da retirada de Sangonhá e Cacoca em meados de 1968 (António Costa)

(3) Vd. também poste de 23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3086: Memórias dos Lugares (10): Gadamael, CART 2410, 1968/69, Parte I (Luís Guerreiro, Montreal, Canadá)

Guiné 63/74 - P3086: Memória dos Lugares (10): Gadamael, CART 2410, 1968/69, Parte I (Luís Guerreiro, Montreal, Canadá)

Luís Guerreiro, Ex-Fur Mil, CART 2410 e Pel Caç Nat 65 (Gadamael e Ganturé, 1968/70 )












Guiné >Região de Tombali > Gadamael - Porto > s/d > Tabanca, reordenada pelas NT.
Foto: Autores desconhecido. Álbum fotográfico Guiledje Virtual.
Gentileza de: © AD -Acção para o Desenvolvimento (2007).


(Continua)

terça-feira, 22 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3085: Convívios (77): Pessoal da 3.ª CART/BART 6523, 9 de Setembro de 2008, Vilar do Pinheiro, Vila do Conde (Américo Marques)


Estandarte da 3.ª CART/BART 6523, Nova Lamego, 1973/74, cuja divisa era Honra e Dever.



1. No dia 15 de Julho, recebemos do nosso camarada Américo Marques, ex-Soldado de Transmissões da 3ª CART/BART 6523, com sede em Nova Lamego (Gabu), destacado em Cansissé (Julho de 1973 / Setembro de 1974) (1), uma mensagem dando conta do próximo Convívio da sua Companhia:


Boa tarde Caro Luis Graça! Depois de longa ausência, envio um contributo! Ou estou enganado? E este símbolo já te foi enviado? De qualquer modo, é-me grato dar notícias (do alto da montanha de Stª Luzia).

Agora, que estou perto de me reformar (43 anos de contribuição), poderei com mais facilidade enviar qualquer contributo para a nossa obra de História Humana e estórias. Pois quem conta histórias, mesmo sem H, pratica o bem. Por conseguinte, como fundador que foste de tal empreendimento, envio-te os meus aplausos a esta iniciativa, de elevado sentido emblemático, no espaço e no tempo!

Data do Convívio: 6 de Setembro de 2008

Ponto de Encontro: Igreja de Vilar do Pinheiro, Vila do Conde

Hora: 09h30m

Local do Almoço da 3.ª CART/BART 6523: Quinta das Silveiras, Vilar do Pinheiro – Vila do Conde

Missa às 11 horas na igreja de Vilar do Pinheiro

N.º dos telefones dos Organizadores: 223755339 / 938011596

Cumprimentos,
Américo

___________

Nota de Carlos Vinhal:

(1) Vd. postes de:

27 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1705: Em 25 de Abril de 1974 eu estava lá (1): Em Cansissé, região do Gabu (Américo Marques, 3ª CART do BART 6523)
8 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P946: Destacado no Gabu, em Cansissé, de Julho de 1973 a Setembro de 1974 (Américo Marques)
23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P901: De Viana do Castelo a Cansissé (Américo Marques)
21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P891: Recordando o Xime do Sousa de Castro (A.Santos)
12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)

Guiné 63/74 - P3084: Poemário do José Manuel (21): O recordar dos sentidos: como é bom ver, sentir, ouvir, cheirar, saborear, falar...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Vista aérea de Quebo (Aldeia Formosa)" (JML)...

De acordo com o Antero Santos, Aldeia Formosa tinha uma pista de aviação asfaltada. E dali seguiam duas estradas, também asfaltadas: (i) uma que passava por Áfia, Mampatá, Uane, Nhala e terminava em Buba, numa extensão de cerca de 40 Kms; construída em 72/73, estava totalmente alcatroada; e (ii) outra que partia de Mampatá em direcção a Nhacobá, passando por Ieroiel, Colibuia, e Cumbijã, que em Junho de 1973 já estava totalmente construída numa extensão de 14,2 kms (até Cumbijã); possivelmente em Janeiro de 1974 já estaria em Nhacobá...

O Antero Santos foi Fur Mil Atirador/Minas e Armadilhas, CCAÇ 3566 (Março a Dezembro de 1972 – Empada; CCAÇ 18 – Janeiro 73 a Junho 1974 – Aldeia Formosa ou Quebo).

Foto e poema © José Manuel (2008). Direitos reservados.

O recordar dos sentidos (1)
Como é bom ver
as flores das amendoeiras
as cerdeiras (2) a florir
as flores das laranjeiras
as vinhas a rebentar
as flores dos pessegueiros
e as rosas do quintal
como é bom ver

como é bom sentir
o tacto duma pele macia
debaixo da nossa mão
o aconchego duns seios
para matar a solidão
como é bom sentir

como é bom ouvir
quem nos faça sorrir
o som da água a correr
o vento a soprar nas canas
como é bom ouvir

como é bom cheirar
o doce aroma do mosto
que se solta do lagar
ou o cheiro do fumeiro
naquela lareira a secar
como é bom cheirar

como é bom saborear
uma sopa quente do pote
uma sardinha na brasa
ou carne fresca a grelhar
como é bom saborear

como é bom falar
numa roda de amigos
ou num serão ao luar
cantar canções e poemas
até a noite acabar
como é bom falar

Mampatá 1973
josema (3)
________

Notas de L.G.

(1) Vd. poste anterior desta série > 9 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3039: Poemário do José Manuel (20): Mãe, se eu não regressar, lembra-te do meu sorriso...

(2) Na região de Entre Douro e Minho, cerdeira é sinónimo de cerejeira...Este regionalismo não vem no grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa...

(3) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

GUiné 63/74 - P3083: Os Nossos Regressos (12): Vagabundo e os outros fantasmas dos Lassas que lá ficaram na Região de Tombali (Mário Fitas)

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS do BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Vila >Foto 36 > "Militares [?] na esplanada do Bar Catió, em fundo, a casa do Sr. José Saad e as lojas deste".

Foto e legenda: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Mário Fitas, com data de 5 de Julho: (Recorde-se que o Mário Fitas - de seu nome completo, Mário Vicente Fitas Ralhete, - foi Fur Mil da CCaç 763, connhecida pelo nome de guerar Os Lassas, Cufar, 1965/66; natural de Elvas, é autor de dois livros sobre a guerra colonial da Guiné, misto de memórias e de ficção; criador de uma notável personagem, uma mulher guineense, balanta, exemplo de grande coragem e dignidade, a quem ele deu o nome de Pami Na Dondo) (1).

Assunto - Os nossos regressos!


Caro Luís:

Tenho dúvidas se esta minha ideia se coaduna com o tema. Mas julguei ser o momento próprio, para prestar homenagem a três Homens (Irmãos). Eu e eles sempre estivemos juntos. Dois já partiram mas deixaram muito: Luís Manuel Tavares de Melo –Açores, Micaelense de Raça; António Pedro dos Santos Garcia Lema - Matosinhense (de quem a minitertúlia lá de riba se pode orgulhar) não só como Homem, mas pelo que a Pátria lhe pôs no peito.

O outro, Francisco José Gameiro Pedrosa, um homem da Vieira de Leiria, amigo comum, julgo eu, meu e do Joaquim Alves Mexia. Vamo-nos telefonando e encontrando conforme as oportunidades.

Por eles, vai muito da vontade com que humildemente participo no Blogue.

Caro Luís, Briote e Vinhal para vós e toda a Tabanca, aquele abraço de sempre do tamanho do Cumbijã!

Mário Fitas





Capa do livro de Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra (2000).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Transcrição do livro Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente > Capítulo XV- Adeus à Guerra

Fixação do texto: L.G.


