quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3640: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (4): 1973, Ano Novo... Vida Velha

1. Mensagem de Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74, com data de 11 de Dezembro de 2008, com mais um episódio da História dos Tigres (*).

Ano novo… Vida velha

Janeiro de 1973 inicia-se porco, feio, violento, e o primeiro aviso de que a Guiné era a sério acontece-nos a 10 de Janeiro.

Um dos nossos Grupos de Combate fazia patrulhamento em IEROIEL - SAMBA SEIDI - Rio Nafa, portanto na zona de Aldeia para a fronteira, quando o quarto elemento da coluna accionou uma mina antipessoal.

Contactado o quartel de Aldeia, logo saí a comandar um Pelotão reforçado, com a colaboração de um guia, e rapidamente chegámos ao local. Tomadas as devidas precauções, evacuei de imediato o ferido grave, de seu nome Francisco da Silva Ribeiro Mota, para Aldeia Formosa, de onde foi transportado para Bissau e, mais tarde, ainda no decurso do mês de Janeiro para Portugal. Fizemos o reconhecimento da zona e constatámos vinte e cinco abrigos bem cavados situados a cinco metros do trilho minado. Picámos cuidadosamente todo o trilho e encontrámos e levantámos duas minas anti-pessoais. Segundo o guia que me acompanhou e com quem tanto aprendi numa aula prática forçada, teria estado preparada uma emboscada por um grupo que havia abandonado o local cerca de duas horas antes, seguindo na direcção do rio Habi e flectindo depois para o sul.

Uma nota de apreço e louvor aos nossos guias

Uma pequena nota, para mim de importância fundamental, no sentido de elogiar o papel dos guias que comigo trabalharam, verdadeiros mestres de caminhar no mato e com um sentido de orientação apuradíssimo, sempre atentos a indícios que passavam despercebidos à grande maioria dos nossos soldados, e que eu exigia que eles me explicassem para que os homens que eu comandava pudessem mais tarde absorver.

Já que falo nos guias, foi com grande estupefacção que li há uns tempos atrás num poste da nossa Tabanca que o capitão de determinada companhia mandava matar os guias, finalizada que fosse a Operação em que estes participavam. Acabei por não saber se era ficção ou realidade.


Se era ficção dela ressalta o desprimor com que alguns conseguem aguiar (consultar dicionário) (**) com cores escuras e adjectivos caluniosos os que foram obrigados a combater; pelo contrário se foi realidade, não entendo o silêncio cobarde dos que não foram capazes de tornar público crimes de tal tipo no momento próprio. Nunca tive medo de nenhum superior hierárquico, sempre os respeitei, como respeitei todos os meus camaradas, mas a nenhum deles consenti que me pusessem o pé no cachaço. Nem a militares nem a civis.

Sou do tempo em que na Faculdade de Economia se fez greve a um ditador, enganei-me, a um professor muito antes do 25 de Abril! Exactamente, antes do 25 de Abril! Soube arcar com as consequências e ainda hoje aos sessenta e dois anos prefiro a fome do lobo à coleira do cão.

A minha modesta participação na Tabanca Grande, que em boa hora descobri, e que julgo ter também como fundamento um convite à vida participada, vai no sentido, atrevo-me a dizê-lo, de que as gerações que se nos seguiram, incluindo os que nos (des)governam, tenham o respeito por quem tanto sofreu e não se esqueçam de se curvar respeitosamente perante todos os camaradas que tombaram em combate numa guerra que não era a deles.

A esmagadora maioria dos ex-combatentes tem a humildade e a solidariedade, que são conceitos sem significado na vossa sociedade de senhores de anéis e de podres compadrios. Penso não conhecer pessoalmente nenhum dos camaradas da Tabanca (***), mas sinto-os como elementos da minha família; vocês, os que não nos conhecem, também não conhecem nem cumprimentem o vosso vizinho que mora no andar de baixo ou de cima.

