1. Em mensagem do dia 17 de Dezembro de 2008, o nosso camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351,
Cumbijã, 1972/74, enviou-nos mais este episódio para a história dos Tigres de Cumbijã.
CUMBIJÃ , ABRIL DE 1973
OCUPAÇÃO DO CUMBIJÃ E CONSTRUÇÃO DAS INSTALAÇÕESNunca a máxima adaptada “vale mais uma fotografia do que mil palavras”, se aplica para descrever o que fomos encontrar. Terminei o último capítulo da saga dos Tigres do Cumbijã com duas fotos que mostram, à superfície, o que encontrámos; iniciaria este novo capítulo com as mesmas fotografias. Poderão ver um deserto imenso, entrecortado por meia dúzia de árvores, uns paus espetados no chão, crateras enormes provocadas pelo rebentamento de granadas de morteiro, e no meio, um obelisco feito em cimento pelos soldados que anteriormente haviam estado no velhinho Cumbijã, que registava o nome do pelotão (?), bem como o período de tempo que tinham permanecido no local.
O Cumbijã havia sido abandonado em 1968, era então Comandante geral da Guiné o Gen Arnaldo Schultz, pois os sucessivos ataques a que o aquartelamento era sujeito causavam inúmeras vítimas na população e na tropa, pelo que o comandante do destacamento terá recebido ordens para abandonar as instalações. Os chefes da antiga Tabanca viviam agora em Aldeia Formosa, onde os procurei, para junto deles colher o maior número possível de informações que me pudessem ser úteis no terreno. Constatei de imediato a enorme alegria que sentiram quando souberam que a sua antiga povoação ia ser ocupada pelos militares e, quando me deslocava ao Quebo, insistiam comigo para irem na coluna visitar o que restava da sua Tabanca.
Ainda era cedo… tínhamos de picar toda a região do Velhinho Cumbijã. Era difícil detectar qualquer rasto do PAIGC pois, como podem constatar pelas fotos, o terreno estava muito seco e calcinado. Dois grupos de combate dormiam permanentemente na região do Cumbijã, e durante o dia picavam o antigo destacamento. Dormíamos no chão
e tínhamos sempre magníficas refeições: Ração de combate. Os outros dois grupos ainda iam dormir a Aldeia Formosa, protegendo a Engenharia ou fazendo a escolta à coluna de reabastecimentos, Aldeia - Buba - Aldeia. Os grupos revezavam-se nas tarefas, mas por ordens dos maiorais ainda não estávamos todos juntos.
A picagem foi extremamente dura. Segundo alguns crânios estávamos a ser lentos… A sua caixa esquelética encerrava muito pouco encéfalo, daí que tenha de pormenorizar:
No dia dois de Abril levantámos três minas anti-pessoal e uma mina anti-carro.
No dia três de Abril levantámos nove minas anti-pessoal e três minas anti-carro.
Juntámos e fotografámos a molhada como podem verificar pela fotografia.
Éramos todos picadores!
Aqui uma pequena nota para a perícia do Alferes Beires no tratamento das minas (é o primeiro da esquerda na fotografia, depois está o Portilho, cabo enfermeiro, eu e o Abundâncio de quem já vos falei). O José Manuel Sarmento de Beires era na altura Furriel, tendo sido, por minha proposta, graduado em Alferes pelo Gen Spínola e foi, a par de muitos outros, um excelente colaborador. Já não estou com ele há muito tempo pelo que lhe envio um abraço fraterno e reconhecido.
A zona estava limpa! A engenharia podia começar a desmatar a região à volta do futuro aquartelamento e começar a colocar a primeira fiada de arame farpado, para que rapidamente as tendas de campanha pudessem ser enviadas para o Cumbijã. Era a possibilidade de dormirmos em camas. Vêem, tudo é relativo! Quantos de nós nos queixávamos de ter de fazer uma emboscada nocturna… E dormir, agora, no chão emboscados durante vários dias?
De três para quatro de Abril vim a Aldeia a uma reunião com os entendidos em mapas. Dormi como um justo.
VISITA FATÍDICA AO CUMBIJÃNa manhã do dia seguinte, quatro de Abril, aguardando pela coluna de Engenharia que seguia para a frente dos trabalhos, fui abordado por um camarada da minha Companhia, que ainda não conhecia o Cumbijã que então se começava a transformar, fui abordado por um camarada, dizia, de seu apelido Setúbal, para que o autorizasse a ir ver os trabalhos, já que o seu pelotão nesse dia estava de folga. Disse-lhe que sim e em má hora o fiz.
Chegados ao Cumbijã, apeei-me da chaimite e quando me dirigia para o local onde se encontravam as máquinas de Engenharia, com a finalidade de conversar com o encarregado da terraplanagem, ouço mesmo a meu lado, um estrondo enorme seguido de um grito pungente, doloroso que ainda hoje me aflige, do meu camarada Setúbal de seu nome CARLOS ALBERTO ROCHA LANÇA, que havia accionado uma mina. Coloquei-lhe a mão debaixo da cabeça, e ainda hoje não percebo a intenção da pergunta que me fez:
- Ó meu capitão, porquê eu?