A 10 de Novembro de 1966, completamente rota, a CCAÇ 763 começa a ser rendida para regressar a casa. Os primeiros dois grupos de combate partem para Catió, no dia em que é inaugurada oficialmente, pelo Rev Capelão do Batalhão, a Capela construída exclusivamente por elementos da CCaç. Assiste à cerimónia a maioria da Companhia. O restante pessoal seguirá dois dias depois.

Não sabemos quando embarcaremos, mas já estamos desarmados. Resta saber se ainda vamos para Bissau, ou como será?...

Finalmente sabemos que as lanchas nos vêm buscar no dia 18 e que faremos a viagem directamente para o barco, que mais tarde viemos saber, ser o “Niassa”.

Bem nos fornicaram! Tiraram-nos tudo e, para não recordarmos, nem um bibelô de madeira ou outra bugiganga qualquer de missanga podemos adquirir. Temos de nos cingir ao mercado de Catió onde os preços sobem em flecha imediatamente. Compram-se alguns tapetes pelo dobro e triplo do preço normal, ficando os militares desorientados sem saberem o que levar para pais, esposas, familiares e amigos.

Vão eles! Que melhor recordação se pode levar? Foi a melhor prenda que Francisca Fitas e António Vicente receberam: o regresso de seu filho.

O regresso de uma guerra é fim de drama que geralmente ocasiona problemas. Os soldados, festejando o regresso à sua terra natal, e desfazendo-se dos “pesos” que não lhe servirão para nada, encharcam-se e esgotam os stocks de cerveja e whisky.

São bebedeiras colossais! Começamos a tentar controlar, não vá haver problemas. Os soldados não largam a casa da Libanesa, e pressente-se que vai haver bronca. Felizmente as coisas não correram muito mal, uma dezena de blenorragias e embarcamos em Catió directamente para o “Niassa”.

Nas lanchas que transportam o pessoal, há um misto de alegria e tristeza, reflexo do estado de espírito que antecede os grandes momentos. Incrédulos, os soldados olham-se num sonho de abandono ou retorno à guerra?!

Vagabundo vai olhando para as margens com o tarrafe e a floresta, entrando rio dentro em maré cheia. A Natureza pode agora ser admirada na sua plenitude, e verificar-se como é linda esta terra.

África! Mistério! Tu que prendes o homem e o fazes ligar-se por um feiticismo indefinível, fazendo-o sentir uma atracção especial por esta terra!... O Sol esconde-se e podemos continuar apreciando-te sob o teu feiticeiro luar como se dia foss, todas as tuas estranhas e selvagens belezas.

Embalado pelo ronronar do barco, o furriel Vagabundo puxou por um cigarro, e deixou-se escorregar suavemente, e o seu cérebro começou deambulando no sonho ou realidade!?

Vagueando a sua mente navegou a seu belo sabor.
........

Vagabundo está encarcerado nas paredes da sua prisão, com falsas janelas e portas, símbolos de ilusões e indefinidas perspectivas. Está encarcerado nos seus limites, sendo um homem completamente livre. A sua alma está tão ligada à de Tânia que não necessita dela só para se abrir, mas mais… muito mais para existir. Mas vê-se caminhar só, numa turbulência de sobe e desce. O vazio escurece-lhe a alma e desce mais do que sobe.

No amolecimento deslizar da lancha, encostado ao saco de lona verde, sente-se livre da Guerra, mas… olhando para as suas mãos, estas apresentam-se sujas de sangue, vazias, cheias de nada. Nestes últimos anos tudo tentou, mas nada encontrou. Maria de Deus? Não! Apenas a dor e a Guerra! Quem o ajudará a encontrar a tão necessária estabilidade de que tanto carece? Puxa novamente outro cigarro instintivamente, sem o pensamento se lhe ir. Se ao menos uma companheira, amante e amiga, lhe estendesse a mão e apenas pronunciasse:
- Vem! O tempo é agora todo nosso, repousa no meu ombro, e varre da mente toda a lama da Guerra!

Não, não será assim! Apenas sua paciente mãe Francisca o ajudará e sofrerá a sua recuperação de homem, esquecendo a máquina de guerra em que se transformou.

Se a morte existisse neste momento, a união seria perfeita. Há duas coisas que merecem ser desejadas: o impossível e a realidade, mas sente-se por desconhecimento, desejo do impossível.

A fama da Guerra na Guiné alastrou cedo entre os militares e não só! Ao próprio Povo incógnito também chegou essa informação, como ao tio Chico da Camioneta. Só quem não queira, se faz ignorante de que a simples mobilização para a Guiné era condenação pura próximo de vinte e dois, ou vinte e três meses de apodrecimento, enraizados na lama das bolanhas, pântanos, e rios de maré, piores que quatro anos de meio barril às costas, subindo a ladeira da Fonte do Marechal ao Forte da Graça em Elvas!...

Resta, após a partida, o desejo que o regresso não seja entre tábuas, de muletas, carrinho de rodas ou completamente cacimbado.

Só quando se chega à Guiné, se conhecem os nomes assombrados das matas do Cantanhez no sul e do Oio-Morés no norte. Recordando, o furriel faz mais uma vez a comparação das matas com a solidão.

Solidão!... Degradação de existência não compartilhada!... Dementação de espírito que se destrama no escorregadio carreiro da mata, inspirando o seu nauseabundo odor a morte. Neste estádio, apenas as figuras sombras dos companheiros da frente, e a pressentida presença dos que nos precedem. Momentos cruéis de stress, sentindo olhares de seres invisíveis trespassando-nos em minuciosa tomografia computorizada, esperando o momento ideal para clicarem o botão (gatilho) que nos queimará a carne.

São estes os momentos em que a mente, em louco desprendimento, se desapega do corpo e vagueia em sonhos de realidade distante. Mortificando, são estes os momentos que nos trazem os mais excêntricos pensamentos da vivência existida e daquela que é túnel escuro do amanhã que se espera...

Cansado o guerreiro, esgotado o cérebro, o homem duro adormeceu. Vinte e quatro anos! Quanto pesarão estes dois últimos dois na sua vida!?...

Chegada a Bissau, ao princípio da tarde do dia seguinte. Há que embarcar e distribuir o pessoal pelas camaratas _colchões colocados nos porões. Os oficiais e sargentos ocuparão os camarotes. O “Niassa” largará na maré cheia que acontecerá pela madrugada. Os oficiais e sargentos, que não estejam de serviço, são autorizados a sair até à meia noite impreterivelmente.

Chico Zé, Vagabundo, Jata e António Pedro saem juntos e abancam no Tropical. Camarão de Quinhamel, ostras e cerveja até encharcarem. Fartos como brutos, bêbedos que nem cachos, cada um sonha com a chegada a Lisboa. Próximo da meia noite, António Pedro, já amparado por Chico Zé e Jata, sobem as escadas do "Niassa", mas o peso de António Pedro é cada vez maior. Vagabundo, a meio das escadas, manda sentar o pessoal e diz para Chico Zé:
- Porra! Não cantamos um fado à despedida desta Terra? - Silêncio! Os camaradas não respondem.
- É, cambada!... ninguém diz nada, cabrões?... Senão falam então ouçam a minha Florbela! (2)

Parecendo que o álcool lhe tornava a voz suave e profunda, recitou:

"Almas de Vagabundos
Onde há charcos e lagos
Pântanos e lamas…
Onde se erguem chamas
Onde se agitam mundos,
E coisas a morrer…
E sonhos… e afagos…

Almas sem Pátria,
Almas sem rei,
Sem fé nem lei!
Almas de anjos caídos,
Almas que se escondem para gemer
Como leões feridos!”


- Merda! Já acabou tudo!?... Amen!