Ex-combatentes, quem são esses gajos? Eram pedreiros, carpinteiros, médicos, engenheiros, padeiros, universitários, analfabetos, arrancados à família e ao emprego e obrigados, na sua esmagadora maioria, a partir para o desconhecido com a preparação militar, em muitos casos de pouco mais de seis meses, que dependiam uns dos outros para sobreviver. A amizade que se criou e que perdura há quase quarenta anos é algo que os senhores nunca vão conseguir descobrir…

Voltemos ao malfadado ano de 1973 e , se ainda não me perdi, estamos em Janeiro.

Segurança à construção da estrada Aldeia Formosa-Cumbijã

Volvidos quatro dias, portanto a 14 de Janeiro, estávamos em preparação para uma saída que consistia numa emboscada nocturna, seriam umas 15 horas, um camarada do mesmo grupo do Mota, por distracção, ao preparar a G3, deu um tiro que felizmente só lhe arrancou parte da falangeta. Teve no entanto de ir para Bissau curar-se dessa maleita.

A 19 desse mês os Tigres voltam a ser visitados pelo Sr. Comandante Militar, novamente para apreciar a nossa evolução. Pareciam visitas a mais dos Graúdos, mas elas continuaram como vamos ver e ilustrar.

Por esta altura a estrada ia caminhando a bom ritmo e a nossa Companhia, em conjugação com outras forças, picava a frente dos trabalhos. À noite emboscávamos na Zona do Cumbijã ou vínhamos dormir a Aldeia, tudo dependia da articulação com as outras Companhias. Quando dormíamos em Aldeia seguíamos na coluna militar que protegia centenas de capinadores e outros trabalhadores da Engenharia, bem como as máquinas. Os vestígios de passagem de grupos do PAIGC eram cada vez mais evidentes. Sabíamos que antes da estrada chegar ao Cumbijã as coisas iam aquecer.

No dia vinte avancei um pouco mais com a Companhia e detectámos um carreiro enorme por onde tinham passado havia pouco tempo um grupo estimado em mais de quarenta homens. Redobrámos os cuidados, apresentou-se um relatório detalhado dos movimentos na frente dos trabalhos e, curiosamente, a vinte e cinco de Janeiro, Aldeia Formosa é flagelada durante quinze minutos, tendo sido referenciados 60 rebentamentos. Digo curiosamente pois os ataques a Aldeia Formosa provinham de bases situadas do lado contrário ao da frente de trabalhos.

Na manhã seguinte, dia 26 de Janeiro, ainda comentando o embrulhanço da véspera, que mais uma vez não causara qualquer mossa, lá vai a malta toda para a frente da estrada em coluna auto quando em XITOLE 4G 7-21 (vd carta militar) levámos com uma emboscada a parecer bem.

Para além da minha Companhia seguiam também dois grupos da CCaç 18. As crónicas oficiais rezam que fomos emboscados por um Bigrupo IN com morteiros, RPG e armas ligeiras. Na reacção à emboscada a CCaç 18 teve dois feridos graves, um dos quais era um graduado, penso que furriel. A nossa Companhia não teve feridos. Passadas umas horas uma viatura do Batalhão de Engenharia accionou uma mina anticarro na região da Pedreira, mas o condutor saiu ileso.

No dia 29 dois Gr Comb dos Tigres em conjunto com um Pelotão da 6250 detectaram uma mina anticarro com dispositivo antilevantamento e 12 minas antipessoais.

A morte de Amílcar Cabral, chorada por uns, festejada por outros

Janeiro havia chegado ao fim, mas algo de muito importante não pode deixar de ser referido: O assassinato de Amílcar Cabral que ocorreu a 20 de Janeiro de 1973 em Conacri (e não no Senegal, como alguém por distracção postou no blogue).

Não vou entrar em considerações sobre a pessoa de Amílcar Cabral, não tenho capacidade para tal e os entendidos já publicaram literatura suficiente para todos os gostos sobre essa personalidade que, quer se queira quer não, foi o paradigma das lutas de libertação das ex-colónias.

