Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > O Torcato Mendonça, lui-même, há 40 anos atrás, noutra encarnação... Era então Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)...
1.Foto e mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... Mensagem enviada em 14 de Julho:
PENSAR em VOZ ALTA – G (*)
Leio certos escritos, no blogue, aprovo ou desaprovo mas, em nome da liberdade de expressão e da diferente maneira de pensar, aceito e respeito.
Reli agora um texto meu mas no bloco. Os olhos acabaram por atrapalhar a leitura. Porque escrevi assim? A recordação, a saudade é forte demais. Sofro?! Escrevo pouco agora, para envio. Talvez certas memórias, se trazidas à escrita, se tornem dolorosas e me impeçam de escrever. O prazer da escrita, do alinhar letras em tecla corrida, fique, talvez, devido àquele escrito e outros, de pena e tecla, como em auto flagelação.
Impensável. Isso não!
Por vezes certas situações, motivam a vinda de recordações ou desejos de mudança. Surgem dúvidas estarei certo ou errado? Não sei!
Eu conto:
1 – Manuel
- Uma moedinha... uma moedinha é para o café, um euro, só um euro…
- Estás com pior aspecto, Manuel. A barba, o cabelo sem ver água há dias e as botas sem cordões.
- Vá lá um eurosito. Estou bem, estou bem…é assim…ah…
Dou ou não? Não é mendigo e só pede aos amigos ou conhecidos. Olha-me com aquele olhar vazio e baço:
- Vieram buscar-me o cão, uns tipos dos animais e a GNR; não era meu, andava atrás de mim. Gostam de mim, os cães…
- Vai tomar o café ali, que eu pago.
- Ali não, não me deixam entrar.
- Pronto, toma e vai a outro lado; foste pára-quedista Manuel, esqueceste-te?
- Não, não. Fui Furriel pára-quedista, instrutor de… - e conta, com um brilho nos olhos e um sorriso a aflorar nos lábios uma série de especialidades. Ponho a mão no ombro e dou-lhe pequena palmada.
- O que mudou, Manuel? Porquê?- Volta ao olhar triste e diz:
- Foi psicológico… foi psicológico. Não aguentei.
Encolhe os ombros e afasta-se, bamboleante, a arrastar as botas sem cordões. Não sei bem a história dele. Foi furriel pára-quedista, por uma razão de bebida ou outra saiu. Dizem ter uma pequena pensão. Mas é um homem destroçado, a necessitar de amparo e de tratamento. É, para mim, pessoa estimável.
Vagueia no centro da cidade, vagaroso no andar, descansando num ou noutro banco de jardim, esperando o nada.
Entro no café, sento-me e trazem-me a bica. Talvez como o Manuel, estou ali não estando. Nem abro os jornais. Olho o nada e penso:
- Quantos Manuéis?
Este não fez a guerra colonial, terá quarenta e muitos anos, cinquenta não, perdeu-se por outros motivos. Não sei ao certo.
Lembro-me de ter lido, no blogue Luis Graça e Camaradas, um poste de um Zé da Desordem, antigo combatente e encontrado morto numa madrugada.
Quantos? Quantos Zés ou Manuéis, viraram “corpos vazios”, fartos da vida dita normal, vivendo hoje no seu mundo. Em comum têm o serviço militar, neste caso. Outros - quantos ? - foram antigos combatentes.
Porquê? Porque tardam em ser ajudados, tratados? Aos poucos são menos…pois pela ordem natural…
- Uma moedinha… um euro para o café… - Palavras que me martelam na cabeça. Tento abrir o jornal e os olhos caiem no café por beber…Merda, levanto-me e saio, para lado nenhum… Prefiro apanhar o calor da tarde…
- Quantos?
E ando e penso. E sai em voz alta e cai num papel qualquer, leiam ou rasguem e se passado à tecla é mais fácil, basta
delete…
2 - VERDES ANOS
- Quantos?
Não sei! Sei, isso sim, que milhares e milhares de jovens, nos seus verdes anos, durante década e meia, tiveram a juventude interrompida.
Milhares e milhares, cá, ou pior ainda, lá, numa qualquer parcela do Império, em nome da Pátria, em nome do Dever, foram empurrados adiando vidas. Regressaram um dia, diferentes, fartos, jovens em corpo e mente de velhos, endurecidos, amarrotados, enxovalhados. Alguns vieram não vindo e, ainda hoje, vagueiam vida fora, mais lá do que cá, em vapores de álcoois e destroço de vidas a serem encurtadas em cada dia que passa. Outros ficaram lá ou vieram em caixão de pinho. Quantos? Lá ou cá? Quantos?
Muitos não iam. Geralmente os mais acérrimos defensores do Regime autista de então, ou alguns “em desculpa ou mesmo do contra” a preferirem viagem até uma Europa aqui mais perto. Ainda os que o poder do favor ou o dinheiro, em minoria é certo, do Império se libertavam… mas o mesmo glorificavam.
Aos poucos a “Evolução Natural da Humanidade” pôs fim à sangria.
Regressaram muitos, então, dessas europas, palmas batendo, cânticos e gritos de ordem lançando e ensinando as regras de uma vida melhor e democrática. Alguns, rápido, ocuparam os lugares dos antigos Senhores pois muitos deles estavam em viagem apressada até aos brasis ou mais perto, para retorno mais rápido após a acalmia dos desmandos da populaça.