Jata pede a Vagabundo que dê uma ajuda, este estende o braço mas escorrega e cai para dentro do portaló. Dois vultos indefinidos rolam no escuro pelas escadas do "Niassa". Um mergulha nas águas do Geba, o outro dilui-se.

Silêncio absoluto. Nenhum marinheiro gritou:
- Homem à água!...

Na sua voz pastosa e alcoolizada, António Pedro perguntou:
- O Queeee… foooi?

Calças de Palanco, agora já em pé, respondeu:
- Foi o Mamadu que não quis abandonar a sua terra e preferiu ficar nas águas e lama do Geba!
- Que fique em paz na lama, a sua sombra!

Saiu em uníssono da boca dos quatro militares.
- E o Vagabundo?

Voltou para Cabolol para recomeçar a Guerra.
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2593: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (11) - Parte X: O preço da liberdade (Fim)


(2) Vd. poste de 12 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2043: Bibliografia de uma guerra (22): Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente, aliás Mário Fitas (CCAÇ 763, Cufar)

(3) Vd. Vidas Lusófonas > Florbela Espanca (Vila Viçosa, 1894; Matosinhos, 1930). Poetisa trágica, pôs termo à vida no dia em que fez 36 anos. Justamente em Matosinhos, onde vivia.

Guiné 63/74 - P3082: Convívios (76): Ainda o 18º encontro dos bravos da CCAÇ 726 (Nuno Rubim)

Arados, Benevente, 24 de Maio de 2008 > 18º Almoço/Convívio dos bravos da CCAÇ 726(1)... Devidamente assinalados, da esquerda para a direita: na segunda fila, o Teco e o Nuno Rubim; na terceira fila, o Guedes e o Cavaleiro (este último, tenente general, na situação de reforma, tendo antecedido o Rubim no comando da Companhia).

Foto : © Nuno Rubim (2008) . Direitos reservados.


1. Mensagem do Nuno Rubim, de 14 de Julho:

Obrigado. Pois já vi [a notícia do Convívio da CCAÇ 726] ... Mais vale tarde do que nunca.

Junto uma foto do convívio. Estou à direita, 2ª fila, e atrás, com uma camisola vermelha, o Ten Gen Ref Cavaleiro que substituí no comando da CCaç 726. À esquerda está o Teco ( 2ª fila ) e quase por detrás o Guedes, de camisa azul.

Resumindo [e respondendo à tua pergunta]: comandei a CCaç 726 (2) desde o final de Jan 66 e de Jun até Dez 66 a CCaç 1424. Antes tinha, como sabes, comandado a CArt 644 ( Mansabá) e a CCmds.

O convívio foi excelente e a malta gostou muito de ver as fotos da ida à Guiné que levei, sobretudo a do diorama de Guileje ... e a do rol das lavadeiras do dito-cujo ! (3)

Um abraço
Nuno Rubim

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Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 14 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3060: Convívios (74): CCAÇ 726 (Guileje, 1964/66), em 24 de Maio de 2008, Arados, Benavente (Nuno Rubim)

(2) Vd. também o poste de 17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2360: A CCAÇ 726, a primeira Companhia a ocupar Guileje (2): 10 mortos e mais de metade do pessoal ferido em combate (Virgínio Briote)

(3) Em Guileje e em Mejo, o Nuno Rubim [, hoje Cor Art Ref, ] era conhecido como o capitão fula... muito querido entre a população local (e nomeadamente a feminina). Fui testemunha da grande recepção que por lá teve em Março de 2008. Essa alcunha - a de capitão fula - é uma história que ele ainda um dia nos há-de contar, se os seus muitos afazeres de investigador o permitirem...

Guiné 63/74 - P3081: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (4): Os meninos à volta da fogueira...


"Encontrei esta fotografia num Boletim Cultural da Guiné Portuguesa de 1972. Lembrei-me logo dos meninos de Missirá educados por Lânsana Soncó,lembrei-me das tábuas com os versículos do Corão que se podiam comprar ao pé de Fá Mandinga.Em Missirá e Finete tínhamos acordado que estas aulas eram complementares às do professor da primária,foi assim que os meninos tinham uma boa parte do dia preenchido"(BS).

Foto (e legenda): ©
Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Cidade de Bafatá > Finais de 1969 > Vista aérea da mesquita de Bafatá. A Zona Leste da Guiné (região de Bafatá e Gabu) é aquela onde se pratica mais a Mutilação Genital Feminina (MGF)... As populações islamizadas representam quase metade dos guineenses.Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).


Foto: ©
Humberto Reis (2006). Direitos reservados


1. Mensagem do Alberto Branquinho, com data de 8 de Julho (Recorde-se que o nosso camarada Alberto Branquinho, hoje jurista de formação e profissão, foi alferes miliciano na CART 1689 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) (1).


Caro Luís Graça

Junto vai o texto do UMBIGO nº. 4, que fala de religiões. Tem matéria meramente de facto. Não tem juízos de valor. Assim, espero que não levante polémica.

Um abraço e os meus agradecimentos.

Alberto Branquinho
Ex-alferes miliciano
CART 1689 /BART 1913



2. NÃO VENHO FALAR DE MIM … NEM DO MEU UMBIGO (4) > UMA ESCOLA MUÇULMANA
por Alberto Branquinho


Sempre que havia necessidade de fazer colunas auto para abastecimento do quartel, situado a noroeste, o pessoal saía pela porta norte, com os picadores à frente e com instruções para irem ficando abrigados ao longo do itinerário a percorrer, fazendo segurança ao vaivém das viaturas. O movimento da tropa começava somente quando havia já alguma luz, com o sol a tentar romper entre a folhagem da mata e os troncos das árvores.

Isto era o habitual em qualquer aquartelamento, em circunstâncias idênticas. A diferença estava no facto de, no lado norte e nordeste deste aquartelamento, haver uma grande tabanca de população fula e de, junto a essa porta norte, haver uma escola ao pé da casa do padre.

Os alunos, entre (talvez) os sete e os dez anos, com vestes compridas e cabeça coberta, estavam sentados em esteiras à volta de uma fogueira, com labaredas baixas, para afugentar o frio e o cacimbo da madrugada. Cada um empunhava uma tábua de cerca de trinta a quarenta centímetros por uns vinte centímetros, onde estavam escritos textos em caracteres arábicos (excertos do Corão?). A configuração das tábuas era idêntica à das tábuas dos desenhos bíblicos em edições juvenis, que representam o Senhor a entregar a Moisés as tábuas da lei no Monte Sinai, quando o povo judeu transgrediu no peregrinar pelo deserto.

A cena que se nos deparava era um círculo de garotos à volta da fogueira, entoando, em uníssono e a média voz, uma cantilena cheia de aa, acompanhados de sons guturais ou aspirados, enquanto o fumo da fogueira, no centro, subia, se dispersava e os envolvia, misturando-se com o cacimbo. Tudo isto era batido pelos, ainda, fracos raios de sol, rasante, fazendo um quadro quase irreal. Era belo e quase místico, não fosse a perturbação introduzida por alguns soldados que, passando em fila de um, opunham à cantilena:
- Há… há…há… há…
- Gá… gá… gá… gá…
- Olarilálá… olarilálá… olarilálá…

Apesar de os graduados os mandarem calar, o contraponto feito pela tropa continuava, à socapa.

Os garotos, inicialmente divertidos ou espantados, levantavam os olhos das tábuas para observar os intrusos e voltavam à leitura.

Só o padre, postado atrás, em pé, hierático e digno, de boné de lã na cabeça, com uma barbicha que lhe alongava o rosto, olhava fixamente o fogo e, com as mãos dentro das vestes, desconhecia a tropa que passava (2, 3).