A mina que pisara era uma viúva negra, não sei onde foram buscar esta designação. O meu camuflado da perna direita ficou todo esburacado e mais dois companheiros apanharam ligeiros estilhaços. Tratado, o meu camarada foi evacuado para Bissau e mais tarde para Portugal.
Já não se encontra entre nós. Onde quer que estejas, sabe que a tua memória será sempre recordada e que o teu nome é sempre falado alto, pelo menos nos encontros anuais que vamos mantendo.
Como é possível? interrogava-me. Havia jurado que nenhum homem meu voltaria a pisar uma mina e era de uma obsessão, reconheço que por vezes exagerada, na picagem do terreno. Tínhamos passado incólumes durante Fevereiro e Março à quantidade enorme de minas que eram colocadas sobretudo na estrada em construção, ao contrário de outras forças que pisavam o mesmo terreno. As minas eram (e são) para mim o expoente máximo da cobardia. Não dão a cara!
Havíamos picado ao centímetro todo o Velho Cumbijã! Como era possível uma mina dentro do perímetro definido para a colocação do arame? A resposta estava à vista e daria um conto, se eu tivesse capacidade para tal. Eis então o que aconteceu.
Referi acima a existência de um pequeno monumento deixado pelos nossos antigos camaradas em 1968. Mal eles sabiam que a sua existência causaria estragos cinco longos anos depois. O português é por norma desenrascado e habilidoso e então para “embelezar” a construção, rodearam-na de uma estrela com quatro ou cinco pontas, feita com garrafas de cerveja espetadas na terra com o gargalo para baixo. A zona interior da estrela que tinha terra havia sido picada minuciosamente. Mas o IN. havia levantado duas ou três garrafas no meio de uma das pontas e colocado uma mina anti-pessoal, voltando a repor as garrafas de cerveja com toda a minúcia no mesmo sítio.
A curiosidade do nosso camarada Lança levou-o a subir para uma das pontas da estrela, para daí melhor poder ler as inscrições feitas numa espécie de livro que encimava o tronco do pilar. Foi-lhe fatal.
Entretanto, as obras continuavam a ritmo desenfreado com as máquinas a abrirem valas, o pelotão de Engenharia a colocar duas fiadas de arame farpado entre as quais mais tarde se semeariam minas Claymore de comando à distância, a minha malta montava as tendas que entretanto tinham chegado, enfim lá nos íamos instalando como podíamos.
Para que fique gravado na história da nossa Companhia mostro a evolução das obras no Cumbijã, através das fotografias que anexo.
Claro que não tínhamos sequer um arremedo de instalações sanitárias, a água e os géneros tinham que ser trazidos de Aldeia Formosa, para onde um grupo de combate se deslocava diariamente. Por esta altura, estamos em oito de Abril, ainda só tínhamos estacionado em definitivo dois GCOMB. O silêncio do PAIGC, por estes dias era total! Há quase uma semana que não havia emboscadas à coluna que vinha do Quebo para a frente das obras da estrada, no decurso do período de trabalho, nicles… e a malta dos Tigres ainda não tinha embrulhado nas suas novas e luxuosas instalações.
INAUGURAÇÃO OFICIAL DAS INSTALAÇÕESIa o dia nove de Abril quase no fim, quando os Tigres sofrem um ataque a parecer bem. Era a primeira reacção do PAIGC à construção do acampamento. Os dois GCOMB que então se encontravam no Cumbijã são confrontados com um ataque violentíssimo de morteiro 60, RPG7, RPG2 e armas ligeiras, tendo mesmo o grupo IN tentado o assalto. O primeiro disparo de RPG2 destruiu por completo uma tenda de campanha, tendo-nos causado oito feridos. Ripostámos forte e feio, e dizem-me alguns soldados que viram integrados no grupo que veio ao arame dois brancos. Vale o que vale… mas que foi muito duro para os dois GCOMB foi. Mas as entradas ali não eram permitidas… só pela porta de armas, que não havia. Os feridos, suponho que todos eles ligeiros, foram de seguida para Aldeia Formosa.
Por esta altura, não tínhamos uma única arca, a cerveja que trazíamos de Aldeia, com duas horas de Cumbijã aquecia (mas nunca sobrava nenhuma), não havia instalações sanitárias, para quê, luz que é isso(?), água para banho nos bidões de óleo quando havia, mas tínhamos recebido uma cozinha de campanha, que nos fornecia o arroz com “estilhaços” bem quentinho, servido em pratos de lata, que eram levados para as tendas de cada um. Foi terrível este Abril, mas Maio seria bem pior; muito pior.
A vida continuou, as obras continuaram, a coluna diária a Aldeia mantinha-se, a segurança aos trabalhos da estrada prosseguia e mais uma visita do General Spínola aos Tigres que fica para o próximo capítulo, visita essa que está profusamente ilustrada, fotograficamente falando, é claro…
Vasco da Gama
O Velhinho CumbijãPrimeira fiada de arame farpadoDuas fiadas de arameJá com a maior parte das tendas montadasPrincipescas instalações do Tigre MaiorIçando a BandeiraLevantando uma A/C : Beires, Portilho (cabo enfermeiro), Vasco e AbundâncioMolhada de minas levantadas no Velhinho Cumbijã
Texto e Fotos: © Vasco da Gama (2008). Direitos reservados.____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2008
Guiné 63/74 - P3640: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (4): 1973, Ano Novo... Vida Velha