Apenas dois pequenos registos, o primeiro para dizer que um amigo do meu pai, também homem do reviralho, mas bastante mais jovem e bastante mais contundente na forma como manifestava os seus ideais, fora colega do, também como ele, engenheiro Amílcar Cabral. A segunda nota é uma nota de tristeza para a alegria com que pelo menos duas pessoas festejavam, bebendo à saúde da morte do Cabral. O nome tinha outra terminação e os artistas eram oficiais. Curiosamente ou talvez não, nenhum dos dois era operacional.

Lembro-me de cena semelhante com outros personagens, era eu professor no Instituto Superior de Contabilidade e Administração, quando a morte do Dr. Sá Carneiro foi também comemorada, dizem-me que durante toda a madrugada de 4 para 5 de Dezembro de 1980. Lembro-me da data, pois eu havia casado a 5 de Outubro de 1970. Palavras para quê?

Fevereiro, dia primeiro, mais um ataque ao aquartelamento de Aldeia durante cerca de, cito, 50 minutos com cerca de setenta granadas de canhão sem recuo e 6 Foguetões 122. Nunca tinha ouvido o estrondo de um foguetão. Esses assustaram-me, mas foram um bom treino para o que nos aguardava no Cumbijã e posteriormente em Nhacobá. Houve sempre uma coisa que me intrigou durante todo o tempo em que estivemos em Aldeia, não me lembro de nenhuma granada ter caído dentro do quartel. Teria o PAIGC receio de acertar na população que se acantonava à volta do quartel?

O Cancioneiro de Cumbijã

Seria fastidioso enumerar todos os ataques que sofremos neste período sobretudo na protecção à estrada, como seria injusto não referir uma das Companhias do Batalhão que, já muito perto do final da comissão, foi fustigada por uma série de azares: a Companhia de Caçadores 3399, vulgarmente conhecida pela 99 e comandada por um capitão do quadro chamado Horácio Malheiro, de quem voltarei a falar mais adiante. Foi meu companheiro de longas conversatas, homem extraordinariamente simpático, com quem me identifiquei pouco tempo após a chegada a Aldeia, e era sobretudo solidário nos reveses que iam surgindo.

Não o vejo desde Julho de 1973, pois a partida do seu Batalhão coincidiu com a minha vinda de férias a Portugal. Deixou-me uma carta muito simpática que ainda hoje conservo, tendo também herdado alguns dos seus bens.

Neste período de Fevereiro/Março em que a guerra das minas era tremenda, pelas minhas notas registo, relativamente à 99, um ferido grave e dois ligeiros a 4 de Fevereiro, outro ferido grave a 26 de Fevereiro também por accionamento de mina e ainda um outro em finais de Março. Também um dos nossos camaradas de Mampatá, Companhia comandada pelo Marcelino, meu colega de curso e amigo, teve a infelicidade de accionar uma mina a 16 de Março na frente de trabalhos da estrada.

A CCav 8351 havia passado incólume a este vendaval de minas. Apenas uma pequena nota pessoal para o meu camarada Manuel Félix, o melhor pica da Guiné.

Os dados estavam lançados, o destino dos Tigres era... o CUMBIJÃ.

Termino mais um capítulo, desta feita com um poema premonitório que o meu camarada Tavares de Bastos, alferes da CCaç 3399 me dedicou

NA ESTRADA DO CUMBIJÃ

Vêm picadores
Incertos descobridores
da oculta traição
e deixam pedaços de si próprios
nas bermas alagadas.
Os camaradas raivosas lágrimas
a mata ri, quietamente.
Vêm também atiradores caçadores
naquelas viaturas
às centenas os negros descapinadores
e a engenharia.
Há calor de emboscada tiroteio estrondos
crepitam as armas infernais.
Berros caralhadas ais.
Sangue.
E alguém morre sozinho no chão estranho
E o irmão de longas horas não sente
Já não quer
Apaga a dor.
O hábito queima a dimensão do perigo.