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P.S. - Este "Post Scriptum" vem a propósito de um "POST ante" (POST 3025 de 5 de Julho último) do Jorge Cabral, para esclarecer que:

(i) O Branquinho que ele refere no nº. 1 desse POST sou eu, que tenho o nome próprio Alberto;
(ii) O Branquinho mencionado no nº. 2 do mesmo POST é meu irmão, de nome próprio António, como o Jorge Cabral sabe.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3011: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (3): Fornilhos e despojos humanos

(2) Esta cena é-nos familiar a todos nós, camaradas da Guiné, que andámos pela Zona Leste, em pleno chão fula... Os meninos à volta da fogueira, decorando versículos do Corão... O contexto é outro, mas lembrei-me do célebre poema e música, belíssimos, do angolano Rui Mingas (Manuel Rui Monteiro), interpretado entre outros pelo nosso Paulo de Carvalho

Com fios feitos de lágrimas passadas
Os meninos de Huambo fazem alegria
Constroem sonhos com os mais velhos de mãos dadas
E no céu descobrem estrelas de magia

Com os lábios de dizer nova poesia
Soletram as estrelas como letras
E vão juntando no céu como pedrinhas
Estrelas letras para fazer novas palavras

Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade

Com os sorrisos mais lindos do planalto
Fazem continhas engraçadas de somar
Somam beijos com flores e com suor
E subtraem manhã cedo por luar

Dividem a chuva miudinha pelo milho
Multiplicam o vento pelo mar
Soltam ao céu as estrelas já escritas
Constelações que brilham sempre sem parar

Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade

Palavras sempre novas, sempre novas
Palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo

Assim contentes à voltinha da fogueira
Juntam palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo

(3) Também evoquei esta cena, num poema em falo do ao Iero Jaló, o primeiro homem (da CCAÇ 12) que morreu ao meu lado:

(...) Nascemos meninos,
Mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
Por termos nascido
No sítio errado,
No tempo errado.
Imagino-te puto
À volta da fogueira,
Na morança do marabu ou do cherno
Da tua tabanca,
Decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
Que eu trouxe da tua terra,
E que eu guardo na minha memória,
São os meninos à volta da fogueira,
Soletrando tabuínhas em árabe (4).
Lembro-me de quereres aprender
As letras dos tugas
Para poderes ser soldado arvorado
E um dia chegares a cabo. (...)

(4) Há tempos o António Santos (ex-soldados de transmissões, Pelotão de Morteiros 4574/72, Nova Lamego, 1972/74), mandou-me imagens dessas famosas tabuínhas... Não as localizo, de momento. Recordo-me de lhe ter prometido que ia pedir a alguém (um aluno meu, médico, muçulmano, de origem argelina) para as traduzir, o que nunca consegui... Se ele, António, me estiver a ler, que me mande essas imagens em 2ª via...

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3080: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (14): Que vidas, que merda!

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > O Torcato Mendonça, lui-même, há 40 anos atrás, noutra encarnação... Era então Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)...


1.Foto e mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... Mensagem enviada em 14 de Julho:


PENSAR em VOZ ALTA – G (*)

Leio certos escritos, no blogue, aprovo ou desaprovo mas, em nome da liberdade de expressão e da diferente maneira de pensar, aceito e respeito.

Reli agora um texto meu mas no bloco. Os olhos acabaram por atrapalhar a leitura. Porque escrevi assim? A recordação, a saudade é forte demais. Sofro?! Escrevo pouco agora, para envio. Talvez certas memórias, se trazidas à escrita, se tornem dolorosas e me impeçam de escrever. O prazer da escrita, do alinhar letras em tecla corrida, fique, talvez, devido àquele escrito e outros, de pena e tecla, como em auto flagelação.

Impensável. Isso não!


Por vezes certas situações, motivam a vinda de recordações ou desejos de mudança. Surgem dúvidas estarei certo ou errado? Não sei!

Eu conto:


1 – Manuel

- Uma moedinha... uma moedinha é para o café, um euro, só um euro…
- Estás com pior aspecto, Manuel. A barba, o cabelo sem ver água há dias e as botas sem cordões.
- Vá lá um eurosito. Estou bem, estou bem…é assim…ah…

Dou ou não? Não é mendigo e só pede aos amigos ou conhecidos. Olha-me com aquele olhar vazio e baço:
- Vieram buscar-me o cão, uns tipos dos animais e a GNR; não era meu, andava atrás de mim. Gostam de mim, os cães…
- Vai tomar o café ali, que eu pago.
- Ali não, não me deixam entrar.
- Pronto, toma e vai a outro lado; foste pára-quedista Manuel, esqueceste-te?
- Não, não. Fui Furriel pára-quedista, instrutor de… - e conta, com um brilho nos olhos e um sorriso a aflorar nos lábios uma série de especialidades. Ponho a mão no ombro e dou-lhe pequena palmada.
- O que mudou, Manuel? Porquê?- Volta ao olhar triste e diz:
- Foi psicológico… foi psicológico. Não aguentei.

Encolhe os ombros e afasta-se, bamboleante, a arrastar as botas sem cordões. Não sei bem a história dele. Foi furriel pára-quedista, por uma razão de bebida ou outra saiu. Dizem ter uma pequena pensão. Mas é um homem destroçado, a necessitar de amparo e de tratamento. É, para mim, pessoa estimável.

Vagueia no centro da cidade, vagaroso no andar, descansando num ou noutro banco de jardim, esperando o nada.

Entro no café, sento-me e trazem-me a bica. Talvez como o Manuel, estou ali não estando. Nem abro os jornais. Olho o nada e penso:
- Quantos Manuéis?

Este não fez a guerra colonial, terá quarenta e muitos anos, cinquenta não, perdeu-se por outros motivos. Não sei ao certo.

Lembro-me de ter lido, no blogue Luis Graça e Camaradas, um poste de um Zé da Desordem, antigo combatente e encontrado morto numa madrugada.

Quantos? Quantos Zés ou Manuéis, viraram “corpos vazios”, fartos da vida dita normal, vivendo hoje no seu mundo. Em comum têm o serviço militar, neste caso. Outros - quantos ? - foram antigos combatentes.

Porquê? Porque tardam em ser ajudados, tratados? Aos poucos são menos…pois pela ordem natural…
- Uma moedinha… um euro para o café… - Palavras que me martelam na cabeça. Tento abrir o jornal e os olhos caiem no café por beber…Merda, levanto-me e saio, para lado nenhum… Prefiro apanhar o calor da tarde…
- Quantos?

E ando e penso. E sai em voz alta e cai num papel qualquer, leiam ou rasguem e se passado à tecla é mais fácil, basta delete


2 - VERDES ANOS

- Quantos?

Não sei! Sei, isso sim, que milhares e milhares de jovens, nos seus verdes anos, durante década e meia, tiveram a juventude interrompida.

Milhares e milhares, cá, ou pior ainda, lá, numa qualquer parcela do Império, em nome da Pátria, em nome do Dever, foram empurrados adiando vidas. Regressaram um dia, diferentes, fartos, jovens em corpo e mente de velhos, endurecidos, amarrotados, enxovalhados. Alguns vieram não vindo e, ainda hoje, vagueiam vida fora, mais lá do que cá, em vapores de álcoois e destroço de vidas a serem encurtadas em cada dia que passa. Outros ficaram lá ou vieram em caixão de pinho. Quantos? Lá ou cá? Quantos?

Muitos não iam. Geralmente os mais acérrimos defensores do Regime autista de então, ou alguns “em desculpa ou mesmo do contra” a preferirem viagem até uma Europa aqui mais perto. Ainda os que o poder do favor ou o dinheiro, em minoria é certo, do Império se libertavam… mas o mesmo glorificavam.

Aos poucos a “Evolução Natural da Humanidade” pôs fim à sangria.

