quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Guiné 61/74 – P22630: (Ex)citações (395): 8º Encontro Ranger, 1º Turno de 1973, em Beja (José Saúde)



Beja > Taberna A Pipa > 2 de outubro de 2021 > 8º Encontro  Ranger, 1º Turni de 1973 


Fotos (e legendas): © JoséSaúde (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem:



8º Encontro Ranger, 1º Turno de 1973, em Beja

Beja foi a cidade que acolheu camaradas e alguns dos seus familiares.

Foi em Beja, cidade fundada 400 anos a.C. pelos celtas, e mais tarde denominada como Pax Júlia aquando da sua conquista pelo Império Romano, sendo o imperador Augusto o comandante das tropas, que no passado 2 de outubro, sábado, que se realizou o 8º Encontro Ranger, 1º Turno de 1973.

Após uma pausa, pois a Covid-19 assim o determinou, foi na Taberna “A Pipa”, propriedade da Chefe Saudade e do Jorge Maldonado, com a ajuda da funcionária Silvina, que o grupo de camaradas rangers se juntaram (41 contando com os seus familiares) e dissecaram pedaços de uma história que ficou marcada pela nossa presença na guerra colonial.

Na verdade, a Guiné, como foi o nosso caso, por lá passaram uma imensidão de camaradas que jamais esquecerão o mar de tréguas a que fomos então submetidos. Sim porque estes momentos, onde a amizade prolifera, leva-nos a uma viagem no tempo e recordar os climas difíceis que nós, jovens na casa dos 20, 21, 22, ou 23, obrigatoriamente suportámos.




Que a história, biografia e narração de factos, nunca esqueça de uma peleja (recente) onde se cruzaram gerações e que ditou números de mortos e feridos que citarei com o rigor extraído de fontes fidedignas e que relato no meu nono livro “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74”,  edição da Editora Colibri:



“A guerra de além-mar mobilizou mais de 800 mil combatentes, dizem os respetivos cadastros. Segundo dados oferecidos pelo Estado-Maior General das Forças Armadas, terão morrido na Guerra de África 8831 militares portugueses, sendo que em Angola se registaram 3455 mortes, em Moçambique 3136 e na Guiné 2240.

"Especificando o conteúdo de falecimentos nos três ramos das Forças Armadas, conclui-se: Exército, 8290; Força Aérea, 346 e Marinha de Guerra, 195.




"No que concerne à componente dos feridos, observa-se que cerca de 30.000 foram evacuados entre os demais de 100.000 registados nos censos militares.

"Um outro dado considerado importante, tendo em conta a diversidade de patentes dos antigos combatentes na guerra, certifica-se que a listagem atesta: 1 general, 2 brigadeiros, 3 coronéis, 15 tenentes-coronéis, 22 majores, 100 capitães, 40 tenentes, 300 alferes, 900 sargentos e furriéis, 1600 cabos, 5500 soldados e marinheiros”.

 Um abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74)
 
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série


Guiné 61/74 - P22629: In Memoriam (413): Torcato Mendonça (1944-2021), ex-alf mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... Homenageando também um casal que sempre soube, em vida, amparar-se mutuamemnte, "na saúde e na doença" (Luís Graça)


Fundão > 27 de Janeiro de 2007 >  O Torcato Mendonça (TM) que eu conheci, pessoalmente,no Fundão, sua terra adotiva... Foi lá que casou com a Ana Lurdes e onde nasceram os seus filhos, dois rapazes. O TM  que encintrou para a nossa Tabanca Grande em 2006, participou pelo menos em cinco dos nossos encontros nacionais, de 2007 a 2011.


Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > 17 de Maio de 2008 > III Encontro Nacional da Tabanca Grande > A Ana, que veio a conduzir do Fundão, para acompanhar o seu José (alter ego do Torcato Mendonça). 

A Ana Lourdes de Mendonça foi coordenadora dos serviços administrativos do conceituado Jornal do Fundão (que alguns de nós assinávamos na Guiné, ao tempo da guerra, a par do Comércio do Funchal, do Notícias da Amadora e outros).

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Agora que o nosso querido amigo, camarada e colaborador Torcato Mendonça deixou a Terra da Alegria (*), e nos deixou tristes, inconsoláveis e mais pobres, vou recuperar escritos antigos em que falo dos dois, do José e da Ana, um casal por quem sempre tive admiração e carinho porque souberam, ao longo da sua vida em comum,  amparar-se um ao outro "na saúde e na doença". A Ana, felizmente, continua viva e vai por certo continuar a acompnhar o nosso blogue (**)


Em 17 de maio de 2008, veio de longe, do Fundão, das faldas da Gardunha, a conduzir, com o seu José ao lado (que pode mas não deve fazer tantos quilómetros ao volante), só para estar com os seus (dele) camaradas da Guiné... Le coeur oblige, mon bijou... E o que tem de ser tem muita força, diz o provérbio: a doença, traiçoeira, que vem trazer negrura às nossas vidas, apreensão aos que nos amam, incerteza aos que nos rodeiam, finitude aos nossos projectos, angústia para o jantar, pesadelos às tantas da madrugada...

Nem um ai nem um ui: a Ana (Mendonça, por casamento) viveu, em silêncio, o seu drama, individual e familiar... No píncaro do Verão... Por uns tempos, o José desapareceu (ou melhor não apareceu, recolheu-se, não se expôs, preparou-se, como nos duros tempos de Mansambo, da CART 2339, mobilizou toda a sua energia para fazer face à devastação)....

Como é que a nós, distraídos com as nossas blogarias - tu, Carlos, tu, Virgínio, eu, Luís - , não nos ocorreu que algo estava errado nessa pesada cortina de silêncio, puxada pela mão do Torcato Mendonça, o TM, um homem com lugar ao sul e que gostava de pensar em voz alta ? 

Em meados de dezembro de 2008,  escrevi-lhe, ao TM,  o seguinte:

"Um bj para a tua Ana, que é uma mulher de armas e que já sei que voltou ao trabalho... A vida é dura, José, aqui ou em Mansambo... Mas também pode ser bela, se tiver afecto(s): amor, paixão, amizade, camaradagem, emoção, compaixão, poesia... 

Diverte-te, se puderes: 'Esta vida são dois dias e o Carnaval são três'... Mas há, pelo menos, uma certeza: 'Quem de novo não morre de velho não escapa'... 

Uma coisa que a guerra da Guiné não nos deu, foi serenidade... Pelo contrário, trouxe-nos inquietude (que é mais do que inquietação). Em contrapartida, aprendemos a enfrentar a morte e a não temê-la: 'Temer a morte é morrer duas vezes' ... E tu és, para nós todos, um exemplo vivo e corajoso, de como um homem pode sorrir à morte com meia cara ou meio coração, parafraseando o título da narrativa autobiográfica do grande escritor José Rodrigues Miguéis, um lisboeta de Alfama (1901) que morreu longe da Pátria, da Mátria e da Fátria (Manhattan, N.Y., 1980). 

Que esta tertúlia, a nossa Tabanca Grande, seja, ao menos para ti, um pouco da Fátria perdida em Mansambo, em Bambadinca e em tantos lugares da Guiné onde sofremos e fomos solidários"...

A Ana, que voltou ao seu José, passou a acompanhar desde então com solicitude mas também com a máxima das discrições as nossas blogarias... E o Natal de 2008 surpreendeu-me (e emocionou-me) com o seguinte cartão do José onde se podia ler:

"Luís Graça: Um beijo agradecido pela simpatia posta na mensagem (de força) enviada através do Torcato e que eu li. Votos de um Feliz Natal extensivo a toda a Família. Ana Lourdes de Mendonça"...

Somos, afinal, um blogue de afectos e de histórias, mas também de gente solidária... Por um momento, por uma vez ao menos, eu senti que valeu (ou valia)  a pena esta tontaria de querer juntar o fio de tantas meadas, de destar tantos nós da memória, de inquirir estas tantas vidas que foram/são as nossas (parafraseando o belo título do antigo blogue do Virgínio Briote)... Por um dia senti que também podemos fazer bem a alguém...