Pela manhã
Há escura guerra
Nesta terra
Do Cumbijã.

Máquinas malucas ( orgulho da técnica )
Com fúria galgam bolanhas irrompem capim selvas;
As árvores tombam… amanhã levantar-se-ão… depois…
Poeira
suor
nuvens nos olhos
a terra é rasgada violentada.
Atrás o alcatrão arrasta-se
Mas os dias, os dias não fogem
nesta terra
do Cumbijã
onde logo pela manhã
há guerra.

Lá,
onde o rio solteiro (?!) alaga extensos arrozais,
Nhacobá,
longe da confusão,
promete rebelde vulcão
que não parará jamais.


Por esta altura estava desfalcado de dois alferes. Um tinha ido para a Chamarra, outro para Bissau.

Estou cansado, camaradas, deixo-vos com duas imagens do que era o Cumbijã.

Vasco da Gama (***)


Guiné > Regiãod e Tombali > Cumbijã > 1973 > CCAV 8351 (1972/74) >A triste paisagem de Cumbijã, na época seca...

Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > 1973 > CCAV 8351 (1072/74) > As minas, sempre as minas, as malditas minas...

Fotos: © Vasco da Gama (2008). Direitos reservados

___________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3638: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (3): Jan 73: Com o Cherno Rachide, em Aldeia Formosa

(**) Aguiar, o m.q. fazer tratantadas

(***) O que era verdade no dia 11 de Dezembro, mas não no dia 13: O Vasco apareceu na sessão de lançamento do livro do Coutinho e Lima e teve oportunidade de fazer novos amigos...

(****) Subtítulos e negritos da responsabilidade do editor

5 comentários:

Anónimo disse...

Li, reli, vim mais abaixo no texto e ,para comigo disse: disto nunca tinha aqui, neste espaço ou site ou sitio, lido. E voltei atrás e novamente li e não se trata de AGUIAR - creio ser praticar uma velhacaria - trata-se, isso sim de um ACTO diferente. Onde está isso? Prefiro nada mais escrever.
Os meus Cumprimentos
Torcato Mendonça
Ex combatente na Guiné

Carvalho disse...

O soldado a que te referes como tendo calcado uma mina em 16 de Março de 1973,veio a morrer no H. M.Bissau, no dia 21 do m. mês.Foi o nosso segundo e último morto.Está sepultado no cemitério de Barcelos e chama-se José Lopes de Albuquerque.Já agora, sendo que os nossos convívios anuais se realizam sempre em casa de um dos componentes da companhia, o de há 2 anos, decorreu (por estranho que pareça) na casa de um seu irmão, com a sua fotografia ampliada, exposta.

Anónimo disse...

O Capitão que praticava tais actos, pelo que me lembro de ter lido, seria com guias prisioneiros 'de fresco' e não com os guias normais de tabanca. O que de qualquer maneira não branqueia o acto.

Anónimo disse...

P3515

Hélder Valério disse...

Caro camarada Vasco da Gama, quero apenas sublinhar o meu acordo com a frase "Ex-combatentes, quem são esses gajos? Eram pedreiros, carpinteiros, médicos, engenheiros, padeiros, universitários, analfabetos, arrancados à família e ao emprego e obrigados, na sua esmagadora maioria, a partir para o desconhecido com a preparação militar, em muitos casos de pouco mais de seis meses, que dependiam uns dos outros para sobreviver. A amizade que se criou e que perdura há quase quarenta anos é algo que os senhores nunca vão conseguir descobrir…".
É bem verdade que essas amizade e solidaridade se cimentaram nas condições adversas que enfrentámos (pessoalmente ou como grupo geracional) mas não será esse o "caldo de cultura" que nos permitiu formar o nosso carácter? Sem querer formular aquele discurso de que "no meu tempo é que era" acho que as novas gerações terão que encontrar rapidamente novas orientações e por isso é que reforço a idéia de que este nosso blogue e o seu repositório de memórias e experiências os pode ajudar.
Cumprimentos
Hélder Sousa