Regressaram muitos, então, dessas europas, palmas batendo, cânticos e gritos de ordem lançando e ensinando as regras de uma vida melhor e democrática. Alguns, rápido, ocuparam os lugares dos antigos Senhores pois muitos deles estavam em viagem apressada até aos brasis ou mais perto, para retorno mais rápido após a acalmia dos desmandos da populaça.
- Alguns com razão, pois tanto desmando, não! E tanta repressão passada, sim?

Ficou uma nova clique em mistura com gente que queria um País… Aos poucos, os que obrigados vaguearam pelo Império, ficaram com a raiva contida, a recordação, a frustração, as maleitas, a velhice precoce. Memórias...e Honra. Só, ou sós, em grupos nostálgicos…

Os de Sonho fácil ainda acreditam no dia de justiça reposta. Qual?

E volto lá sempre. Por vezes nem sei quanto de mim lá ficou.

Sonhos, tormentos, recordações dolorosas como a morte do Uro Baldé. Ali deitado, destroçado pela estúpida da mina. Eu a apanhá-lo aos poucos, raiva contida, soluço a embargar a respiração.

E o sonho, sempre o sonho a vir de quando em vez, a carne destroçada, o esparguete do almoço antes tomado, a sair e a misturar carne, sangue e massa…e a raiva a vir: - Cabrões… Vão pagar-me, cabrões… - e rio e a G3, em rajada curta fá-los saltar, torcerem-se de dor...
- Turras de merda… - o riso é abafado pelas rajadas curtas, certeiras, sempre na barriga… o riso louco... cabrões...

Acordo a escorrer água, a cabeça a apertar, boca seca, respiração descontrolada. Lentamente volta ao normal, lentamente. Ainda bem que estou só naquela “tabanca”, ainda bem. Tormentos de periquito.

O tempo, o hábito, tantos Uros… geraram rotinas normalidades… Quem me leva os meus fantasmas… como diz a canção. A Vida???


3 – VIDAS


O Calor ainda aperta, a chuva cai e formam-se pequenos regatos entre as tabancas. Ruídos de vida vêm das outras tabancas, em redor de sua, habitadas pelos picadores africanos e famílias.

Vidas partilhadas. Bebe mais um longo gole de uísque, acende um cigarro e olha os ponteiros luminosos do relógio. Tão cedo.

Não quer adormecer e, menos ainda, beber mais um comprimido daqueles.

Em caso de ataque está mais desperto.

Vidas! Ali, sem luz, sem nada, só, a poder encontrar-se com ele mesmo. Tem todo o tempo. Isso não falta até Mansambo ser aquartelamento. De dia, os militares, na mão direita pá ou pica e na esquerda a G3. Tretas! Mas era duro.

Que vidas. Os novos “aguentadores” do Império. Até quando?

Ali está, só, meio deitado, tronco nu, fumando, pensando e, por estranho que pareça, resignado. O objectivo é manter vivos os camaradas e ele. A missão: construir o aquartelamento, fazer operações, aguentar os ataques IN. Para isso fora treinado e outros treinara. Mais um “beijo” na garrafa de uísque.

Que vida! O pensamento voa para o País dele, tenta logo contrariar. Mas pensa:
- O meu País é enorme, vai do Minho a Timor, “uno”, desenvolvido. Ou não?

Será pequeno, “paroquial”, bafiento, pleno de medos e temores, de vénias, de classes de benesse e favor. De ajuda a pobres? Pára. Volta a concentrar-se na chuva e nos ruídos.

Sem querer sente-se pobre, coitado, a precisar de ajuda. Sem querer, é levado a pensar naquelas Senhoras que ajudam os pobres soldados. Muitas bem intencionadas, algumas com filhos ou familiares lá. Outras menos, a matarem o tempo, a viajarem pelas “províncias”, pouco pela Guiné, e a voltarem a Lisboa, felizes com “os nossos rapazes”. Depois de breve descanso, promovem reuniões, chás e canastas, récitas e outras, possíveis, fontes geradoras de angariação de fundos para os rapazes.

Há tarde, a meio da tarde, reúnem-se, falam, combinam, dão pequenos goles no chá, diminuta dentada no bolo com creme que, quase directo, lhes vai aumentar as adiposidades derramadas no veludo das cadeiras.

Depois partem alegres, comedidamente risonhas e sentem-se mais frescas, menos afrontadas, nas menopausas há muito iniciadas.


Ele pensa será justo assim pensar? O País dele é assim? Uísque ou loucura?


Que Vidas!... Aos poucos sente o sono a chegar e deixa-se ir com ele…
- Morfeu, olá…

Lentamente, ele vai… espera, é sono sem sonhos ou tormentos…

Quantos estarão assim? Quantos… ? Que vidas !

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. alguns dos postes mais recentes do T.M., relacionadOs com a série Blogoterapia... Pensar em Voz Alta:

23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2978: Blogoterapia (57): A Guerra estava militarmente perdida...o 10 de Junho. (Torcato Mendonça)

9 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2925: Blogoterapia (55): Pensar camarada...! (Torcato Mendonça)

16 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2851: Blogoterapia (52): Pensar em voz alta... De quantas mentiras é feita a verdade ? (Torcato Mendonça)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2768: Blogoterapia (48): Pensar em voz alta... A nossa por vezes difícil mas sempre boa con(v)ivência (Torcato Mendonça)

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2758: Blogoterapia (47): Pensar em voz alta... O tédio que às vezes nos invade (Torcato Mendonça / Carlos Vinhal / Virgínio Briote)

1 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2597: Blogoterapia (45): Pensar em voz alta (Torcato Mendonça)

19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2558: Blogoterapia (44): Pensar em voz alta (Torcato Mendonça)

Guiné 63/74 - P3079: Recortes de imprensa (8): Ex-combatentes batalham para sair da rua (Torcato Mendonça)

1. Mensagem do nosso camarada Torcato Mendonça:

Assunto - Ex-Combatentes batalham para sair da rua

É o título de um artigo saído hoje no JN Jornal de Notícias, Sociedade, página 28.

Leio e sinto a revolta, uma revolta a ser contida e um agradecimento ao JN, á jornalista (da Lusa) e à Comunidade Vida e Paz. Cito, talvez, abusivamente. Mas são três casos a juntar a tantos que desconhecemos. Talvez não desconheçamos assim tanto, talvez encolhamos mais os ombros, talvez… e nada mais digo e, menos ainda, adjectivo como queria. Leiam o artigo. Menos, vós, meus caros Editores, mais outros que por lá passaram ou outros que, não tendo lá ido, e responsabilidade tendo ou hipótese de influenciar, sintam ser assunto menor.

Leiam e olhem as duas fotos…um banco e um homem sentado pensa e fuma…ou na outra alguém de costas, muleta amparando coto da perna esquerda, olhos no chão ou no vazio, como o outro ao lado em cadeira de plástico, sentado, cigarro esquecido, olhar para onde? E penso… eu penso e vem-me à memória um escrito que fiz e enviei, nos poucos envios que há meses faço.

Em conversa telefónica, meu caro Luis Graça, falando de outro assunto, disse-te: Enviei um escrito, deve ser “pesado”. Agora leio e lembro os nossos camaradas, são os nossos camaradas que País fora a sofrer continuam. Pesado ou leve…a realidade ede ontem e de hoje…Até quando?

Anexo o escrito e a mensagem enviados. Tentem ler o artigo do JN.

Noutra altura podemos tratar do sexo do S. Gabriel e do S. Rafael…assexuados…? Podemos tratar disso!

Ainda bem que há espaço na Net, este e outros blogues e pessoas a preocuparem-se com os nossos camaradas, na Comunidade Social e Comunidades como esta citada no artigo.