Senti que as palavras também podem matar, também podem ferir, também podem destruir; senti que as palavras vêm muito antes das balas, e que são as palavras que nomeiam a morte e desencadeiam a guerra, muito antes dos obuzes e dos aviões e dos carros de combate, das minas e armadilhas...Mas também senti que as palavras, em seu sítio, também podem dar conforto, animar, dar força... Senti-me feliz por saber que a Ana, que eu mal conhecia, passava os testes todos de sobrevivência... e estava apta, apartir de então,  para enfrentar o futuro, pronta para o que desse e viesse...

Em de dezembro de 2008, voltámos a pôr a Ana a sorrir, na nossa fotogaleria, como no dia 17 de Maio de 2008, na Ortigosa... E desejámos-lhe Boas Festas:

"Boas Festas,  quentes e boas como as castanhas da tua Cova da Beira... Há castanhas na Gardunha ? Por mim, só conhecia as cerejas, que são as melhores do mundo. E o requeijão... Ah! o requeijão do Fundão. Ah!, e o Torcato, o José, o Mendonça, o Viriato (o santo patrono da CART 2339)!... Ah!, e agora a Ana, mulher da vida do José, e nossa camariga."

Nessa altura aumentou o meu conhecimento (e reconhecimento) da geografia do amor, da amizade, da solidariedade, da humanidade... E por isso eu pedia paar lhe escreverem o nome, no quadro escuro, a giz, onde listamos as nossas mulheres, as nossas companheiras de uma vida, as nossas camarigas: Ana, simplesmente Ana.. Um exemplo de tenacidade e de coragem, para todos nós. 

E mais disse: 

"Temos orgulho em ti, José!... Temos orgulho em ti, Ana. Deixa-me, José, deixa-me, Ana, oferecer-vos, por fim, este poema do meu modesto poemário... Para ler nos dias de chuva miudinha e de tristeza, quando só apetece colar a cara à vidraça da janela virada para o absurdo da doença, do azar, da morte, com o maciço central da Serra da Estrela a aniquilar-nos... No fim, perceberás, Ana, e tu, José, o sentido do título. ("Poemombro, ou o ombro amigo", de Luís Graça,  2004. revisto em 2008) (**) .


PS - O TM (Torcato Mendonça) comentou seca e laconicamente: "Luís,  depois escrevo...agora não, agora não... abraço-te...somente...forte...sentido... desculpa se te molho o casaco...é uma lágrima de facto... recebe o meu abraço Amigo TM

19 de dezembro de 2008 às 10:03 (**)
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Guiné 61/74 - P22628: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VI: Contuboel (mai-set 1965), com gozo licença de férias nos Açores (de 24/8 a 25/9/1965) onde se foi casar...


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)  > "A necessidade faz o órgão": com três pirogas, o Beja Santos improvisou  uma jangada, sem qualquer apoio técnico do BENG 447,  e, perante a incredulidade geral, levou um velho reboque para a outra margem (direita) do Rio Geba Estreito  e dali até Missirá... Ele tinha fama de levar tudo o que encontrava à mão na sede do batalhão,  o BCAÇ. 2852, já que em Missirá não tinha nada: por isso o pessoal de Bambadinca gritava uns para os outros, mal avistavam o Pel Caç Nat 52 a atravessar a bolanha de Finete: "Eh, malta, em guarda, vem aí o Tigre de Missirá!"... Como se fossem piores que  os corsários bérberes que infestavam as costas  algarvias no saudoso tempo do reino de Portugal e dos Algarves.

Três anos antes, o pessoal da CCAÇ 800 que chegou de viatura, de  Bissau, via Mansoa, até à margem direita do Rio Geba Estreito. frente a Bambadinca, deve ter utilizado a mesma engenhoca, uma jangada improvisada para cambar o rio e prosseguir viagem, via terrestre, até Bafatá e depois Contuboel. No seu "diário", o Cristóvão de Aguiar diz que esta simples operação de cambança levou "dois dias e duas noites" (25 e 26 maio de 1965). Chegaram a Bambadinca a 24 e a Contuboel a 27.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2006). 
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)




Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar



(Continuação)

Contuboel, 27 de Maio de 1965

Demorámos dois dias e duas noites para atra­ves­sar o rio Geba com todo o nosso material de campanha. Não tivemos outro re­médio senão comer rações de combate e beber água meio choca e bi­chen­ta. Dor­mi­mos, isto é, atravessámos as duas longas noites com muita mosquitada a atazanar os miolos e a pele. E não houve repelente que a afastasse. 

Chegámos ao que vai ser a sede da nossa companhia anteon­tem ao princípio da noite. Estavam aqui apenas nove homens e um furriel miliciano, que comandava a re­s­pectiva secção de armas pesadas. 

Com a guerri­lha a apertar cada vez mais, os chefes desta guerra estão a guarnecer melhor certas posições-chaves. Fui cum­primentar as forças vivas da terra: o chefe de posto, um branco, ex-furriel e ex-semi­narista, e dois comerciantes − um português, oriundo do concelho de Góis, ainda novo, e res­pectiva consorte; e um li­banês, tam­bém casado, cujo estabelecimento fica em frente da messe. 

Ambos os tra­ficantes não se podem ver um ao outro, como mandam as re­gras da boa vizi­nhan­ça. Não lhes dei grandes con­fianças, sobretudo ao chefe de posto que, para se mostrar valente diante de mim, es­bo­feteou um cipaio que se não levantou à minha passagem na varanda do posto. Cha­mei-lhe a atenção para o facto e ele pare­ceu-me que não ficou nada satis­feito, pelo menos senti-o pelo olhar, que agarrei pelo cabo e devolvi ao seu dono.


Contuboel, 1 de Junho de 1965

PROMESSA

Trago à cabeça
Um cesto de rimas
Que é uma promessa
De novas vindimas...

Meu Avô era tanoeiro:
Fazia pipas e selhas,
Tonéis, dornas e barris...
Meu Pai é serralheiro:
Forja foices e relhas,
Machados e picare­tas...
Somente eu pouco fiz:
- Apenas versos e tretas!



Camamudo, 12 de Junho de 1965

Vim a este destacamento de Bafatá en­con­trar-me com o meu amigo Viriato Madeira, que está prestes a terminar a sua comis­são. Esteve anteriormente, com a sua companhia, na Ilha do Como, durante cerca de um ano, rodeado de arame farpado e sem poder sair do aquartelamento de cam­panha, im­plan­tado no chamado reino do Nino, onde ninguém se atrevia a entrar ou a sair. 

Vie­ram de lá todos bem marcados. Foi tal a nossa alegria, que chorámos como duas crianças perdidas que se reencontram e abraçam uma à outra. E, para festejar o nosso encon­tro, preparou-me uma bebida, que ele chama bomba, espécie de cocktail revolu­cio­nário, que me pôs a dormir ou em coma alcoólico quase ins­tan­tanea­mente. Quando des­pertei, já era tarde para seguir para Contuboel. Mandei um rádio a prevenir que passava a noite em Ba­fatá, na sede do batalhão.


Contuboel, 22 de Junho de 1965

Acabei de riscar a sexagésima cruzinha no ca­len­dário. É uma espécie de desobriga que pratico todos os dias, à noite, antes de me dei­tar. Ainda faltam tantas centenas, meu Deus! Será que chego ao fim? Comprei doze livros de Aquilino Ribeiro num estabelecimento de Bafatá. Cada um custou-me qua­renta e cinco escudos. Tenho muito que ler, se para tal tiver cabeça.


Contuboel, 29 de Junho de 1965

Fui com o meu pelotão reforçar a com­pa­nhia de Fajonquito numa operação de dois dias ao mato do Caresse. Chegámos ontem. Ao descalçar as botas de lona e tirar as peúgas grossas, encardidas, vieram-me pe­daços de pele a elas agarrada. 

Anteontem, a um domingo logo de manhã, ainda an­tes da missa na minha freguesia, na Ilha, onde assisti, durante a emboscada, à en­trada e à saída para lhe receber o sorriso e ficar comungado para o resto do dia, tive então o meu baptismo de fogo. 

Foi cerca de uma hora e meia (o tempo da missa ar­rastada do senhor padre Joaquim) que estive debaixo de metralha constante. Não vi nenhum ini­migo, mas senti-lhe a presença. Fumei quase um maço de cigarros Sa­gres e bebi toda a água do meu cantil e a do meu guarda-costas. 