- Alguns com razão, pois tanto desmando, não! E tanta repressão passada, sim?
Ficou uma nova clique em mistura com gente que queria um País… Aos poucos, os que obrigados vaguearam pelo Império, ficaram com a raiva contida, a recordação, a frustração, as maleitas, a velhice precoce. Memórias...e Honra. Só, ou sós, em grupos nostálgicos…
Os de Sonho fácil ainda acreditam no dia de justiça reposta. Qual?
E volto lá sempre. Por vezes nem sei quanto de mim lá ficou.
Sonhos, tormentos, recordações dolorosas como a morte do Uro Baldé. Ali deitado, destroçado pela estúpida da mina. Eu a apanhá-lo aos poucos, raiva contida, soluço a embargar a respiração.
E o sonho, sempre o sonho a vir de quando em vez, a carne destroçada, o esparguete do almoço antes tomado, a sair e a misturar carne, sangue e massa…e a raiva a vir: - Cabrões… Vão pagar-me, cabrões… - e rio e a G3, em rajada curta fá-los saltar, torcerem-se de dor...
- Turras de merda… - o riso é abafado pelas rajadas curtas, certeiras, sempre na barriga… o riso louco... cabrões...
Acordo a escorrer água, a cabeça a apertar, boca seca, respiração descontrolada. Lentamente volta ao normal, lentamente. Ainda bem que estou só naquela “tabanca”, ainda bem. Tormentos de periquito.
O tempo, o hábito, tantos Uros… geraram rotinas normalidades… Quem me leva os meus fantasmas… como diz a canção. A Vida???
3 – VIDAS
O Calor ainda aperta, a chuva cai e formam-se pequenos regatos entre as tabancas. Ruídos de vida vêm das outras tabancas, em redor de sua, habitadas pelos picadores africanos e famílias.
Vidas partilhadas. Bebe mais um longo gole de uísque, acende um cigarro e olha os ponteiros luminosos do relógio. Tão cedo.
Não quer adormecer e, menos ainda, beber mais um comprimido daqueles.
Em caso de ataque está mais desperto.
Vidas! Ali, sem luz, sem nada, só, a poder encontrar-se com ele mesmo. Tem todo o tempo. Isso não falta até Mansambo ser aquartelamento. De dia, os militares, na mão direita pá ou pica e na esquerda a G3. Tretas! Mas era duro.
Que vidas. Os novos “aguentadores” do Império. Até quando?
Ali está, só, meio deitado, tronco nu, fumando, pensando e, por estranho que pareça, resignado. O objectivo é manter vivos os camaradas e ele. A missão: construir o aquartelamento, fazer operações, aguentar os ataques IN. Para isso fora treinado e outros treinara. Mais um “beijo” na garrafa de uísque.
Que vida! O pensamento voa para o País dele, tenta logo contrariar. Mas pensa:
- O meu País é enorme, vai do Minho a Timor, “uno”, desenvolvido. Ou não?
Será pequeno, “paroquial”, bafiento, pleno de medos e temores, de vénias, de classes de benesse e favor. De ajuda a pobres? Pára. Volta a concentrar-se na chuva e nos ruídos.
Sem querer sente-se pobre, coitado, a precisar de ajuda. Sem querer, é levado a pensar naquelas Senhoras que ajudam os pobres soldados. Muitas bem intencionadas, algumas com filhos ou familiares lá. Outras menos, a matarem o tempo, a viajarem pelas “províncias”, pouco pela Guiné, e a voltarem a Lisboa, felizes com “os nossos rapazes”. Depois de breve descanso, promovem reuniões, chás e canastas, récitas e outras, possíveis, fontes geradoras de angariação de fundos para os rapazes.
Há tarde, a meio da tarde, reúnem-se, falam, combinam, dão pequenos goles no chá, diminuta dentada no bolo com creme que, quase directo, lhes vai aumentar as adiposidades derramadas no veludo das cadeiras.
Depois partem alegres, comedidamente risonhas e sentem-se mais frescas, menos afrontadas, nas menopausas há muito iniciadas.
Ele pensa será justo assim pensar? O País dele é assim? Uísque ou loucura?
Que Vidas!... Aos poucos sente o sono a chegar e deixa-se ir com ele…
- Morfeu, olá…
Lentamente, ele vai… espera, é sono sem sonhos ou tormentos…
Quantos estarão assim? Quantos… ? Que vidas !
___________
Nota de L.G.:
(*) Vd. alguns dos postes mais recentes do T.M., relacionadOs com a série
Blogoterapia... Pensar em Voz Alta:
23 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2978: Blogoterapia (57): A Guerra estava militarmente perdida...o 10 de Junho. (Torcato Mendonça)
9 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2925: Blogoterapia (55): Pensar camarada...! (Torcato Mendonça)
16 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2851: Blogoterapia (52): Pensar em voz alta... De quantas mentiras é feita a verdade ? (Torcato Mendonça)
17 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2768: Blogoterapia (48): Pensar em voz alta... A nossa por vezes difícil mas sempre boa con(v)ivência (Torcato Mendonça)
14 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2758: Blogoterapia (47): Pensar em voz alta... O tédio que às vezes nos invade (Torcato Mendonça / Carlos Vinhal / Virgínio Briote)
1 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2597: Blogoterapia (45): Pensar em voz alta (Torcato Mendonça)
19 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2558: Blogoterapia (44): Pensar em voz alta (Torcato Mendonça)