Abraços do,

Torcato Mendonça
Apartado 43,
6230-909 Fundão


2. Ex-combatentes viraram sem-abrigo

HELENA NEVES, JORNALISTA DA AGÊNCIA LUSA
in JN - Jornal de Notícias, de 21 de Julhp de 2008 (com a devida vénia...).

Henrique, Eduardo e Francisco sobreviveram à guerra colonial. 30 anos depois travam uma nova batalha: reconstruir a vida perdida nas ruas do álcool e das memórias de combates que os fizeram sem-abrigo.

Na quinta-feira fez um ano que Henrique Castro entrou para o centro de reinserção social da Comunidade Vida e Paz, em Sobral de Monte Agraço, pondo fim a seis anos nas ruas de Faro em que a sua companhia diária foram "pacotes de vinho".

Com uma voz pousada e olhar cabisbaixo, Henrique, 59 anos, recordou com amargura esses tempos que o separaram da família, falou do sonho de reatar a relação com a mulher.

Os dias de Henrique na comunidade são ocupados a fazer pinturas em tecido - "antes pintava automóveis e electrodomésticos" - e a pensar na carta de amor que vai escrever à mulher para a pedir de novo em casamento, depois de já ter reconquistado a amizade dos dois filhos. "Sobrevivi a uma guerra e agora tenha outra pela frente: conquistar a minha mulher e retomar a minha vida perdida há 14 anos", sublinhou com um sorriso rasgado.

O percurso de Henrique assemelha-se ao de Eduardo, 57 anos. Também combateu em Angola e o vício do álcool arruinou-lhe a vida. "Já bebia antes de ir para a guerra", contou este homem magro e com o rosto marcado pelo sofrimento.

Durante anos, a rua foi a sua casa. Um dia teve um acidente, partiu a clavícula e foi parar à cama de um hospital. "Não sei como vim parar à comunidade e já cá estou há quatro anos. Se não fosse isto já estava morto", disse Eduardo, enquanto dava os últimos retoques numa jarra de barro na olaria, onde trabalha diariamente.

Da vez em quando visita os amigos em Alfama, o bairro onde nasceu. A irmã é a família mais chegada que tem, mas já não a vê há 10 anos.

O combate na Guiné-Bissau deixou também marcas profundas em António Pereira, 57 anos. "É o sistema nervoso", comentou, contando que teve de abandonar um tratamento de desintoxicação de álcool no Júlio de Matos porque não conseguia aguentar o barulho dos aviões a passar por cima do hospital.

"Aqui é mais sossegado", frisou. Os dias de António são passados a tratar da roupa da comunidade, mas já tem em vista um emprego em Lisboa. "Já fui a uma entrevista de emprego em Lisboa para motorista através do centro", disse, com um sorriso de orgulho.

O director da Comunidade Vida e Paz, em Sobral Monte Agraço, Alfredo Martins, adiantou à agência Lusa que é "muito importante que as pessoas que vivem na comunidade se sintam activos, produtivos e estimulados".

A maioria destas pessoas foram recolhidas da rua pelas equipas do centro e outras foram indicadas por várias instituições. As pessoas chegam com vários problemas psicológicos, de alcoolismo, droga e têm 30 técnicos para os acolher e tratar, disse Alfredo Martins, acrescentado que cada caso merece uma "atenção diferenciada".

O tempo máximo que um utente deve estar no centro é 13 meses, mas há muitos que ultrapassam esse tempo. "Nós não somos um lar, mas as pessoas precisam de paz", comentou o responsável, admitindo que é difícil "romper os laços" com estas pessoas. "Fazemos uma caminhada de relacionamento e depois é difícil a separação. Temos de garantir que as pessoas não saem daqui para o desamor", concluiu.

Guiné 63/74 - P3078: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (39): Adeus, até ao meu regresso

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970 > Esquartejamento de uma peça de caça grossa, abatida caçado na zona de acção do Pel Caç Nat 54 (que em Novembro de 1969 tinha vindo render o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, e tranferido para Bambadinca). Na foto vê-se o comandante do Pel CaÇ Nat 54, o Alf Mil Alves Correia, referido no texto a seguir e, por detrás dele, o Queba Soncó, picador das NT. Meses mais tarde, o Pel Caç Nat 54 será substituído pelo Pel Caç Nat 63, do Alf Mil Cabral. (LG).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

"A Cristina e eu visitámos no bairro da Ajuda Nhima, a mulher de Quebá, gravemente sinistrada numa flagelação ,em Julho de 1969, em Missirá. Quebá pede para eu falar com o novo batalhão( será o Bart 2917)acerca da sua posição de picador.Fiquei-lhe a dever inúmeras atenções, foi um colaborador exemplar, nada afoito mas cumpridor" (BS).

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 16 e 17 de Abril de 2008:

Luís, o resto das ilustrações seguirá amanhã. Nunca supus que este combate corpo a corpo que é o final da minha comissão me estivesse a abalar tanto. Foi uma época morna em Bambadinca, era um compasso de espera, era o cansaço de quem partia, a CCaç 12 e nós aguardávamos novo dono. Não foi um tempo feliz ou construtivo. E logo a seguir apanhei os Nhabijões e as obras na estrada Xime-Bambadinca, de manhã à noite. Coisas insípidas, onde o factor humano, felizmente, ganhou realce. Recebe um abraço do Mário.


Operação Macaréu à vista > Episódio XXXIX > ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO!
por Beja Santos (1)


(i) Com lágrimas nos olhos, deitamos contas à vida

Insidiosamente, os temas militares, até aí praticamente adormecidos na lua-de-mel, começam a vir à tona da água, a entrar na nossa vida comum. Tentações não faltaram, dia após dia. Ainda em casa da Elzira e do Emílio Rosa, os soldados em férias vinham até cá partir mantenha, julgavam-se na obrigação de informar que se desmatava à volta da ponte de Udunduma, que Taibatá fora flagelada, tal como o Xime e o Enxalé, que finalmente se encontrara uma solução para cambar o gerador eléctrico destinado a Missirá.

Nessas idas e vindas o régulo Malã manda caju e um bordado para a senhora de alfero, Quebá Soncó, o meu devotado e sempre temeroso picador, mal soube que tínhamos visitado a sua mulher no bairro da Ajuda, mandou carta que não resisti a ler à Cristina. Dizia, no essencial, o seguinte:

“Cá vou indo bem na graça de Deus. Mando dizer que é para me desculpar que não apareci no casamento, é que tinha a roupa toda suja, o alferes me faz este grande favor de me desculpar, fiquei muito contente com a prenda que a sua mulher deu à minha mulher, sempre faço orações que meu alferes consiga o seu futuro e a sua mulher. Estou aqui só tenho a confiança em ti, e o meu alferes vê nessa companhia nova que vem para Bambadinca se me pode ajudar, estou na sua espera. O alferes em Missirá chama-se Mário Beja Soncó, toda a malta conta consigo como irmão e parente unidos, e assim queremos unir a nossa Fé com a sua mulher como unimos com alferes. Nhima Soncó vive no bairro da Ajuda, pode ir até lá visitar-lhe, chega ao pé da Mesquita e pergunta pela mulher que veio de Missirá”.

A Cristina fez perguntas sobre Quebá Soncó, Nhima, a que nova companhia que ia para Bambadinca ele se referia. Reencetei a minha narrativa com um tom acalorado à volta de Missirá, falei das flagelações e da sua reconstrução, a certa altura chegou o momento de descrever uma flagelação em que a pobre Nhima perdeu um braço que o Quebá enterrara, eu sabia ter escrito sobre estes acontecimentos em aerogramas de Julho passado.