Os velhinhos da companhia a que nos juntámos, a quatro meses apenas do fim da comissão, estão tão tarimbados nisto, que nem fizeram grande caso do tiroteio, nem sequer respon­deram. A dada altura, piraram-se no en­calço do capitão, para uma clareira onde já não havia perigo de maior. E fiquei mais o meu pelotão ainda durante algum tempo na mira dos guerrilheiros, mas não houve nem mortos nem feridos.


Contuboel, 25 de Julho de 1965

O TEU ANIVERSÁRIO

Neste dia dos teus vinte e um anos,
Dependurei uma violeta
No meu lembrar-te.
Queria oferecer-te açafates
De ternura
E beijos buliçosos
Como estes pássaros
Nos fios de alta tensão...

Lembrei-te
Como quem se demora
No beber uma memória antiga
Em fotografias desmaiadas...


O meu recordar-te
Foi um cortejo de martírio
Ao longo de canadas íntimas
Do saber-te cada vez mais longe,
Fictícia,
E no entanto perto,
Tão aconchegada ao meu peito,
Que deixaste de ser fora de mim...



Bissau, 23 de Agosto de 1965

Parto amanhã para Lisboa em gozo de férias. Vou dar um passo importante na vida e, se calhar, não estou para ele preparado nem ama­du­re­cido. Que se lixe. Preciso urgentemente de um descendente que me pro­longue, no caso de vir a morrer com um tiro na cabeça um dia destes nesta desal­mada guerra de nervos e do resto. 

O livrinho que publiquei não vai dar boa conta de mim [. "Mãos vazias", poesia, 1965]. Precipitei-me. Já tinha plantado uma árvore. Tem apanhado bordoada da críti­ca, que até ar­repia. Vide Pinheiro Torres, no Diário de Lis­boa, e Jaime Gama, no Açores

Quanto ao as­sunto que me leva de viagem, devia es­pe­rar mais algum tempo para depois ler, com outra reflexão e outro descanso, Um Casamento do Pós-guerra, de Carlo Cas­sola.

Pico da Pedra [, terra natal do escritor, ilha de São Miguel] , 19 de Setembro de 1965

Domingo de procissão de Nossa Se­nho­ra dos Prazeres. Durante o almoço familiar, estalejaram alguns foguetes, anun­ciando o le­vantar a Deus da missa da festa. Quando dei por mim, estava deitado no chão, de­baixo da mesa. O que são os reflexos condicionados! Na guerra, temos de actuar o mais rápido possível: mal se ouve um tiro ou qualquer detona­ção, tem uma pessoa de se ati­rar logo para o chão, caso contrário.


Pico da Pedra, 23 de Setembro de 1965

SONS DE DESPEDIDA

No magoado cantar desta chuva,
Es­cuto tristes sons de despedida:
- Amargurados prantos de viúva
Suplicando que o amante torne à vida.

Partir só de braços livres, sem destino,
Como esta chuva caindo sem fim:
- Ter um barco e um sonho de menino,
Que o mar já o trago dentro de mim.

Partir é soltar a tranca da porta
Desta alma que vive quase morta
Na jaula duma luta que se não cansa...

Se o mar que me deixaram em herança,
Me desse uma resposta, uma esperança,
Eu fingiria um tiro na lembrança...


Lisboa, 25 de Setembro de 1965

Acabaram-se as tréguas. Vou de novo de re­gresso a Bissau, sem ânimo de qualidade nenhuma. Quando chegar ao mato, vão de­certo al­guns estranhar que tenha voltado. O sargento Cabaço dizia, em segredo, an­tes de eu vir a férias, que o alferes Aguiar nunca mais poria os pés no teatro de guerra, com certeza iria desertar. E teimava que o sabia de fonte limpa e segura.


Contuboel, 29 de Setembro de 1965

EU E A NOITE

Abro as mãos
E a noite poisa,
A noite pesa-me.

Trago a noite
Vestida
Muito justa
No corpo todo.

Se fecho as mãos,
Não esmago
A noite,
Porque a noite
É tudo
E eu sou
A própria noite.

A noite não se anula
No fogo das estrelas...
Nem a guerra se cala
Na boca das ar­mas.

Nas mãos estendidas,
O peso da noite
E um vendaval de tosse
Na casa­mata do peito...

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Notas do editor

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22627: Historiografia da presença portuguesa em África (285): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Creio que se recordam que aqui se fez a recensão de um livro memorável História das Missões Católicas na Guiné, do Padre Henrique Pinto Rema, é indiscutivelmente a obra com mais significado no campo missionário. Fiz uma súmula de cerca de doze páginas deste incontornável trabalho, espero inseri-lo num livro em preparação "Guiné, Bilhete de Identidade", quem dele quiser ter acesso é só pedir-me. Atenda-se ao espírito da época em que Jorge Velez Caroço exige mais às missões, articula o seu trabalho com a implantação do espírito de ser português, a religião é tida como um dado civilizacional, uma outra acepção do patriotismo, revela o administrador colonial uma manifesta propensão para o uso do crioulo, um passo para a língua portuguesa, e recorda ao governador Carvalho Viegas que onde se põe uma igreja também se deve pôr uma mesquita. Algo mudará nos anos seguintes, com o Ato Missionário, em consequência da Concordata de 1940, mas serão os italianos a aparecer com mais força, como se sabe.

Um abraço do
Mário



Acerca das missões religiosas na Guiné, década de 1930

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, com o n.º Res1-Est145, Pasta P-N.º9 consta um relatório assinado pelo Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, Jorge Frederico Torres Vellez Caroço, com data de 19 de maio de 1934, dirigido ao Governador Carvalho Viegas. O assunto tem a ver com as missões religiosas na Guiné e inicia-se num tom um tanto bombástico:
“Serão talvez as minhas palavras a minha sentença de morte como elemento de ação funcional nesta colónia, mas não importa, pois que, acima dos interesses pessoais e dos interesses de coletividade estão os da Nação. Abordo, Sr. Governador, o problema das Missões Religiosas.
Tem colhido benéficos resultados para a colónia vizinha a ação desenvolvida pelos seus missionários e o seu cuidado vem sendo tal que têm educado e feito missionários indígenas – conforme em tempos idos em Portugal se praticava – entre os quais se contam um Felupe e um Manjaco. Sabe V.ª Ex.ª quem são estes dois indígenas? Um Felupe de Jufunco e um Manjaco da Costa de Baixo. Dois indígenas da nossa colónia. Preferiram estes aos seus próprios indígenas. Sabe V. Ex.ª qual é a língua que estes e outros missionários franceses da região do Casamansa falam aos indígenas da sua própria colónia? O crioulo. Cito até um facto curioso e muito interessante. Em 1932 fez-se em Cacheu uma festa religiosa à Nossa Senhora da Candelária, a santa padroeira daquela vila. Vieram assistir à festa os missionários da colónia vizinha – a pedido dos missionários de Santo António de Bula – e autorizado pelo então vigário-geral nesta colónia, que impôs a condição de os missionários franceses pregarem obrigatoriamente em português e, de facto, tendo um deles subido ao púlpito para pregar disse o seu sermão em crioulo da Guiné, fazendo-se compreender por toda a gente melhor que os nossos próprios missionários. Mas há mais. Até o catecismo que é distribuído aos indígenas é escrito em crioulo da Guiné. Como eles cuidam de tudo, em que nós nem sequer pensamos…


É desolador, Sr. Governador, entrarmos em território estrangeiro e vê-lo repleto de indígenas portugueses, e a toda a hora nós vemos os missionários nas suas bicicletas percorrendo toda a região sem olharem a perigos. Numa palavra, as Missões Religiosas Francesas cumprem religiosamente a sua missão; as nossas têm até hoje sido nulas ou quase nulas, procurando instalar-se apenas nos grandes meios, ou nos meios mais pacíficos, rodeados unicamente dos indígenas chamados cristãos, desenvolvendo apenas o seu papel de padres e tendo até hoje posto completamente de parte a sua ação missionária e civilizadora. Até em Bula, único meio indígena onde instalaram a sua ação, longe trazer benefícios à colónia, tem trazido inconvenientes.

Caraterizava outrora os nossos missionários o espírito de sacrifício levado ao exagero, ao serviço da Cruz, sim, mas ao serviço da Nacionalidade, carateriza-se hoje o espírito da conveniência e do comodismo, com um desapego quase absoluto pelos interesses da nação, preocupando-se apenas com o que convém à sua comunidade e querendo apenas ser padres. Têm oposto, como V.ª Ex.ª sabe, uma resistência passiva enorme à sua ida para os Felupes e os Bijagós. Para que são necessários missionários em Cacheu e Geba? Para que são necessários três missionários em Bula? Porque não se vão estabelecer nas regiões em que os interesses da Pátria exigem a sua presença? A sua função na colónia não é dizer missa, não é para isso que ela faz o sacrifício de centenas de contos. Se as populações católicas das povoações aonde estão fixados querem padres que façam como se faz na Metrópole, que os mantenham, porque os missionários são necessários para outros fins, e estes não se resumem apenas em aumentar o número de adeptos à religião cristã, circunstância que dentro do importantíssimo papel que lhes compete desempenhar deve ocupar apenas um lugar secundário. Vejamos o que dizia esse grande português e colonial que se chamou António Enes, no seu relatório de 1893: ‘O catolicismo já dispôs de toda a África Portuguesa durante séculos, quando também dispunha de heróis e mártires para o apostolado, quando a espado servia de haste à Cruz, quando eram de oiro as conchas dos batizados, quando se exterminavam povos para lhes salvar as almas, quando os mosteiros eram paços tendo reinos por cercas, e, todavia, da sua propaganda e da sua tutela, servidos pelo poder civil de joelhos, impostas pelas armas quando não logravam fazer-se aceitar pela palavra, ajudados por todas as fascinações da riqueza, só ficaram ruínas pomposas nos sertões e nas crónicas memórias elegíacas de sacrifícios estéreis, ou triunfos efémeros! As ordens religiosas prestaram em África serviços que não se podiam exigir do seu caráter. Ensinaram coisas novas e muitas ciências, revelaram descobrimentos à Geografia, deram valiosos socorros à Política. Mas não deixaram arvorada a cruz senão onde a força ficou de guarda e esse símbolo da religião do amor não entranharam nos espíritos, nos sentimentos, nos costumes dos povos não ficou uma recordação do Cristianismo. Dos milhões de indígenas que batizaram não se gerou um cristão. De tantas conversões de régulos que operaram, não resultou uma única modificação no estado social das raças africanas".

E Jorge Velez Caroço continua:
“Em Portugal apenas se fazem padres e não os padres que nós necessitamos. É uma utopia pensar em aniquilar as crenças religiosas dos indígenas. Mas se o indígena for ao mesmo tempo educado no respeito pela Nação e identificado nas vantagens que do seu domínio resultam para o seu bem moral e material, teremos atingido os fins que a Nação exige, e a religião terá conquistado sempre o mesmo número de adeptos. É, pois, este último, o critério que devemos adotar. Há dias foi o administrador da circunscrição de Suzana procurado em Ziguinchor por indígenas Brames que do nosso passaram para o território francês, manifestaram-lhe a pretensão de voltarem e de se fixarem na área da circunscrição de Suzana, região de S. Domingos, desde que lhe dessem um padre e uma igreja, acrescentando ser grande – algumas centenas – o número de indígenas que tanto desejavam. Só a necessidade absoluta de instalar uma missão em plena região dos Felupes não fosse já indiscutível e imprescindível, a conveniência e a oportunidade de podermos povoar a quase deserta região de S. Domingos, só por si também impõe essa medida, e, assim, Sr. Governador, afigura-se-me indispensável a intervenção do governo da colónia na ação das missões religiosas aqui instaladas, impondo-lhes a obrigação de se fixarem onde os interesses da Nação assim o exigem, visto que a iniciativa com elas pouco os preocupa. As conveniências dos cristãos de Cacheu, Geba e outros pontos nada valem, em face dos interesses da Nacionalidade e obrigarem as missões a cumprirem o seu dever será motivo bastante para que elas amanhã agradeçam a quem as despertou do marasmo.
Pode V.ª Ex.ª com os meios de que dispõe auxiliá-los na construção de casa própria para a sua instalação e uma igreja na região dos Felupes, Suzana ou Varela podiam ser os pontos a escolher. A construção de uma pequena ermida em S. Domingos é também indispensável. Na região de S. Domingos há muitos indígenas que professam a religião muçulmana, e como estes não têm contato algum com aqueles que se aproximam dos princípios da religião cristã – porque o pediram já e porque tanto convém ao repovoamento da região – aconselhável se torna que auxiliemos também a construção de uma mesquita. Assina em Bolama, em 8 de março de 1934, Jorge Frederico Torres Velez Caroço".

Igreja de S. José de Bolama na atualidade
Casas da Rua de São José, na região de Alfândega, Bissau, década de 1890
Bissau na década de 1960, ao fundo a estátua de Honório Pereira Barreto
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22604: Historiografia da presença portuguesa em África (284): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22626: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte V: Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)


N/M "Ana Mafalda" (1951-1975): navio misto (mercadorias e passageiros), que tinha o comprimento (fora a fora) de um campo de futebol... Alojamentos para 16 passageiros em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira classe, no total de 52... Nº de tripulantes: 47...


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada  dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

1965

Lisboa, 17 de Abril 1965 - Sábado de Aleluia

Com repiques ao contrário den­tro de mim. Acabei de embar­car com a minha Companhia Independente de Caça­dores número oitocentos. Vamos com destino marcado para a Guiné. O "Ana Ma­falda" vai cheio de carne para canhão e ainda se encontra atracado no Cais da Ro­cha.

São três as companhias de caçadores e parte de uma de coman­dos e serviços de um batalhão. No salão de primeira classe, há pouco, houve discursos e vinho do Porto e uísque e sal­gadinhos.

Uma falta de respeito. Mal acabou a cerimónia, en­fiei-me no meu ca­ma­rote de primeira, pois en­tão! Morra Marta, mas morra farta! Estou para aqui so­zi­nho, la­vado em lágrimas, en­quanto os outros oficiais meus ca­ma­radas, talvez mais corajosos, se en­contram na amu­rada do navio nos últimos acenos de despedida. Puta de Pátria a minha!

Já fora Barra do Tejo, no mesmo dia, à noite

BARCO DE ESPERANÇA

Fizeste um barco de esperança e partiste
Ao longo de um mar verde de ternura.
Ficou no cais ainda o eco triste
Do mar acalentando a aventura...

Geme agora o mar contra a noite escura,
Num beijo sincopado de segredo...
E a alma num alentejo de secura
Cai de joelhos tran­sida de medo.

Medo da longa noite onde me canso,
Comprida noite onde nunca há descanso,
Nem estrela, nem barco ou gaivota...

E o mar que nos meus olhos cabia inteiro,
É agora um soluço de guerreiro,
Caindo em duas lágrimas de derrota.


18 de Abril - Mar e céu

Neste Domingo de Páscoa triste, cele­brada com amêndoas amargas que nos serviram à sobremesa do almoço para que hou­vesse sabor a festa. O navio não dá um balanço sequer. No porão, os soldados jo­gam às car­tas e fazem algazarra. Ouço-os do deque de primeira. À mesa, o capitão só diz as­neiras com ar compenetrado e sábio.

22 de Abril - Véspera de chegada.

Ainda se não adivinha terra nem rumor dela. Após a última refeição, passeio no deque, obstinada­mente, como um burro à roda da nora. Houve mudança súbita de ventos, o que fez com que logo cor­resse o boato de que estaríamos mudando de rumo.

Ainda se não perdeu a crença num súbito milagre que nos leve à Ilha do Sal, nosso primordial destino! Só assim, so­n­han­do, se aguenta esta patriótica estopada.


23 de Abril - Bissau

Evola-se desta terra avermelhada e ressequida um bafor que se transmite ao corpo e o faz destilar rios de suor. Logo após o de­sem­bar­que e com as tropas já aquarteladas na Amura, fomo-nos apresentar ao co­mando mili­tar. Desconhe­cia pura e simplesmente a nossa existência. Que não nos des­tiná­vamos a esta guerra, mas à da Ilha do Sal − foi-nos dito na secre­taria, antes de apresentarmos cumprimentos ao comandante.

Ainda olhámos uns para os outros com um pequeno clarão nos olhos, mas depressa nos desiludiu SEXA, refastelado no seu gabinete, com ar condicionado, onde pouco depois entrámos, perfilados. Ti­nha na verdade havido um pequeno deslize de informação, mas iria ser ime­diata­men­te remediado. Ficaríamos, para compensar, à or­dem do comando-chefe. Uma honra para a nossa com­panhia, que tinha vindo da me­trópole para defender este tão pátrio chão.

26 Abril - Carreira de tiro

Fomos todos para a carreira de tiro treinar a ponta­ria e experimentar pela primeira vez as espingardas G3, que se utilizam nesta guerra. Nos cur­sos de preparação, em Mafra, Tavira e Santarém ainda se treina o pessoal com a Mauser da última guerra mundial. Que se divide em dez partes, a saber: cano com es­trias, coronha, gatilho, guarda-mato, etcetra e tal.

29 de Abril - Ordem unida na Amura

Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustra­da rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões ope­ra­cio­nais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não béli­cas, oito horas se­guidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida.

Para que não hou­vesse que­bra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes des­sem, à vez e na ordem in­versa da sua antiguidade, duas horas de in­s­trução cada um. Ainda se acre­dita pia­mente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtu­des mili­tares, sobretudo da disci­plina.

No quartel da Amura, os velhos de caqui amarelo, que aguardam em­bar­que de regresso após dois anos de comissão, olharam para nós, maçaricos, vesti­dos de verde-bilioso-vomitado, como se pertencêssemos a outra ga­lá­xia.


5 de Maio - Primeiras baixas, nos arredores de Bissau

O nosso capitão e o seu guarda-costas foram feridos numa operação-treino nos arredores de Bissau. Foram ambos transportados de ur­gên­cia, de helicóptero, para o hospital militar. O primeiro, com estilhaços fin­ca­dos por todo o corpo; o último, sem as duas pernas dos joelhos para baixo e com as tri­pas de fora e sujas de terra. Como oficial mais antigo, tomei o co­mando da com­pa­nhia.


8 de Maio - Em Bissau, como Cmdt da CCaç 800


Recebi um rádio do gabinete do comando-chefe, anun­ciando a transferência para a metrópole do capitão e do seu soldado guarda-costas. Es­tou fragilizado e com muito medo. Não nasci para comandar tropas.

Para me sen­tir mais aconchegado e protegido no meio de toda esta engrenagem de insegurança e de morte pressentida, escrevi uma longa carta a meu tio Fran­cisco, que mal conheço, de­vido às zangas fraternais entre ele e meu Pai que se estenderam du­rante quase toda a minha vida. Agora estão de bem um com o outro. Fizeram as pa­zes há cerca de dois meses, após meu tio ter frequentado, durante três dias, um Curso de Cris­tan­dade na Ilha, na estância termal do vale das Furnas.

Soube-me bem acolher-me ao robusto tronco fami­liar, durante as duas breves horas de escrita epistolar, regada a lágrimas sa­borosas. Pressinto a morte, muito perto, rondando-me os gestos, as pa­la­vras e os pas­sos.


10 de Maio de 1965 - No HM 241


Hospital Militar de Bissau, para uma pequena in­ter­venção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.

Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século. Saí do hospital pouco depois e vim para o quartel da Amura, sem sequer sentir necessidade de me ir recostar na tarimba. Fui antes para o bar dessedentar-me e dar umas boas tragaças, que o cigarro tem sido para mim um ex­celente camarada de armas...

24 de Maio de 1965 - Bambadinca


Veio a companhia por aí a cima, sob o meu co­mando, escoltada por outras tropas e por brigadas especializadas na de­tecção e le­van­tamento de minas e armadilhas, atravessando terra-de-ninguém de Man­soa até aqui, em não sei quantas viaturas, abarrotando de tudo quanto é ne­ces­sário para ins­talar uma companhia operacional no mato, desde tarimbas de ferro até tachos e pa­nelas, pas­sando por móveis para a secretaria, que, na guerra, a papelada tem grande impor­tân­cia. Chamam-lhe mesmo a guerra dos papéis, por vezes ainda mais renhida do que a sua irmã colaça.

Chegámos à margem esquerda 
[, o autor queria dizer direita.. ] do rio Geba, es­tava um capitão, Ga­briel Tei­xeira,  de sua graça, com duas secções à nossa es­pera. Pertencem ao batalhão ao qual vamos ficar logisticamente ad­s­tritos, uma vez que, operacional­mente, conti­nuamos à ordem do comando-chefe.

Ainda temos, porém, de atravessar tudo de jan­gada para a outra mar­gem  [, a esquerda...] , incluindo as viaturas, a fim de seguirmos para Bafatá e de­pois para Con­tu­boel, nosso des­tino. O rio Geba está su­jeito ao regime das marés, nesta altura vivas, aqui chamadas macaréu, de forma que vamos demorar muito tempo até nos passar­mos to­dos para o lado de lá.

Bambadinca, 25 de Maio de 1965

A TUA AUSÊNCIA

A tua ausência
É este estar nu por dentro,
E ter um rosto velho
Gretado de suor
Do sol dos prados
E das manhãs
Que nunca tive...

Em cada segundo te habito
Como a loira canção das abelhas
O indomável cio
Das flores abrindo-se
Loucas de tesão...

(Continua)
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P22625: In Memoriam (412): Torcato Mendonça (1944-2021), ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

IN MEMORIAM

Torcato Mendonça (1944-2021)
Ex- Alf Mil Art da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

Acaba de chegar ao conhecimento do nosso Blogue, por intermédio do seu filho Ricardo, mais uma triste notícia, a do falecimento do nosso camarada e amigo Torcato Mendonça.

Hoje, a partir das 15 horas, estará em Câmara Ardente na Capela de S. Miguel, no Fundão.

Amanhã, pelas 14,45 horas, será celebrada Misa de Corpo Presente na Igreja Matriz do Fundão, finda a qual, os restos mortais do nosso malogrado camarada seguirão para cremação.


Nesta hora difícil, especialmente para a sua companheira de vida, Ana Mendonça, e para os seus filhos Pedro e Ricardo, deixamos o nosso mais profundo pesar pela perda do seu ente querido e nosso amigo de há 15 anos.

Alf Mil Art Torcato Mendonça em Mansambo

O Torcato, que se apresentou à tertúlia em 2006,[*] tem no nosso Blogue 255 referências com uma vasta colaboração, seja com as suas famosas "Fotos Falantes", ou memórias escritas publicadas nas suas séries: "Pensar em Voz Alta", Ao correr da bolha, "Estórias de Mansambo (I e II)" e "Nós da memória". Esteve presente em 2007 no II Encontro da tertúlia e em 2008 já se fez acompanhar da Ana.

O casal Mendonça participou nestes Encontros anuais sempre que puderam e a saúde de ambos o permitiu.


Com a morte do Torcato continua a engrossar o "Batalhão" dos amigos e camaradas que aqui nos deixam cada vez mais sós.
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Notas do editor

[*] - Vd. poste de 15 DE MAIO DE 2006 > Guiné 63/74 - P753: O Nosso Livro de Visitas: Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 - O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o

Último poste da série de 13 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22624: In Memoriam (411): Hernâni Mergulhão (Lisboa, 1958 - Lourinhã, 2021), professor do ISEL e dirigente do GEAL - Museu da Lourinhã

Guiné 61/74 - P22624: In Memoriam (411): Hernâni Mergulhão (Lisboa, 1958 - Lourinhã, 2021), professor do ISEL e dirigente do GEAL - Museu da Lourinhã


Hernâni Mergulhão (Lisboa, 1958 - Lourinhã, 2021)


1. Morre, muito antes do tempo, aos 62 anos, um bom amigo, colega e conterrâneo. De doença prolongada, inexorável. Não éramos exatamente da mesma geração, mais de uma década nos separava. Nascido em Lisboa, foi criado pelos avós, meus vizinhos, na Lourinhã.  

Eu admirava-lhe a seu fino humor, a sua grande afabilidade, a sua enorme alegria de viver, a sua empatia, a espontaneidade, a capacidade de lidar com a diferença, a sabedoria com que fazia a ponte entre a cultura científica e tecnológica e o contributo das ciências sociais e humanas, mas também o seu empenho cívico, a sua postura como cidadão, a sua coerência e coragem na luta pela causas políiticas, sociais, profissionais,  sindicais  e comunitárias em que acreditava... 

Acompanhei-o, de mais perto, no GEAL - Grupo de Espeleologia e Arqueologia da Lourinhã (de que foi diretor e membro da assembelia geral), e sou testemunha da sua dedicação, de anos e anos a fio, ao projeto de criação do Museu da Lourinhã e depois do DinoParque da Lourinhã, ao lado de outros históricos "geálicos", como, por exemplo, os nossos Horácio Mateus (**) e Isabel Mateus (***), e seus filhos Horácio Mateus e Simão Mateus.

Tinha o sentido da "res publica", do bem público, da solidariedade... e adorava a sua terra de coração, a terra do seu pai, Eurcio Mergulhão, dos seus tios, primos  e avós, mesmo quando lhe parecia pequena demais para nela poder caber todos seus sonhos de menino.

 Como muitos outros, foi um lourinhanense da diáspora. Mas soube voltar, na vida adulta, na altura devida e justa, depois de ter arrostado com incompreensões, preconceitos, discriminações, etc., de que foi alvo no pós-25 de Abril.

Foi um homem bom e tolerante. Tinha orgulho na sua terra e na sua pátria. Para a Cecília, grande (mas sempre discreta) companheira de uma vida, para os seus três filhos, para o seu pai ainda vivo (aos 89 anos, com quem falei na capela de N. Sra. dos Anjos, ontem durante o velório), demais família e amigos do peito, vai a minha solidariedade na dor, compartilhada pela Alice, e pelos meus filhos, Joana e João. 

Hernâni, não serás inumado na vala comum do esquecimento, temos a obrigação, os teus conterrâneos e os teus companheiros "geálicos", de saber honrar a tua memória. Luís Graça (sócio do GEAL nº 141).

Lourinhã, 12 de outubro de 2021, 16h


2. Mensagem de condolências do ISEl . Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, com data de ontem (, aqui reproduzida con a devida vénia):

É com consternado pesar que informamos do falecimento do Professor Hernâni Mergulhão.
Ao longo de mais de 30 anos, dedicados ao ISEL, de onde se destaca a sua vertente no ensino e na pedagogia, o professor Hernâni empenhou-se de uma forma exemplar no ISEL.

Licenciado em 1986, pela Universidade Técnica Checa, entrou no ISEL em 1988 como Equiparado a assistente, foi Equiparado a assistente do 2.º triénio entre 1989 e 1995, Equiparado a professor adjunto entre 1995 e 1999 e Professor adjunto a partir de dezembro de 1999.
 
Participou ativamente na gestão do ISEL, destacando-se os seguintes cargos:
- De maio de 2004 a abril de 2006, foi Presidente do Conselho Pedagógico do ISEL.
- Entre 1990 e 1995, foi membro do Conselho Pedagógico do ISEL, em representação do corpo de assistentes.
- Em 1979 e 1980, foi membro do Conselho Diretivo e da Assembleia de Representantes do ISEL, em representação dos alunos.
- Foi também membro do Conselho Científico, da Assembleia de Representantes do ISEL, e Assessor do Conselho Diretivo.
- Destacou-se também como Vice-coordenador do Departamento do Ensino Superior do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e Membro do Conselho de Departamento do Ensino Superior da FENPROF.
 
Neste difícil momento endereçamos à família e amigos, muitos deles do ISEL, as mais sinceras e sentidas condolências.
Viverá para sempre na memória da comunidade do ISEL.

3. Mensagem de condolências do GEAL - Museu da Louirnhã (, aqui reproduzida com a devida vénia):

É com grande pesar que partilhamos a notícia do falecimento do nosso associado Hernâni Mergulhão, até há pouco tempo Presidente da Assembleia Geral do GEAL - Museu da Lourinhã.

Hernâni Mergulhão, pessoa de convicções fortes e rigor nas suas atuações, nos diversos domínios, deixou-nos após uma luta inglória contra a doença prolongada que o atormentava.

Aos familiares e amigos próximos, os órgãos sociais, colaboradores, investigadores e voluntários do GEAL - Museu da Lourinhã endereçam os mais sentidos pêsames.

Lourinhã, 11 de outubro de 2021
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 28 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11492: Blogpoesia (333): A notícia do fim da notícia (Luís Graça)

(***) Vd. poste de 19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21918: Manuscrito(s) (Luís Graça) (199): Elegia para Isabel Mateus (Soure, 1950 - Lourinhã, 2021)

Guiné 61/74 - P22623: Convite (18): O nosso camarada João Crisóstomo vai estar presente na Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes, no próximo dia 19 de Outubro pelas 11 horas

Convite do presidente da Assembleia da República

1.  Mensagem da Assembleia da República, enviada ao nosso camarada e amigo João Crisóstomo: 

From: Parlamento-Protocolo <Parlamento-Protocolo@ar.parlamento.pt>

Subject: Convite | Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes | 19 de outubro de 2021 | 11.00 horas

Date: October 12, 2021 at 12:25:52 PM EDT

To: "crisostomo.joao2@gmail.com" <crisostomo.joao2@gmail.com>

Exmo. Senhor
João Crisóstomo,

Agradecemos a melhor atenção de V. Exa. para o convite junto.

Com os melhores cumprimentos,

Divisão de Relações Públicas e Protocolo
@ parlamento-protocolo@ar.parlamento.pt



2. Comentário do editor LG:

De passagem por Portugal, o João Crisóstomo vai estar, com toda a justiça, entre os convidados oficiaisque irão assistir à cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional ao Aristides de Sousa Mendes (1885-1954=, no prózimo dia 19 do corrente.


João Crisóstomo, um dos activistas que, desde 1996, 
mais contribuiu em todo o mundo para a reabilitação da memória 
de Aristides de Sousa Mendes. A residir em Nova Iorue desde 1975,
foi alf mil, CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé,
Porto Gole e Missirá, 1965/67) 


Até há dias, ele desconhecia a realização desta cerimónia. Foi por nós alertado. Em boa hora, a Fundação Aristides de Sousa Mendes (que tem novo presidemte do conselho geral, Silvério Sousa Mendes) terá contactado os serviços da Assembleia fa República, que fez chegar o convite ao nosso camarada luso-americano (e que este já aceitou).

Recorde.se aqui a decisão, de há mais de um ano, da Assembleia da República, de homenagear o diplomata português que passará a ter, no Panteão Nacional, um túmulo vazio: não haverá trasladação do corpo, os seus restos mortais deverão continuar a permanecer em Carregal do Sal, distrito de Viseu, terra natal do "cônsul de Bordéus" e onde viveu parte da vida, e onde a Fundação, com o seu nome, tem a sede.

(Foto à esquerda: Aristides de Sousa Mendes, 1940.Cortesia de  Fundação Aristides de Sousa Mendes)


Recorde-se a notícia de 13 de julho de 2021, no sítio do Panteão Nacional:

Aristides de Sousa Mendes no Panteão Nacional

Jul 13, 2021
Aristides de Sousa Mendes terá honras de Panteão Nacional, conforme decisão da Assembleia da República. A cerimónia irá realizar-se em data a anunciar oportunamente.
Nascido em 1885, no concelho de Carregal do Sal, licenciou-se em Direito, na Universidade de Coimbra, em 1907. Ingressou na carreira diplomática, tendo passado por vários postos, designadamente em Zanzibar, no Brasil, em Espanha, nos Estados Unidos e na Bélgica. 
Foi, contudo, a sua atuação no consulado de Bordéus, que marcou, de forma decisiva, a sua vida e pela qual viria a ser recordado. A concessão de vistos, em junho de 1940, salvou a vida a milhares de judeus, perseguidos pelo regime nazi. Um ação que o Estado Novo não lhe perdoaria. O cônsul Aristides de Sousa Mendes foi alvo de um processo disciplinar e afastado da carreira diplomática por Oliveira Salazar, terminando os seus dias, em 1954, na penúria e com crónicos problemas da saúde.
O regime democrático reintegrou-o postumamente na carreira diplomática, reconhecendo expressamente a importância da sua atuação no salvamento de milhares de vidas. A sua memória será, a partir deste ano, perpetuada no Panteão Nacional, através da colocação de uma placa de homenagem.
___________
Nota do editor:
Último poste da série > 11 de outubro de  2021 > Guiné 61/74 - P22619: Convite (17): 'Por delegação, a título póstumo, de' (e em homenagem a) o nosso amigo, colega, companheiro e camarada Eduardo Jorge Ferreira (1952-2019), estão convocados/as todos/as os/as "eduardianos/as" para a monumental caldeirada de Ribamar, Lourinhã, segunda feira, dia 10 de outubro de... 2022

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22622: (Ex)citações (394): A propósito da evocação dos fuzilamentos de Comandos Africanos e de milhares de guineenses (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), com data de 11 de Outubro de 2021:


A propósito da evocação dos fuzilamentos de Comandos Africanos e de milhares de guineenses

O Partido armado da Guiné começou a fuzilar guineenses em 1964, logo que ascendeu a Partido-único-armado-Estado da G-Bissau, em 1974, implementou o seu crescimento exponencial de Comandos e Fuzileiros africanos e de milhares de guineenses que serviram a Guiné sob a administração portuguesa, sem julgamento, selvagem.

O blogue evocou-os e vou repetir-me: O Gen. Nino Vieira tinha acabado de separar a Guiné de Cabo Verde e iniciado o seu consulado, em Bissau os fuzilamentos andavam na boca do mundo, ouvi da boca de pessoas em funções governativas que, entre 1964-1980, os “libertadores” tinham passado pelas armas cerca de 10.000 guineenses, opositores políticos, ex-tropas nativas especiais, do contingente geral e outros “colaboracionistas”.

O que a Descolonização portuguesa teve de exemplar foi o seu desastre, parafraseando o Cor. Morais da Silva, o seu extraordinário, no imediato e a médio prazo não foi o fim da guerra, mas a substituição duma ditadura por outras, o seu maior activo são as suas mais que muitas vítimas e a falência de Portugal - factos acontecimentais e indissociáveis da nossa e da história do ex-Ultramar português.

Na Guiné, estava a Operação Tridente/Batalha do Como no auge, o seu líder eng.º Amílcar Cabral, gestor talentoso dos contextos da sua guerra, convocou e veio ao I Congresso de Cassacá explicitar o Código de justiça e penal, o seu articulado plasmava a pena de morte (terá sido menos um congresso e mais uma reunião de quadros), a sua ordem de trabalhos incluía fuzilamentos e o seu instituto, sindicava de inimigos e traidores à pátria os seus opositores, passou a mandar fuzilar os desalinhados políticos, os seus desertores e os militares e milicianos nativos que caíam prisioneiros, no entanto, merece ênfase o tratamento humano aos militares portugueses da Metrópole seus prisioneiros.

Até à concessão das independências, todos os nascidos no Portugal africano eram portugueses de lei, os rebeldes inclusive, os nossos descolonizadores negligenciaram esse código, era uma verdade inconveniente, a sua derrogação não convinha nem ao PR Luís Cabral nem ao seu modelo político, este acabou destituído pelo Gen. Nino Viera, só não foi fuzilado, ao abrigo desse código, em deferência à intercessão dos PR Léopold Senghor, Fidel Castro, generais Ramalho Eanes e Lausanna Conté, sorte que não tiveram os acusados da “revolta dos balantas”.

O “golpe de Bissau” do MFA, o 26 de Abril de 1974 da Guiné, aconteceu 10 anos depois, muita água havia passado sob as pontes da Guiné, não será plausível que esse código e o seu efeito dirigido fossem do desconhecimento da oficialidade protagonista da “capitulação” na mata de Morés, ou o “cessar-fogo de facto” em politicamente correto, ou da oficialidade negociadora da sua “descolonização”, o Exército não negligenciava a investigação, é-lhe intrínseca e rigorosa, o acesso à informação apurada era privilégio da oficialidade; por exemplo: enquanto os historiadores têm dúvidas e discutem a paternidade do PAIGC, em 1964 já o Exército partilhava com os oficiais a sua informação, classificada, que o fundador era Rafael Barbosa e que Amílcar Cabral lhe aderiu e se apropriou da sua liderança quatro anos depois.

A sua ignorância da parte dos civis, nomeadamente dos notáveis drs. Mário Soares e Almeida Santos, será plausível e merecedora de condescendência, tinham escapado ao serviço militar, apenas habilitados a dirimir as armas do direito e dialógicas, a paz pela guerra é habilitação dos militares, os do contexto começaram logo a baixar a espada, o caminho mais rápido à paz é a derrota, as posições relativas haviam-se invertido, os militares tinham deixado de se subordinar ao poder civil, o poder civil passara a subordinar-se ao poder dos militares - já os centuriões de Roma haviam feito o mesmo.

Mário Soares, arauto da Descolonização, queixou-se ao General Spínola que na de Moçambique foi desautorizado pelo então Major Otelo Saraiva de Carvalho, “não discutamos, entregamos isto aos camaradas da Frelimo e ponto final”, também desabafava que na da Guiné os seus negociadores, os notáveis comandante Pedro Pires e dr. José Araújo, aquele desertor de controlador aéreo da FAP e este desertor de jogador da Académica, eram uma cassette, a tudo respondiam “não, não, vão-se embora, têm que ir embora!” – de leão Portugal passara a sendeiro.

Conjugando a sobranceria à mesa das negociações com adequadas (e toleradas) manobras no terreno, o PAIGC não só impôs a Portugal a imediata retracção do seu dispositivo militar, mas também a obrigação do imediato desarmamento dos militares das suas forças militares e militarizadas… com a sua ajuda! - os termos do n.º 17 do Anexo ao anterior Acordo. O rabo escondido e o gato de fora… Se necessário o recurso às armas, combatiam-nos ao nosso lado…

O efectivo das forças militares e militarizadas nativas da guarnição era superior a 10 mil combatentes activos, tropas de recrutamento gerais e especiais de Fuzileiros, Comandos e Milícias, os reservistas eram outro potencial, eram mais do dobro dos do outro campo, a sua superioridade uma evidência, o projecto “uma Guiné melhor” do Gen. António de Spínola tinha feito escola e produzido muitos “estragos” à essa reunião quimérica, os sentimentos da cidadania e a pluralidade estavam em crescendo, a maioria desses combatentes já não combatia por Portugal mas por rejeição ao PAIGC, os fulas e os mandingas eram antimarxistas, islamizados, moderados e pluralistas, o seu código de justiça era “não matar, a Natureza faz”, o PAIGC já tinha conseguido a nossa fragilização.

Essa celebrizada “corrupção” com o adiantamento de seis meses de salários (os metropolitanos não recebiam a “ponta dum corno” quando terminavam a Guerra da Guiné e), a sua “desistência” de portugueses de direito e a trama recambolesca do seu desarmamento são temas merecedores de melhor estudo e discussão.

A implosão do Bloco comunista foi o início da verdadeira descolonização do antigo Portugal africano, evidência de quão a sua ideologia e interesses geoestratégicos “assalariaram” as suas guerras de libertação e a descolonização portuguesa.

A Guerra da Guiné foi o combate pelo passado, Amílcar Cabral contra ele e Portugal para o manter – as suas consequências mais lastimáveis resultaram directamente desses desideratos.

Enquanto a guerra conduzida por Spínola tinha os guineenses por seu sujeito, com materializada no projecto de “Uma Guiné Melhor”, a guerra concebida e conduzida por Cabral era quimérica que se eclipsou, destruiu muito e pouco construirá, infernizou-lhes a vida no início e no durante – perdura desde o seu fim.

Na realidade, não foi a Guiné que se libertou de Portugal, foi Portugal que se libertou da Guiné…

Os ex-combatentes visitantes da Guiné em turismo de nostalgia, não raro se comovem e sofrem, confrontados com camaradas do antigamente, a tal “praga grisalha”, orgulhosos das suas recordações materiais e mentais do tempo da sua condição de soldados, de portugueses de direito e esperançosos, - mas que acabarão por morrer sem receber as suas reformas e as suas pensões de sangue…

Portugal não pode escusar-se às suas responsabilidades com a Guiné!

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Nota do editor

Vd. postes de:

30 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22584: Recortes de imprensa (119): Reacção de Mário Beja Santos ao artigo do "Diário de Notícias", de 29 de Setembro de 2021, "Comandos africanos nas Forças Armadas Portuguesas. Histórias de abandono e traição"

1 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22588: (Ex)citações (393): Estas teses elaboradas sem reflexão e apreciadas por ignorantes, obrigam-me a vir ajudar a clarificar o que respeita aos militares dos Comandos (Cor Art Ref Morais da Silva)

2 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22590: (Ex)citações (394): Em cerca de 600 militares do Batalhão de Comandos da Guiné, 200 estiveram inscritos numa lista para seguir para a metrópole, com as respetivas famílias, confirma o último 2º comandante e comandante (jun/out 1974), ex-cap art 'comando' Glória Alves, de "uma das mais nobres e heróicas unidades militares portuguesas", em depoimento público de 2007, aqui transcrito (Cor art ref Morais da Silva)

5 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22599: Questões politicamente (in)correctas (55): Na hipótese de terem aceitado vir para Portugal os ex-comandos guineenses, pergunta-se: que tipo de país os iria receber ao aeroporto de Figo Maduro? (José Belo, jurista, Suécia)

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22621: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVII: a minha "bigodaça”... que tanto incomodou os senhores da guerra


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > 1973 >  A "grande... bigodaça" que, em Bissau, no Depósito de Adidos tanto incomodou os senhores da guerra.

Fot (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 






O ex- furriel mil Joaquim Costa, Natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem quase pronto o seu livro de memórias, 
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)

Parte XVII: O “Cantiflas”...  do  Cumbijã (ou a  "bigodaça”  que  tanto incomodou os senhores da guerra)

Estava eu em Bissau, regressado de férias a Portugal, quando, ao entrar no quartel dos Adidos, completamente alheado de tudo (ainda estava a digerir/moer a notícia que um camarada da companhia tinha morrido atingido por uma granada num ataque ao Cumbijã) (*), sinto um soldado a correr atrás de mim, já esbaforido por muito me chamar,  e me informa que o comandante do quartel queria falar comigo.

Fiquei atónito. Pensei: "fAinal, devo ser muito importante neste teatro de guerra. Com centenas de militares a passarem diariamente aquela porta e logo havia de me chamar a mim! Queres ver que me vai oferecer um lugar nos altos comandos?"

Lá vou eu, meio entusiasmado e a tremer como varas verdes, falar com o “homem grande” do quartel dos Adidos. O altíssimo graduado (altíssimo, já que o amarelo ocupava quase na totalidade os seus ombros) ainda antes de me mandar entrar, sem perguntar quem eu era, de onde vinha e para onde ia, atira-me à cara: "Você já se viu ao espelho?"

Eu, a gaguejar, lá fui dizendo: "Meu comandante, no nosso destacamento não há espelhos"… 

Seguiu-se a ordem: "Vá imediatamente ao barbeiro e rape-me essas excrescências dependuradas nesse lábio superior".

Não obstante a “tremideira”, ainda pensei: com toda a região a ferro e fogo, com a guerra praticamente perdida e a preocupação deste altíssimo graduado é o bigode (ou quase bigode) do Furriel Costa?… Pensaria o homem que, cortando o bigode do furriel Costa, a situação dramática que se vivia no terreno ia dar a volta? Enganou-se. Não deu! Em abono da verdade talvez porque eu, não respeitando a ordem superior, não cortei o bigode!… (Foto nº 1)

Analisando hoje mais friamente a situação, constato que o homem (em abono da verdade não sei se era o comandante ou alguém do seu “staff”) teve muita sorte na pessoa que escolheu para alimentar o seu ego. Alguém que ansiava, mais que tudo, que o tempo passasse para regressar a casa para junto da família e amigos, pelo que, disposto a cumprir, até ao limite da dignidade, todos os ensinamentos e conselhos do seu irmão e “padrinho de guerra”: "Respeita os teus superiores"!!!

Acabado de chegar de férias, a caminho de uma zona a ferro e fogo, com a notícia da morte de um camarada (o terceiro), no dia anterior num ataque ao destacamento, e ser confrontado por um alto graduado do ar condicionado de Bissau, com sofá de veludo (pelo menos parecia) e cristaleira com garrafas de uísque e copos de cristal (pelo menos pareciam já que não tinham pó – coisa rara na Guiné), embirrando, com a arrogância dos fracos, com o seu bigode,!... fosse alguém com o sangue mais quente e uma tragédia teria acontecido…

Este altíssimo graduado precisava de passar um dia no Cumbijã, fazendo revista às tropas em parada no dia da operação “Balanço final” (assalto a Nhacobá). O mais provável era não haver operação já que, analisando a fotografia do meu pelotão, ninguém estava em condições (de ir de fim de semana) de sair do destacamento (Foto nº 2)…
 

Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) > 
O meu pelotão, em mais uma saída para o mato, “devidamente fardado” e armado “até aos dentes” para o que der e vier…

Foto (e legenda): ©  Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem  complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Veja-se, a propósito, o comentário (que me foi enviado por mail),  feito pelo meu camarada e grande amigo Machado, ex-furriel mil da minha companhia,  ao meu post sobre o regresso de férias:

Amigo Costa

Já li o teu último post e gostei muito,  apesar de teres levado o terceiro murro no estômago quando chegaste de férias em 1973. Eu estava no Cumbijã e o ataque foi de noite no meio duma grande trovoada que não nos deixava distinguir as saídas do canhão ou rampa de lançamento.

Só tive tempo de sair do bar e abrigar-me atrás do embondeiro 
 [, talvez poiolão] que estava perto da saída, embondeiro esse que foi furado dum lado ao outro por uma das granadas. Apanhei um susto que até perdi o meu isqueiro Ronson mas encontrei-o no dia seguinte. 

O pessoal de noite com lanternas na mão procurou rapidamente abrigo nas valas pois a iluminação elétrica do Cumbijã tinha sido cortada por falta de pagamento, mas o Fausto Costa que era do meu pelotão e um excelente camarada foi atingido por uma granada que lhe caiu nos pés. 

São os horrores da guerra que daí para a frente iria ficar mais complicada. Eu, no início de 1974, vim de férias e só consegui sair de Aldeia Formosa numa avioneta militar que foi fazer uma evacuação dum soldado do Batalhão com uma perna partida, havia 5 ou 6 dias. O sargento que conduzia a avioneta ofereceu-se como voluntário para a evacuação. Não havia aviões privados para alugar, já não levantavam voo por causa dos misseis. Estava em Aldeia a ver se aparecia algum meio de transporte para Bissau e estava a ver as minhas férias a ir ao ar, já com o bilhete TAP marcado tinha 2 dias para chegar a Bissau. 

Quando vi a avioneta militar a pousar na pista fui a correr falar com o piloto pedir para me levar. Ele acedeu ao meu pedido, mas obrigou-me a fazer uma declaração de responsabilidade assinada pelo comandante do batalhão de Aldeia Formosa. Corri tanto para um lado e outro lá encontrei  Tenente-Coronel que me disse: "Você sabe como está o espaço aéreo", eu disse que sim e que me responsabilizava , ele assinou a minha declaração e lá vim eu com e doente da perna partida a gemer. A avioneta levanto voo e esteve a ganhar altura a fazer círculos durante meia hora por causa dos misseis. O piloto depois mostrou-me que estava a ser escoltado por dois T6 que voavam muito alto e que nos acompanharam até Bissau.

Com tantas voltas cheguei a Bissau enjoado. Quando a avioneta parou e abriu a porta, eu saí a fugir e só ouvia piloto a dizer "Não atravesse a pista". Quando li este teu post, pensei que até para virmos de férias era uma aventura de grande risco.

Um grande abraço …. e continua a escrever. Machado.


Em abono da verdade (e para descanso do meu irmão Manuel), não desrespeitei a ordem do superior, mas, tal como dizia o meu irmão Avelino “finúria” para quem se arma em fino:  antecipando a viagem para o Cumbijã, embarcando nesse mesmo dia num Nordatlas, não sobrou tempo para o corte…


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) >  Foto do pelotão do furriel Machado (o primeiro da esquerda de pé) e do furriel Aleixo (o segundo da direita de pé e de óculos escuros)... As bigodaças do Machado e do Aleixo, bem como de um ou outro soldado, ao contrário da minha, sempre passaram na vistoria da “ASAE” de Bissau...  Á foto é do Machado.

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem  complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 22 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22561: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVI: O regresso de férias e o terceiro murro no estômago