A nova companhia, expliquei, tinha a ver com a partida do BCaç 2852, previa-se que no fim deste mês [de Maio de 1970], Quebá Soncó queria continuar a ser tratado como picador, a ser economicamente apoiado, contava com a minha intercessão. Sinto perfeitamente que esta conversa é um corpo estranho, angustiante, impróprio para uma vida de recém-casados, a despeito de todos os dias, ou quase, ter escrito de Missirá para Lisboa falando da guerra e dos seres humanos à minha guarda.

É então que a Cristina percebe, penso eu, que chegámos ao limite, as nossas existências estão profundamente divididas, ou cerceadas, há um calendário que não pode ser iludido, tenho ainda pelo menos três meses de guerra à minha espera, o internamento psiquiátrico foi o remendo possível, não só o David Payne não pode fazer mais milagres como não devemos estar dispostos a passar da amabilidade para a indignidade. Aliás, a Cristina tem exames à porta, acertamos igualmente nos projectos mais imperativos que são, o aluguer de uma casa com três divisões, de preferência perto de casa dos seus pais, faço planos para mudar de trabalho, gostaria de acabar o curso em dois, dois anos e meio. A Cristina fala em dar aulas, precisamos de dois pequenos salários para começar.

É a acalentar estes sonhos que vamos à TAP tratar da passagem e, nesse mesmo dia, com a guia de alta dada pelo David Payne vou ao QG tratar da minha viagem para Bambadinca. Toda a ternura a que nos oferecemos não esconde os amargores da separação, afinal ainda há uma guerra para concluir. A esconder o sofrimento a custo, a Cristina parte de Bissalanca quase um mês depois de ter chegado, era o princípio da tarde de uma dia sem nuvens, a pista suava com o calor tórrido, olhámos um para o outro sem mais palavras, siderados pelo livro aberto que nos espera. Prometo escrever a toda a hora, poupar-me, pensar mais em Lisboa, fazer entrar a Guiné num limbo. Eu sei que é tudo mentira, a Cristina também. No mesmo voo vai o príncipe Xisto Bourbon-Parma, que já visitara Bambadinca, acabámos por almoçar juntos no Grande Hotel, não sei qual o seu grau de importância, é muito gentil e apurámos que ele tem consciência do que é que se está a passar na Guiné.

(ii) A penúltima visita ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa

Na véspera de partir, a Cristina e eu fomos em romagem até ao museu. A Cristina já folheou o meu caderno com apontamentos, acredita a sério que um dia irei escrever sobre este mundo que mudou a minha existência. Enquanto ela folheia revistas científicas recentemente chegadas, tiro notas de uma conferência de Marques Mano efectuada na Sociedade de Geografia de Lisboa, em Maio de 1946, na sessão solene comemorativa do V Centenário do Descobrimento da Guiné. Marques Mano encanta-me pela embriaguez das suas sonoridades, pela riqueza do léxico, pela apoteose da descrição dos fenómenos tropicais quase romanceados. Veja-se o macaréu:

“Para ir tão longe, a maré não encontra à sua frente leitos abertos e vazios; encontra, nos dois rios doces que convergem na testa do estuário central, leitos onde, de margem a margem, corre uma toalha de água doce que desce com rapidez. Deste modo é obrigada a subir em macaréu. A maré cheia, empurrada do largo estuário para o rio estreito, encontra-se com aquela corrente contrária que lhe trava os filetes de água inferiores e os que, correndo livremente sobre esses, vão cair sobre ela. Deste modo a maré é continuamente represada ao longo do percurso do rio, a água que chega galga a represa, para ser também travada, e a altura da enchente sobre a vazante aumenta deste modo incessantemente, até que a enchente se enrola numa vaga grossa e poderosa que corre sobre e contra a vazante... O trovejar da enorme vaga ouve-se a alguns quilómetros de distância ainda lá no fundo da floresta. Calam-se os homens e os animais bravios para escutar o monstro que sobe o rio correndo. Quando chega, as cordas de água precipitam-se em vertiginosa desordem contra a vazante, contra as margens, contra as árvores ribeirinhas, espadanando, enrolando-se em remoinhos, arrastando à sua frente quanto se lhe oponha. Passa, e o corpo líquido, sinuoso e rápido do monstro, enche o leito do rio e continua correndo e rugindo”.

E não resisti também a registar o que Marques Mano diz sobre os tornados:

“Desde os meados de Abril que o imenso forno azul que é o céu do território vem aquecendo até sufocar. Altos e esguios funis de pó, cujo vértice, se as toca, remove as telhas, correndo em redemoinho, levam aqui e além o primeiro anúncio das chuvas, depois confirmado por algumas reacções ciclónicas ainda secas. Por estes dias, o ar imobiliza-se, o estuário é um espelho sem fim, o calor no ar imóvel causa uma angústia que não se poderia prolongar. Sobre o mar, mas mais longe do que o horizonte, firma-se uma longa banda preta, por debaixo da qual faíscam relâmpagos, e é formada pela tempestade que espera ao largo da costa. A volta da maré desencadeia o ciclone. A banda preta sobe vigorosamente no céu, arrastando consigo um amplo manto negro em que fulge e rola uma trovoada contínua... Então, o ar vivo, fresco, fortemente ozonizado que chega a atingir a velocidade do tufão, cai sobre a terra como a pancada de um martelo. A violência da rajada estende nas estradas lençóis de pó que correm velozmente e não deixa erguer, despoja as copas de folhas, esgalha ramos, derruba fragorosamente as árvores, lança as folhas de zinco a voar como folhas de papel, e até, a algum pequeno barracão de construção menos previdente, levanta e transporta o telhado inteiro. A longa pancada do vento é seguida por uma poderosa muralha de chuva que avança mais vagarosamente contra a terra. É tão espessa que absorve na sua espessura as coisas que vai alcançado; absorve ilhas, embarcações, casas... A massa de água passa demoradamente, inunda a vila, continua a marcha para o interior. Uma hora depois, talvez menos, o calor ardente, o céu limpo, o ar imóvel, preparam o tornado da maré seguinte”.

Rendo-me à musicalidade, mas não deixo de me interrogar se tais descrições não têm por detrás um escritor que falhou na ficção e toma aqui a desforra. Gostei muito do que li e da sinceridade deslumbrada de quem descreveu o macaréu e os tornados. Fecho o meu caderno a meditar sobre o que pensarão as próximas gerações desta prosa grandiloquente.

1ª Edição em português, capa de Bernardo Marques, Edição »Livros do Brasil», sem data, desapareceu a 1ª página, não se pode mencionar o tradutor.

É um livro indispensável para falar das utopias do século XX,das preocupações com o geneticismo, o condicionamento das massas,os tranquilizantes,por exemplo. Nunca ninguém o considerou uma grande obra literária, as personagens são, por regra, estereotipadas.

É uma paródia subtil e cultíssima do optimismo no progresso científico.Aliás, parte da ideia que a revolução científica pode moldar as sociedades. Huxley relecte admiravelmente no prefácio de 1946 sobre as servidões instaladas, sob o disfarce do progresso científico.


(iii) O BCaç 2852 de abalada, há muitas mexidas no Pel Caç Nat 52


Encontro as tropas em Bambadinca numa grande expectativa. O BCaç 2852 aguarda a chegada de novo batalhão [, o BART 2917], a actividade operacional está muito reduzida, são as colunas ao Xitole, as emboscadas nas imediações, escoltas, patrulhas nocturnas, idas às tabancas na periferia, as obras intensas nos Nhabijões, o suplício na ponte de Udunduma. O PAIGC também parece estar mais calmo: flagelações rápidas, algumas minas, ataques mitigados em tabancas em autodefesa, pouco mais. Na CCS fazem-se inventários, na messe suspira-se pelo regresso e pela passagem à disponibilidade, a bem dizer já poucos têm ânimo sereno para continuar a viver a missão que aqui começou em Setembro de 1968.

Nº162 da Colecção Vampiro, tradução de Lima da Costa, capa de Lima de Freitas. Não é a primeira vez que o potencial assassino se revela imediatamente ao leitor, mas a configuração é original.O único filho de um escritor de livros policiais é mortalmente atropelado à porta de casa.Começa uma investigação metódica em estado de vingança por parte do pai que tudo perdeu, à margem da polícia.Rapidamente se descobre quem e como atropelou a vítima inocente. Começa a congeminação de um plano para executar um motorista imprevidente. É como se o leitor estivesse no cinema, os olhos vêem e lêem o sofrimento de alguém, na maior expectativa. Depois, executor e vítima confrontam-se verbalmente, é a ruptura e, imprevistamente, a vítima aparece morta por envenenamento. Um detective é convocado e descobre que todo o diário que lemos inicialmente do potencial executor está ardilosamente forjado. É uma pedra preciosa do romance policial, assinado por um dos maiores nomes da literatura britânica.

Vou ter mais esta separação, mas, falando dos meus soldados, partiram ou estão para partir o Teixeira das transmissões, o Domingos Silva, há evacuados, há trocas, leio atónito que Jolá Indjai já regressou da metrópole, curado da sua tuberculose, ainda está em Bissau. Envolvo-me nas patrulhas, acompanho a picagem da estrada até Amedalai, de Demba Taco seguimos até Taibatá, percorremos a corta-mato até Moricanhe, de onde gente do Buruntoni tem flagelado as tabancas em autodefesa do regulado do Xime. Converso com o Pires sobre a Gato Irritado, operação sem contactos e sem vestígios, mas os de Missirá detectaram um grupo de Madina perto de Mato de Cão, era uma coluna de reabastecimento, abandonaram as esteiras e os panos para fugir mais lestos. Parece que está tudo na mesma, com a agravante de estar diluído o nosso pendor ofensivo, é o compasso de espera que me vai levar a propor aulas aos soldados, o Benjamim Costa aceitou colaborar, vejo o espanto em muitos rostos quando proponho ginástica, lembro a todos que nos tempos de Mato de Cão fazíamos vinte e cinco quilómetros diários, pelo menos, havia as obras, os patrulhamentos, as actividades de manutenção. Eles concordam, amanhã de manhã iremos surpreender quem vem de Sare Ade, Ieró Nhapa e Queroane quando passarmos em marcha acelerada e em tronco nu, lustrosos graças ao primeiro calor do dia.

N.º 178 da Colecção Vampiro. Tradução de Mascarenhas Barreto e capa de Lima de Freitas. Só um inglês podia ter escrito este livro, é pícaro como um filme de Alfred Hitchcock. Como um baile de máscaras, o dono da casa quer divertir os seus amigos e monta uma tripula forca onde balouçam três figuras. Roger Sheringham, um detective muito querido a Anthony Berkeley, comparece e é confrontado por alguma bizarria da cunhada do anfitrião. Esta estranha senhora desafia um médico, e coloca-se em posição de ser enforcada, tudo aos olhos do leitor, mais evidência não pode existir. Começa o inquérito, é um suceder de suspeitos e só no final é que aparece uma confissão informal sobre o verdadeiro desenrolar dos acontecimentos, que o leitor recebe com uma gargalhada. Simplesmente notável.

(iv) Leituras admiráveis e leituras divertidas

Chegou o momento de ler Admirável Novo Mundo, de Aldous Huxley. Já ouvira falar desta utopia e das advertências formuladas por Huxley no início dos 30. Existe um Estado Mundial pautado pelos princípios de Comunidade, Identidade e Estabilidade. O livro começa quando o Director da Incubação e do Condicionamento visita a Sala da Fecundação. Ele fala para um auditório de estudantes junto das incubadoras, fala das vantagens da conservação do ovário, dos Alfas e dos Betas. É um mundo novo onde se formam seres melhorados aptos para a estabilidade social. Segue-se uma visita ao infantário mas antes passam pela Sala de Decantação. As crianças estão fortemente condicionadas, nunca mais vão precisar da literatura ou da botânica. Foi decidido abolir o amor à natureza, fala-se de Ford, de Marx e até de Lenine, por entreposta pessoa, até mesmo do Dr. Wells (uma clara alusão a H. G. Wells, o autor de O Homem Invisível e A Guerra dos Mundos).

O livro é uma paródia sobre o progresso, tal como ele era possível nesses anos 30, com a ficção científica que era disponível à luz dos conhecimentos da época: selecção da espécie, precauções anticoncepcionais, medicamentos anestesiantes e euforizantes, há seres superiores e há selvagens, a ciência está a procurar soluções para o sofrimento, para a dor dos moribundos, o progresso é uma coisa deliciosa. Não é uma grande obra literária, mas percebe-se agora por que é que esta ideia do optimismo progressista fez escola num momento em que a revolução científica trouxe melhoramentos consideráveis e o nazismo inventou a manipulação das massas ao mais alto grau e a selecção racial levou ao Holocausto. É uma paródia sobre uma sociedade feliz que aceita o condicionamento colectivo. Esses anos 30 são os tempos das massas humanas subjugadas por ideais comunitários, pela genética, pelo espectáculo, pela busca de sentido. Daí perceber-se como esta sociedade do admirável novo mundo está estratificada e os selvagens são colocados em campos fortificados. A morte deixou de ser traumática e é vantajoso que as massas falem com um reduzido número de palavras. A servidão totalitária era a preocupação de Huxley, ele quer denunciar a tirania-providência da utopia. Felizmente que esta tirania foi derrotada nos campos de batalha.

A Festa da Enforcada, de Anthony Berkeley, é um policial magnífico, ajuda-me a sair das previsões terríficas de Huxley. Podia ter dado um filme de Alfred Hitchcock. Há um baile e os anfitriões resolvem pôr na sala uma forca onde estão pendurados bonecos. É o mórbido dos enforcados por cima de gente mascarada, de gente que se embebeda e que guerreia verbalmente e onde uma cunhada dos anfitriões está a provocar uma mal estar terrível. Ela vai aparecer enforcada e a investigação aponta em direcções contraditórias, suspeitos são todos os que estiveram no baile. Em directo, às escâncaras, Berkeley descreve ao leitor o que se passou, como ocorreu o homicídio. Mas o que se passou efectivamente fica para descobrir no fim depois de uma investigação descrita de forma sufocante e literariamente empolgante. O desconcertante fica mesmo para o fim, é uma investigação que parece passar pelas câmaras do cinema ou da televisão, parece estar tudo a descoberto, a literatura também se faz de ilusões ou omissões, Berkeley é um mestre em criar uma atmosfera social deixando para o fim a mais imprevisível das confissões, entre o horror a anedota.

Para a semana volto para a guerra a sério, entregam-me a concepção e a execução de um patrulhamento ofensivo, regresso à região do Xime. Haverá tiros, uma emboscada com resultados e um desfecho inacreditável, pois a coluna que iremos surpreender é de reabastecimento e vem do Xime.

Eu sei que vou demorar quarenta anos a convencer-me que afinal eram muito mais íntimas as relações entre as populações no mato e as sob o nosso controlo que eu supusera, tudo um somatório de equívocos, semiverdades, produto da força do sangue estar muito acima das contigências dos partidos tomados por Portugal ou pela independência ou pela libertação da Guiné. Será em Madina Colhido, naquele final de Maio, que irei pela primeira vez hesitar sobre os campos demarcados, amigos e inimigos. Afinal, não estavam nem podiam estar demarcados. Só que eu não sabia. Eu e as tropas que chegavam e partiam dois anos depois.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. último poste da série > 11 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis