quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23880: Historiografia da presença portuguesa em África (347): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2022:


Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (1)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de posturas ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que tinha sido o seu mandato, antes de regressar a Lisboa. É o que aqui se pretende fazer, começando por se sintetizar o que se passou na sessão do Conselho de Governo em 10 de julho de 1917 e na sessão especial que teve lugar em 3 de fevereiro de 1945. O leitor decidirá se estas considerações podem ter algum peso específico para o estudo da História da Guiné.

Na sessão de 1917, que tinha como ordem de trabalhos a discussão de um requerimento da Empresa Agrícola Comercial Bijagós Limitada, para deter o exclusivo do fabrico de telha; a discussão de um telegrama do Administrador da Circunscrição de Cacine quanto aumento das taxas de licença comerciais e por fim a discussão de um requerimento em que habitantes da Guiné pediam a criação de mais escolas de ensino primário, é bom ouvir a natureza desta última proposta. Ali se sugeria três categorias de escolas: elementares, complementares e escola central; na primeira, seria para ministrarem a instrução rudimentar, que seria obrigatória para as crianças de ambos os sexos, aprendia-se a língua portuguesa falada, dando às crianças lição das coisas por quadros representando objetos de uso; o ensino elementar consistiria na leitura, escrita e nas quatro operações aritméticas sobre números inteiros, funcionaria uma escola em cada posto, e avança-se com o ensino para os dois sexos, as escolas do sexo feminino teriam um ensino relativo a costura e bordados, noções de culinária e economia doméstica, funcionando em Bolama, Bissau, Bafatá, Farim e Cacheu. O documento está cheio de detalhe, define o perfil dos professores, o material indispensável para o funcionamento das escolas, os prémios para os melhores alunos, os exames, etc. Não nos podemos esquecer de que a ética republicana, que cuidava do mesmo sentido da ação civilizadora no Império como a Monarquia Constitucional, privilegiava a educação, só que este documento apresentado no Conselho de Governo em 1917 é impressionante pelo seu sentido progressista, por ultrapassar aquelas barreiras de civilizados e gentio, que será a bitola que o Ato Colonial irá impor.

Estamos agora em 1945, Ricardo Vaz Monteiro, Major de Artilharia e Governador da Guiné, despede-se, terminara a sua comissão, agradece ao Conselho a colaboração prestimosa que lhe fora dispensada. Agradece sobretudo a prova de dedicação quando foi vítima de um acidente de aviação em 11 de setembro do ano anterior. E falando da ação civilizadora diz que é de todos sabido que o sistema colonizador português tem por primeiro fundamento o primeiro mandamento da nossa religião – o amor ao próximo – e, portanto, nós, portugueses, consideramos em primeiro lugar como seres humanos os indivíduos qualquer que seja a sua raça. Tece considerações sobre o papel dos missionários, a importância da língua portuguesa, dizendo que manteve 80 escolas sustentadas pela dedicação das Administrações de Circunscrição e de Concelho, sempre entendeu que devia ser contrariado o uso do crioulo no sistema escolar, sentia a obrigação de que todos tinham que trabalhar para aportuguesar os indígenas da Guiné, havia que contraria o preconceito de quem ridicularizava o preto quando este se exprimia em português: “Para estes que assim procedem, faltos de toda a centelha nacionalista, vai a nossa piedade porque não sabem o que fazem. Não sabem que o uso da nossa língua é um dos melhores meios para introduzir no meio indígena, as ideias, os sentimentos, os costumes e as tradições dos portugueses”.

Mudando a direção do seu discurso, passou em revista o que acontecera no desenvolvimento da agricultura e da veterinária, específica as medidas tomadas, releva a importância da distribuição gratuita de sementes selecionadas pelos serviços técnicos nos postos experimentais, durante o seu mandato procurara imprimir dinâmicas às granjas administrativas com caráter de empresas agrícolas de tamanho médio, vê-as como poderosas alavancas para o desenvolvimento socioeconómico e cultural da Guiné, e que não lhe parecia difícil obter bons resultados pela disponibilidade de terreno, já que a densidade populacional na Guiné era de cerca de 10 habitantes por quilómetro quadrado, havia igualmente que aproveitar esta disponibilidade para intensificar o revestimento florestal. “Este revestimento compreende essências que dão madeira rija ou dura para a construção civil e marcenaria como o bissilão, pau-ferro, pau-incenso, alfarroba de lala; e outras essências como o poilão-forro, tagarra, caboupa e macete que dão madeira mole aproveitada para pasta de papel, contraplacados e caixotaria. Para se cuida do revestimento florestal da colónia estava naturalmente indicado que haveria primeiramente a distinguir, por cada região da Guiné, a parte destinada às culturas e a parte destinada à floresta. Atendendo ao modo como os indígenas realizam as suas culturas, teriam de ser extensos os terrenos destinados a este fim. Seria, pois, necessário conhecer as necessidades dos aglomerados populacionais indígenas, quanto a terrenos de cultura para depois se fazer a demarcação das zonas florestais que de futuro conviria proteger, defendendo-as das queimadas e realizando o repovoamento”. O Governador disserta largamente sobre a vegetação arbórea e considera ser indispensável tomar medida enérgicas para evitar a destruição feita pelos madeireiros.

Inflete agora o seu discurso para a política de saúde, a luta contra a doença, alude às melhorias introduzidas na assistência médica e sanitária, releva o trabalho das irmãs hospitaleiras franciscanas e enuncia o que se fez para travar a epidemia da febre amarela.

Prestes a terminar, deixa recados para o futuro não só quanto à política de saúde como ao funcionamento de toda a administração colonial. Não esconde a satisfação por na Administração Financeira se terem registado saldos que permitiram fazer face aos enormes encargos contraídos com despesas extraordinárias. E é premonitório: “O que me não foi possível realizar por falta de tempo, ou carência de méritos, virá ser realizado por quem me substituir certamente com mais competência. Ao terminar a minha comissão posso afirmar, sem receio algum de ser desmentido, que durante a minha permanência na colónia dirigi a minha atuação administrativa no sentido de promover o aumento da produção e valorizar materialmente a Guiné, tendo sempre presente que sobre a valorização material tem prioridade indiscutível o emprego de meios destinados a nacionalizar, assimilar, enfim, aportuguesar os indígenas.”

(continua)
Major Ricardo Vaz Monteiro, o Governador da Guiné que antecedeu Sarmento Rodrigues
Selo de Farim português, 1910
Ruínas de Igreja em Bolama
Costureiro guineense
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23853: Historiografia da presença portuguesa em África (346): Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23879: História de vida (51): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - IV (e última): A última comissão, Moçambique, 1973: "Bem-vindos a Mueda, terra da guerra, aqui vive-se, trabalha-se e morre-se"



Moçambique > Mueda > CART 2369 (1968/70) > O 2º sargento miliciano Sérgio Neves junto a um mural onde se lê: "Em Mueda, os cordeiros que entram, são lobos que saiem. Adeus checas". Recorde-se que o checa, em Moçambique, era o nosso pira ou periquito.


Foto (e legenda): © Tino Neves (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
 


Rosa Serra, em Ponte de Lima,
24 de agosto de 2020.
Foto: António Mário Leitão (2020)




Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/79; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)


1. A Rosa Serra, natural de Vila Nova de Famalicão,   fez o curso geral de enfermagem no Porto, tendo aí conhecido a veterana Maria Ivone Reis (1929-2022), em 1967,  quando esta andava a recrutar jovens enfermeiras para a FAP. Fez o 45.º curso de paraquedismo, sendo "brevetada" em 13 de março 1968. Foi graduada em alferes enfermeira paraquedista.  

Conheceu os três teatros de operações da "guerra do ultramar": Guiné 1969-70, Angola 1970-71, e Moçambique 1973. Passou  à disponibilidade em 1 de março de 1974.   Vive em Paço de Arcos, Oeiras. É membro da nossa Tabanca Grande desde 25/5/2010. É coordenadora literária e coautora do livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", 2.ª edição, Porto, Fronteira do Caos, 2014, 439 pp. 

Está a ultimar um livro com a sua história de vida como enfermeira e enfermeira-paraquedista. Por cortesia sua, temos estado a reproduzir um texto inédito seu, de 21 páginas, que nos chegou às mãos através de um amigo e camarada comum, o Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970-72), membro da Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo), Lourinhã. Apresentamos  hoje a IV (e última) parte. E ficamos gratos aos dois,




Fotos do álbum de Rosa Serra (cedidas à realizadora de cinema Marta Pessoa, autora de "Quem Vai à Guerra" (2011) (Produção: Real Ficção; duração: 123 minutos)

Fonte: Arquivo Enfermeiras Pára-quedistas / Álbum de Quem Vai à Guerra (Facebook)...

Fotos (e legenda): Marta Pessoa / Quem Vai à Guerra (Facebook) (2011) (Reproduzidas com a devida vénia)... Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



História de vida (excertos): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)

IV (e última) Parte: A última comissão, Moçambique, 1973: 
"Bem-vindos a Mueda, terra da guerra, aqui vive-se, trabalha-se e morre-se"


A minha última comissão foi feita em Moçambique, não em Lourenço Marques, não em Nampula, não em Tete, mas sim no Alto dos Macondes, Mueda. Aí logo que aterrávamos, víamos uma tábua pendurada numa árvore a dar-nos as boas vindas. Que dizia: "Bem-vindos a Mueda, terra da guerra, aqui vive-se, trabalha-se e morre-se". …Muito animador para quem lá chega pela primeira vez .….!

Foram poucas as enfermeiras paraquedistas que por lá passaram. A primeiras foi a Enfermeira Ivone Reos que foi conhecer o espaço e se havia condições para irem enfermeiras para lá.

O senhor general Neto, que conhecia tão bem o nosso trabalho na Guiné, achava que as enfermeiras faziam lá muita falta. Assim começaram a ir para lá enfermeiras.

As primeiras que foram eram enfermeiras inexperientes em prestar cuidados a feridos de guerra, nunca tinham estado em nenhum lugar antes. Era assim a sua primeira comissão no Ultramar. 

Mueda era um local assustador pelo seu isolamento, toda o espaço estava rodeado de arame farpado, não havia habitação para elas, dormiam na casa dos médicos, onde existia um quarto com duas camas para as duas enfermeiras lá destacadas, os naturais masculinos de Mueda sempre de olhar carregado e desconfiado, e pouquíssimo simpáticos. 

No início havia algumas mulheres brancas esposas de militares lá colocados, que mais tarde tiveram de sair, quando Mueda começou a ser atacada. As checas (novatas) enfermeiras sofreram bastante pelo isolamento, pela monotonia alimentar, porque nunca lhes tinham entregue um corpo desfeito embrulhado numa capa impermeável, uma alimentação monótona nada saborosa,  enfim,  um local nada aprazível para se viver. Só tiveram sorte porque não apanharam a fase dos ataques a Mueda.

Na minha opinião, foi uma má decisão enviarem enfermeiras individualmente e todas elas muito jovens e para a primeira comissão feita no Ultramar.

Foi lá que a minha colega Cristina foi atingida por uma arma inimiga, quando foi fazer uma evacuação, a um aldeamento ali próximo. Segundo o seu relato, regressava de uma evacuação com um ferido a bordo e,  sem que nada fizesse prever,  de repente sentiu,  como ela diz, tipo coice, junto a uma orelha e instintivamente levou a mão ao local e verificou que estava com sangue. Ao mesmo tempo que o piloto nervoso, informa com voz alterada que estava sem comandos. Ela tentou acalmá-lo dizendo; 

–   Já estamos com a pista à vista,  aguenta o avião que lá chegaremos.

Ele responde:

  O pior é que ele pode assapar antes de chegar ao planalto, onde a pista inicia.

E ficou em pânico, quando se virou para trás e vê o sangue junto à orelha da enfermeira. Ficou de tal forma nervoso que,  com voz alterada, pede um helicóptero à pista, não obstante a Enfermaria do Setor B (Hospital da frente) ficar a cerca de 200 metros.

Chegada ao hospital os médicos acham estranho não haver porta de saída dum suposto estilhaço e fazem um RX  e qual não foi o espanto de todos, ao verem uma bala que, ao apalpar na nuca, a sentiram de imediato, por baixo da pele. Deram uma leve anestesia local e retiraram a bala, que ela ainda a tem, como recordação. 

Curioso era a sua última evacuação pois ela ia sair da Força Aérea no fim dessa comissão.

Devido a este incidente, enfermeira foi evacuada para Lourenço Marques, onde estava a Direção de Saúde da Força Aérea, que comunicou via rádio para ela ser evacuada para Lourenço Marques.

Nesse mesmo avião embarquei eu, que já tinha viagem marcada para a substituir. Quando lhe perguntam se ela não ficou com algum grau de incapacidade,  ela respondeu; 

–  Não, eu fiquei bem, a bala foi retirada e não fiquei impedida de fazer a minha vida normal.



Moçambique > c. 1973 ? > Cristina Silva > A única enfermeira paraquedista que foi ferida em combate... 

Fonte: Arquivo Enfermeiras Pára-quedistas / Álbum de Quem Vai à Guerra (Facebook)...

Foto (e legenda): Marta Pessoa / Quem Vai à Guerra (Facebook) (2011) (Reproduzido com a devida vénia)... Legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Mas encontrei outras enfermeiras possuidoras de dignidade muito elevada. Uma delas foi a enfermeira Mariana. Eu só a conheci em Mueda, só lá estávamos as duas, na dita casa dos médicos onde tínhamos um quarto com duas camas, um caixote estreito com um fio por dentro onde podíamos pendurar as poucas peças de roupa que tínhamos, e um outro fio por fora onde estava enfiado um pano que servia de porta para que, a nossa roupa não apanhasse pó.

Um dia a Mariana foi fazer uma evacuação e,  logo que o pequeno DO-27 aterrou na pista, ainda com o ferido a bordo começou um ataque á pista. O piloto sai do avião a correr, abandonando o avião e protegendo-se atrás de uns bidons cheios de arreia que cercavam a pista.

A enfermeira paraquedista Mariana não lhe seguiu os passos e ficou dentro do avião. Ela tinha bem a noção do seu dever ético, e não deixou sozinho o ferido. Só mesmo quando tudo acalmou é que saíram da aeronave e o ferido seguiu para o Hospital.

Um dia tivemos uma surpresa. Demos de caras com o nosso capitão paraquedista Saramago, que foi para lá destacado, para nos proteger. Uma das primeiras coisas que ele fez foi construir um abrigo subterrâneo logo á entrada da casa dos médicos, pois os abrigos existentes ficavam distanciados só no AM-51 e,  se fugíssemos para lá,  havia fortes possibilidades de sermos apanhadas pelo caminho.

Certo dia, num fim de tarde quando os helicópteros já não voavam e nós tentávamos esquecer as evacuações desse dia, começam os morteiros inimigos a disparar de forma raivosa, direcionados para a casa dos médicos, e para o hospital. A casa ficava separada do hospital pela placa do helicóptero. Todos fomos para o abrigo. Nesse dia tinha chegado um médico novo. Passado poucas horas da sua chegada, quando Mueda começa a ser atacada. Todos nós nos recolhemos no abrigo. Pouquíssimos minutos depois, o médico checa (novato), desabafa, dizendo:

– Sinto as pernas a tremerem,,,

E, logo se ouve uma voz dizendo;

–  É da trepidação.

 E todas as vozes em tom calmo e solidária, ressoam: 

–  Estamos todos iguais, isto já passa.

Mueda era assim, insegura, um acentuado isolamento, uma monotonia alimentar grande, de lá ninguém saía gordo, mas toda a população militar era altamente solidária.

Houve uma situação grave que levou os médicos a ficarem de vigia durante a noite à porta do quarto das enfermeiras. Tínhamos um sr. local, que limpava as partes comuns e os quartos dos médicos

Era um homem alto, com cara de poucos amigos, cujo nome já não me lembro. Um dia soube que a enfermeira Mariana iria fazer uma evacuação para Lisboa. Abordou-a e pediu-lhe para ela comprar um fio de ouro. Quando a Mariana chegou,  ele perguntou-lhe pelo fio. Ela respondeu que não o comprou não teve tempo nem dinheiro para o fazer.

Ele olhou em redor e,  ao verificar que não havia ninguém por perto, ficou com cara de mau, e disse-lhe que a matava e que,  pelo facto de não dormir lá, ele arranjava maneira de o fazer. Ela virou-lhe as costas e,  logo que ele saiu de casa, ela contou ao dr. Requeijo que era o Diretor da enfermaria de Setor B (Hospital da Frente).

Ele fez logo uma escala se serviço de vigilância ao quarto das enfermeiras. Às vezes eu brincava com ela e dizia-lhe:

–  Dorme, Mariana, o nosso Anjo da guarda está sentado numa cadeira à nossa porta e, apesar de ser anjo,  está com uma arma na mão, e só de lá sai quando outro anjo aparecer para o substituir.

Depois pensava se isto acontecesse com as enfermeiras checas, elas logo que pudessem saíam e diziam adeus à Força Aérea para sempre.

Quando se fala do hospital de Mueda, é incorreto. É apenas uma enfermaria do Setor, neste caso o setor B onde existia uma sala operatória, uma pequena enfermaria com 35 camas, um gabinete de RX. Os feridos chegavam e ao fim de 35 a 42 horas eram evacuados para Nampula ou excecionalmente para Lourenço Marques.

Era um ambiente pesado, todo o planalto estava cercado de arame farpado,  sendo só possível de lá sair por ar, exceto a engenharia, quando tinha de se fazer à picada para levar mantimentos ou armamento para quarteis espalhados pelo vale de Miteda.

Quase todos os dias tínhamos, uma ou outra visita. Uma das mais assíduas era um Capitão do Exército Caritas, que sempre aparecia com um molho de folhas brancas. Eu nunca me aproximei dele para ver o que ele rabiscava. Numa noite eu reparo que ele olhava muito para mim e,  qual não foi o meu espanto,  quando antes de se retirar me entregou a dita folha com a minha cara que ainda a tenho pendurada no meu escritório.

Também nos ríamos quando o dr. Honório começava a declamar em voz alta, os discursos revolucionários, imitando o seu conterrâneo, Amílcar Cabral. Nós ríamos e o dr. Requeijo com um sorriso dizia; 

–  Ainda vais dentro. O Monteiro (Policia da PIDE) lá residente vem ali. 

Então ele continuava ainda mais alto gesticulando durante o seu discurso.

Os Médicos que lá estavam na minha altura eram:

  • Dr. Requeijo (Diretor);
  • Dr. Amarchande (Indiano, não sei escrever o nome);
  • Dr. Honório (natural da Guiné);
  • Dr. Migueis (alcunha o "Boticão", por ser dentista, natural do Porto);
  • Dr. Curchinho, senhor um pouco mais velho que todos nós;
  • Dr. Matos, anestesista;
  • Dr. Francês, anestesista que foi substituir o dr. Matos; 
  • Dr. David (intitulado “o Professor”  por, quando jogávamos ao poker de dados, ele fazia batota, lançando os dados e recolhendo-os rapidamente, dizendo em voz alta o belo resultado obtido, todos ríamos, com gosto, era uma animação).


Tancos > RCP (Regimento de Caçadores Paraquedistas) > 8 de Agosto de 1961 > Da esquerda para a direita: Maria do Céu, Maria Ivone, Maria de Lurdes (Lurdinhas), Maria Zulmira, Maria Arminda e o Capitão Fausto Marques (Director Instrutor). Nota: Para completar o grupo das "Seis Marias", falta a Maria da Nazaré que torceu um pé no 4.º salto e só viria a acabar o curso alguns dias depois.


Foto (e legenda): © Maria Arminda (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Voltando às enfermeiras que deram grande exemplo de trabalho e seriedade...  Outro caso é o da Lurdinhas, enfermeira do primeiro curso (1961),  única enfermeira graduada em sargento cujo nome é Maria de Lurdes Rodrigues que, para os paraquedistas e toda a gente, ficou conhecida para sempre como Lurdinhas.

Nessa altura em Portugal havia um curso mais reduzido, na formação em enfermagem, eram as auxiliares de enfermagem. Tinham menos habilitações académicas, por isso eram graduadas em sargentos.

Mas a Lurdinhas queria saber mais, determinada toma uma atitude: sai da Força Aérea e, à sua custa, matriculou-se no Liceu para fazer os anos exigidos na altura, para poder frequentar o Curso Geral de Enfermagem, entrando de novo na escola que a formou como auxiliar, e só de lá saiu ao fim de três anos com o Curso Geral concluído. Entra de novo na Força Aérea,  agora como Oficial Paraquedista.

A Lurdinhas é um bom exemplo de trabalho, esforço e dignidade. Sempre a conheci como uma pessoa virada para os outros, nunca quis ser o alvo das atenções e de uma seriedade elevada.

Teve atitudes engraçadas,  uma delas foi durante o seu curso de paraquedismo. Pouco tempo depois do início do seu curso, de paraquedismo no RCP, em Tancos, informaram-na para se dirigir ao departamento de contabilidade do Regimento para receber o pré. Sem saber o que isso era, dirigiu-se ao referido serviço, e informa que a tinham chamado. Quando percebeu que lhe iam dar dinheiro ela respondeu, prontamente que ia lá pagar o seu alojamento e a alimentação!

– Aqui ninguém paga, só recebe  responderam. 

Ficou tão atrapalhada e ao mesmo tempo tão contente que que recebeu o que lhe deram e quando foi a sua aldeia,  em Tomar, deu o seu pré às famílias mais pobres. Ela era muito generosa.

Nos factos narrados se alguém em paralelo tiver dúvidas, de tudo quanto foi dito, poderá sempre fazer uma consulta às ordens de serviço do Regimento de Caçadores Paraquedistas em Tancos, ficando a saber quem foram as nomeadas para ministrar esses cursos, de primeiros socorros avançados aos seus camaradas paraquedistas e os acompanhou no estágio feito no Hospital Militar da Estrela. Assim como, quem foi a última enfermeira enviada aos Açores para confirmar a inutilidade da presença das Enfermeiras Paraquedistas naquela Ilha Açoriana.

Esclareço que a opinião desta Enfermeira, foi dada ao Senhor Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa que, logo de seguida,  cancelou a colocação das Enfermeiras Paraquedistas nos Açores.

Também na BA-4, na Ilha Terceira nos Açores poderá eventualmente haver registos, com os nomes das Enfermeiras que lá desempenharam funções e o fim da colocação das mesmas, por ordem da Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea de Lisboa.

E até nos ataques a Mueda a Força Aérea e quem lá estava, como por exemplo o general Luís Araújo, antigo Chefe de Estado Maior General das Força Armadas, furriel piloto Nuno Neto filho do General Diogo Neto,  a própria Força Aérea será talvez possuidora de alguns registos visto que os acontecimentos narrados são referentes a 1973, ano em que eu lá estive, e pouco tempo depois dá-se o 25 de Abril.

No nosso RCP,  as suas ordens de Serviço podem também ser consultadas, para saber quem foram as enfermeiras que lá estiveram, embora também possam testemunhar alguns paraquedistas que por lá passaram ou para irem fazer operações ou para serem recolhidos vindo delas. Uns do BCP 31,  outros do BCP 32, dou como exemplo, o hoje, general Chaves Gonçalves, que me lembro de o ver lá.

Rosa Serra, antiga enfermeira paraquedista, 2022


[Seleção /  revisão e fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série >


10 de dezenbro de 2022 > Guiné 61/74 - P23862: História de vida (49): Sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte II: A guerra e a sua violência... mas também havia situações "engraçadas" (como, por exemplo, quando "eles", em Tancos, tentavam esconder a revista "Playboy" quando eu chegava ao bar de oficiais...)

9 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23858: História de vida (48): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte I: A minha mãe achava que eu tinha jeito para ser enfermeira

Guiné 63/74 – P23878: (Ex)citações (419): Natal em clima de guerra na Guiné (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 


  Natal em clima de guerra na Guiné

Camaradas,

Evoquemos, em primeiro lugar, a história, sim a história guerreira, onde se cruzam os mais diversificados feitos lusitanos, embora o façamos sinteticamente e, em simultâneo, com conotações quiçá bem diferentes. Neste contexto, socorremo-nos de emblemáticas e esporádicas conjunturas que nos transportaram para vitórias lusitanas porventura originais.

A bibliografia histórica que nos é conhecida, diz-nos, em particular, que Viriato, cuja data de nascimento e local não fora determinado, terá sido, segundo o historiador grego de nome Diodoro da Sicília, chefe de uma tribo lusitana que habitava ao lado do oceano entre os anos de 147 e 139 a.C., vencendo diversos exércitos romanos, sendo o seu território de ação, como ficou narrado, a zona da atual cidade de Viseu.

Depois, lá surgiram outros factos guerreiros que terão levado o nome de Portugal aos píncaros de inabaláveis sucessos, designadamente os descobrimentos, ou, antes, a história da conquista de Portugal, aos mouros, por D. Afonso Henriques. Refira-se, ainda, com incidência na equidade suprema, que no tempo dos descobrimentos ouve um ancião que duvidou desse tão faustoso sucesso, ficando ele designado como o “Velho do Restelo”, tal como assegura Luís de Camões entre as estrofes 94 e 104 do seu canto IV da obra Os Lusíadas: “ Mas um velho, de aspecto venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando, Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, C'um saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito”.

É óbvio que perante todas as ondas de tamanhos eventos deste “massacrado” povo, surja o nosso hino nacional que diz, a determinada altura o seguinte: “Entre as brumas da memória, Ó Pátria, sente-se a voz, Dos teus egrégios avós, Que há-de guiar-te à vitória”.

Camaradas, se assumirmos que no conflito guineense a vitória passou pela circunstância de regressarmos sãos e salvos a casa, outros, porém, por lá perderam a vida ou retornaram ao seu chão estropiados, sendo fundamental que honremos, pois, a razão de por cá continuarmos a “fazer peso à terra”.

Mas, é nesta Quadra Natalícia que me reencontro com a saudade e recordo aquele Natal de 1973, em Nova Lamego.

Natal de 1973: rescaldo de uma noite quente e de luar

A consoada

A noite da consoada de 1973, quente e de luar, deixou-me imensas recordações. Lá longe, num outro ambiente completamente antagónico, a família juntava-se à volta de uma lareira e cumpria a tradição. Era a noite do Menino. Em Nova Lamego a festa era outra. A malta não se deliciava com as filhoses da avó, não comia o ensopado do galo à meia-noite, não sujava os lábios com os finos e doces chocolates, e nem tão-pouco contemplava as prendas deixados no sapatinho pelo Menino Jesus a um canto da chaminé, enfim, uma série de tradições que se protelavam nessas épocas no tempo.

Na região de Gabu o Natal desse ano, já longínquo, foi inteiramente adverso àquele que marcou a minha juventude. Recordo que os momentos de festa nos palcos de guerra deixavam antever, e sempre, preocupações acrescidas.


O repasto recomendava-se

Fazendo jus ao calor que se fazia sentir por aquelas bandas de África, resolvi alegrar a malta com momentos de atração teatral, recordando, com ênfase, o momento vivido. Ah, naquele instante já me sentia atraído pelas gotas de whisky que baldavam o meu corpo e me atacavam as pernas.

O Natal sempre se apresentou, para mim, como um momento nostálgico que curto com um místico de eterna saudade e de sentimentos múltiplos que muito me ajudaram a entender a filosofia da vida. Recordo os velhos tempos da minha aldeia. As noites infinitas, e chuvosas, de natais passadas a apanhar o calor do lume de lenha e feito no chão.

Diz o poeta que “Natal é sempre quando o homem quiser”. É verdade. Partilho por inteiro esta tamanha convicção. Na Guiné, aliás, como em qualquer outra parte do Mundo Cristão, vive-se o Natal de acordo com o ambiente em que fomos criados. A tradição propaga-se de geração para geração.






Eu, a dar as Boas Festas aos camaradas da messe que preparavam as nossas refeições

A noite de 24 para 25 de dezembro em Nova Lamego esteve ao rubro. Alguém (eu, particularmente) acicatou a malta e toca a lembrar a rapaziada que o tempo, aclamado de divino, proporcionava momentos de laser. De relaxe puro. Procurei a indumentária que julguei apropriada, escrevi dizeres equacionados com a época vivida e toca a alegrar os camaradas de armas. Escusado será dizer que a noite foi regada com uma mistura de álcool que me levou para a cama completamente toldado. Mas a noite da Consoada foi passada com euforia. Uma achega: uma Ballantines velha – 12 anos - custava naquela época qualquer coisa como 40/50 escudos, se a memória não me falha. O seu beber era divinal. Aliás, a destilação do precioso líquido era feita em pleno coração da Escócia.


Messe de sargentos em dia de Natal e com almoço reforçado. Em pé o então 2º sargento Martins, o homem que geria a messe

No dia 25, de Natal, o 2º Sargento da nossa messe, de nome Martins, um alentejano de Elvas, brindou-nos com um almoço reforçado, a malta agradeceu e divertiu-se à brava. Momentos imperdíveis que jamais esqueceremos e passados em pleno palco de guerra.

Um abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

30 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (418): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23877: Em busca de... (318): Fernando José Machado Gouveia (1945-2022), ex-militar da FAP, que passou pelo CTIG; era natural de (ou morador em) Crato, distrito de Portalegre... Sobrinha procura antigos camaradas.

 


Fernando José Machado Gouveia (1945 - 2022). 
Era natural de (ou morador em) Crato, 
distrito de Portalegre.
Foi militar da FAP, 
tendo estado no TO da Guiné.

Imagem: Cortesia da sua sobrinha SS



1. Mensagem de uma nossa leitora, sábado, 10/12, 01:38, sobrinha de um camarada nosso da FAP:


Nas minhas andanças na Net encontrei este vosso blog (andava à procura de um determinado livro RTP, um da colecção dos que chamavam "livros brancos", segundo entendi da leitura do post no vosso blog para onde fui direccionada).

Filha de militar (dessa guerra), já falecido, sou muito sensível a esta temática do ponto de vista humano, tendo um respeito enorme para com todos os que passaram por essa experiência de vida.

O que me leva a escrever-vos é notícia triste e uma pergunta.

Meu tio, Fernando José Machado Gouveia, faleceu no passado dia 9 de Novembro de 2022 (n. 19 Outubro 1945). Era tio querido e muito sofreu nos seus últimos anos devido a um estado de saúde débil (muitos problemas por sequelas de enfermidade tropical aquando da sua passagem pela Guiné), agravado por faculdades cognitivas em sucessiva perda.

Praticamente nada sei da sua vida militar, mas julgo saber que foi furriel (se não estou equivocada no posto) da força aérea, e que esteve na Guiné, embora não saiba onde nem em que anos ou funções e muito menos o seu nº mecanográfico.

Supondo ser informação escassa, daqui surge a minha pergunta: 

Quem se lembra dele, quem pode dar-me um eco, uma imagem, uma descrição, algo da sua juventude e do sacrifício na comissão que foi obrigado a cumprir? (*)

Um grande abraço com desejos de um feliz Natal a todos vós e vossas famílias.
SS

2. Resposta do editor Luís Graça,  sábado, 10/12/2022, 10:56 :


Sinto muito, querida,  a morte do seu pai e do seu tio, nossos camaradas... Veja se nos consegue dar mais dados sobre o tio Gouveia, que em princípio seria da Força Aérea: piloto ? especialista ? paraquedista ?... 

Veja a sua caderneta militar... se a conseguir encontrar. Contacte também este blogue dos

http://especialistasdaba12.blogspot.com/

Endereço de email:especialistasdaba12@gmail.com


Um bom Natal e um melhor Ano Novo,
Luís Graça, editor 
Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


3. Nova mensagem da nossa leitora que se assinada apenas pelas iniciais SS;
 
Data - 12 dez 2022 02:16  

Sr. Luis Graça,

Obrigada pelo acolhimento a esta visitante, caída no vosso blog por acaso (pára-quedas seria mais apropriado?).

Quanto a informações mais detalhadas sobre o meu tio, sei que não foi piloto, mas também que não esteve em sítio "bom"

Sei que esteve na Ota (ou Tancos?) antes da partida para a Guiné, era eu pré-adolescente na altura e ele vinha para nossa casa (de sua irmã, minha Mãe) nas folgas com sua farda azul (blusão tipo dólman de fazenda).

Quanto a mais referências,  teria de perguntar à minha tia, sua viúva. No entanto, sendo tão recente o falecimento, não quero estar-lhe a provocar mais perturbação. Ela culpa intensamente a ida de meu tio para a Guiné na juventude pelos tantos problemas de saúde física e mental,  que ele teve durante a sua vida adulta, como igualmente nutre revolta pela falta de respeito, de responsabilidade do Estado ao não ter desenvolvido cuidados de acompanhamento psicológico e médico aos ex-combatentes, pelo que falar-lhe só iria infligir mais mágoa. Quando (e se) sentir o momento próprio,  poderei perguntar-lhe, agora ainda não.

Esta é também a razão por que não posso recorrer aos canais oficiais de arquivos, porque só ela os poderia demandar e tal não lhe vou pedir.

O querer saber é meu, porque quero compreender o meu tio em todas as suas dimensões, as que puder encontrar e conseguir assimilar. Julgo ser uma forma de o homenagear ao sentir-me mais próxima dele, é necessidade minha no meu luto. 

Não sou uma "menina", tenho conhecimento e maturidade, sei que poderei encontrar elementos sensíveis ou perturbadores, mas o confronto com essa realidade dá-me força (e calo) para ser valente nesta vida (com o exemplo desses valentes), porque não quero andar alienada a fingir estar num mundo de fantasia e rosas. 

Assim fiz aquando do falecimento do meu Pai (oficial do exército, que também "infernou" em várias comissões sucessivas, em Angola e principalmente repetindo em Moçambique ), falando com alguns dos seus companheiros chegados que eu conhecia, e isso ajudou-me muito a tê-lo mais inteiro no meu coração.

Ja corri o blog que me indicou, quase de fio a pavio, mas nada encontrei. Entretanto, tomei a liberdade de ler alguns posts do vosso blog, na procura de alguma referência ou foto. Ainda não encontrei nada de efectivo, mas pelo menos posso confirmar que, apesar de homónimo, o meu tío não é este sr. Fernando Gouveia [que foi alf mil rec e inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70, e é arquiteto da CM Porto, reformado; e membro da Tabanca Grande desde 9/4/2009].

Por outro lado, pareceu-me reconhecê-lo (sem certeza) na foto em anexo. O rapazito de óculos no canto superior esquerdo (céus, alguns eram tão novos, umas crianças). Será ele? Algum ex-camarada poderá esclarecer?

 [ Foto: David Duimarães, 2005].

Desculpe se o aborreço ou se estou a fazê-lo sentir-se meu sofá de psiquiatra (pensará o senhor, suponho), sinceramente, não quero pesar com esta insistência, mas se for possível ter um vislumbre do que se terá passado com meu tio na Guiné, fico muito agradecida.

Meus melhores cumprimentos. SS

  
4. Comentário do editor LG:

Amiga, não aborrece nada. O nosso blogue também esta missão, de "serviço público", de localizar antigos combatentes, que passaram pelo teatro de operações da Guiné, seja a pedido de familiares seja de amigos e camaradas.  

Se o o seu tio era da Força Aérea, e passou pela OTA, e não era piloto, e usava farda azul, é mais provável que tenha sido 1º cabo especialista...Se sim, e passou pela Guiné, deve ter estado na Base Áérea, nº 12, em Bissalanca, talvez por volta de 1965. É uma pista... Se me diz que o seu posto era furriel (miliciano), é mais provável que tenha sido paraquedista e neste caso no Batalhão de Caçadores  Paraquedistas nº 12 (BCP 12), cujo regimento (RCP) estava sediado em Tancos... É outra pista.

O seu tio nunca poderia ser o jovem retratado na foto acima: esse, morreu à minha beira, em 26 de novembro de 1970, no subsetor do Xime, no decurso da Op Abencerragem Candente, era furriel miliciano do exército (CART 2715, Xime, 1970/72), chamava-se Joaquim de Araújo Cunha, natural de Barcelos (**).

Tanto quanto consegui apurar, o seu tio (e nosso camarada) Fernando José Machado Gouveia seria natural do (ou morador no) Crato, distrito de Portalegre. 

Veja se consegue apurar mais alguns elementos sobre a sua passagem pela FAP e pela Guiné.  Um santo Natal. Luís Graça

Guiné 61/74 - P23876: Boas festas 2022/2023 (3): Patrício Ribeiro (Impar Lda, Bissau)

 

Cortesia de Impar Lda (1991-2022)


1. M
ensagem natalícia do nosso amigo, camarada e colaborador permanente Patrício Ribeiro, com data de hoje, às 8h43. Envia-nos o tradicional postal de boas festas, da empresa de que foi fundador, a Impar Lda, e que opera na Guiné.Bissau há mais de 30 anos.

Patricio Ribeiro

IMPAR Lda

Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau , Guine Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
www.imparenergia.com/
impar_bissau@hotmail.com

(...) Desde 1991 que trabalhamos na Guiné Bissau no fornecimento de serviços essenciais de energia, água e comunicações. Instalamos sistemas de abastecimento de energia solar em todo o país incluindo ilhas. Temos centenas de instalações de bombas solares de agua. Vendemos e damos manutenção a geradores a diesel e instalamos rádios base VHF e HF em toda a Guiné, instalamos também GPS marítimos e Radares. (...) 

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 12 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23872: Boas festas 2022/23 (2):  Desde os 34 graus negativos da noite de hoje (brrr!!!!....) no extremo norte da Suécia, os votos de um Feliz Natal e Bom Novo Ano (J. Belo)

Guiné 61/74 - P23875: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IX - Bissau à vista e Agora sim, era verdade



1. IX e última parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


Bissau à vista…

Neste momento já creditávamos que era chegada a hora do regresso ao nosso ‘ninho’, à nossa família e amigos, o que nos deixava algo excitados.

Instalados no COMBIS, restava-nos descansar um pouco, relaxar e viver os últimos dias de ansiedade…
Ali perto, no Depósito de Adidos, estava um amigo meu do Porto, também já em fim de comissão, com quem me encontrava de vez em quando.
Ele queixava-se do mesmo que nós, saturação, cansaço, saudades da Metrópole.

Uma das vezes, estávamos a conversar sobre a vida, quando um outro graduado da companhia dele se lembra de fazer um cocktail, convidando-nos para o brinde.
Pegou numa cafeteira de cinco litros, de alumínio, e meteu para lá de tudo o que encontrou nas prateleiras que tinham acabado de ser abastecidas, desde whisky, brandy, gin, coca-cola, pasta de dentes, sabonete, creme da barba, leite com chocolate…, sempre a mexer com uma colher de pau, a transbordar de espuma.

Éramos quatro e foram servidos quatro copos altos, para o brinde à Metrópole.
A seguir, rebolar com dores e má disposição!...
Realmente, já não conseguíamos responder com bom senso e até a razão parecia ter sido penhorada…

Enquanto havia pesos, íamos dando um saltinho à cidade, de táxi ou em viatura militar, para uma lufada de alguma civilização, pois sempre apareciam caras novas, chegadas da Metrópole, para as respectivas comissões. Compras, já não era possível, pois estávamos sem cheta!
Limitávamo-nos a uns copos na Solmar, no Pelicano, no Bento, conhecido como a 5ª Rep.

Todos os dias nos diziam que o nosso avião estava reservado e era no dia seguinte!
Foram dois meses assim, com a impaciência e ansiedade que era difícil dominar.

Durante uma das visitas à cidade, sentado na esplanada do café Pelicano, perto do cais, um indivíduo sai do grupo de amigos, senta-se à minha mesa e, falando em inglês, identifica-se como ligado a uma legião estrangeira, residente na África do Sul e membro de uma equipa de instrutores.
Faz-me algumas perguntas, a minha especialidade, o meu curriculum militar, se era solteiro e sem filhos, se estava em fim de comissão e se tencionava regressar ao meu país.

Logo lhe respondi a tudo, claro, sem reticências ou receios, e frisei o meu interesse em regressar ao meu país, Portugal.
Já com um certo à vontade, propõe-me uma estadia na África do Sul, por um período a combinar, mínimo um ano, para dar instrução militar a voluntários africanos.
Como torci o nariz e não mostrei interesse, completou a proposta com as condições: apartamento com segurança, viatura militar ou deslocações em táxi, acompanhamento médico assegurado, cerca de 1.000 dólares americanos mensais, colocados onde eu quisesse, enfim, uma tentação, de certo modo.

Tudo isto me deu uma ideia da organização de que se tratava, embora com todas as dúvidas, mas devia ter mão dos américas… ou dos… soviéticos…
Tentador, claro, mas eu queria ver-me livre de tudo o que se relacionasse com âmbito militar, com guerras, com estar longe do meu cantinho português.
Apresentei as minhas razões e reforcei a minha decisão, como irreversível, agradecendo a proposta e desejando-lhe muita sorte.

Eu acabava de sair de uma experiência que desejava ver riscada da minha memória.
Mas tinha uma certeza: não esqueceria realidades que me acompanharam durante dois anos, embora com facetas algo diferentes, pelas circunstâncias de cada local por onde passei.
Gentes humildes e sérias dos ‘buracos do mato’, principalmente, Gadamael Porto, cujas coordenadas não mais esqueceria: Sul da Guiné-Bissau, fronteira com a República da Guiné-Conacry, sede do PAIGC, do presidente Sekou Toré e do mentor Amílcar Cabral, com grandes comandantes, como o Nino Vieira, e profissionais mercenários, como cubanos e russos…

Pureza e ingenuidade, a par do instinto de sobrevivência, da luta pela defesa dos seus e pela continuidade dos seus costumes, dos seus hábitos, da sua cultura, mesmo sabendo-se que agarrados a tradições por nós consideradas horríveis, pré-históricas.

O presidente Sekou Toré foi o líder do movimento para a libertação e independência da Guiné-Conacry, ex-colónia francesa, como o Daniel sabe.
Mas as etnias não conseguem esconder um objectivo comum: poder, liderança, por vezes, anulando os seus ideais.
Lamento recordar imagens que me ficaram gravadas de lutas quase selvagens entre gente de diferentes etnias, mas da mesma condição, com os mesmos problemas que, em vez de se unirem para conseguirem o objectivo comum, se digladiam até à morte.
Independente das etnias, têm a mesma raça, mas o racismo está presente, com evidência.

Aparentemente, as populações nativas lutavam pelos mesmos objectivos mas, quando se tratava de definirem e atribuírem poderes, lá vinha o ‘instinto’ marcado no sangue que ultrapassava o sentido da união e gerava conflito, luta pela afirmação, pelo poder, mesmo que isso pudesse pôr em causa esses objectivos.
Isto via-se nas mais pequenas atitudes e confirmou-se, mais tarde, quando da libertação do domínio português.

E lá estávamos nós, aguardando algum sinal que nos fizesse acreditar que era amanhã, o dia da nossa partida, mas sempre amanhã, amanhã.

"Após o 25 de Abril e logo a seguir à descolonização, realmente, começaram os conflitos, como o Adolfo diz, mas nós desconhecíamos o grau de ambição das etnias pelo poder, e sempre ouvíamos falar em união, no sentido da autodeterminação dos povos africanos, o que supunha a tal união…"

Pois, pois, Daniel, tanta coisa veio a descobrir-se, com o tempo, desde as manobras do processo de descolonização até às guerras internas de cada uma das ex-colónias, dando o que todos nós sabemos…
Aliás, ainda hoje se põe em dúvida a existência real das nações, angolana, moçambicana e guineense…
O que alguns políticos pensadores ou historiadores defendem é que existem, sim, diversos povos dentro de cada um daqueles territórios.

Também poderemos defender a ideia de que qualquer dos movimentos de guerrilha foi criado e financiado por outros países, outros interesses.

Em Angola, a UPA e a FNLA, criados e financiados pelos americanos, apoiados pela CIA, a que se seguiu o MPLA, criado e financiado pela União Soviética, primeiro, com Agostinho Neto, depois, com José Eduardo dos Santos, de maior confiança.
A UNITA, com o Jonas Savimbi, criada e financiada pela China e, depois, pela África do Sul, e o Jonas Savimbi chegou a mostrar interesse em negociar connosco, mas não chegou a resultar, pois deram cabo dele, como se recorda.

Em Moçambique, a FRELIMO criada pelos americanos, apoiada na CIA, em que o líder era casado com uma americana que, segundo diziam, o controlava e fornecia informações aos americanos.
Aquele líder foi morto e a liderança passou para o Samora Machel, simpatizante das linhas políticas da Tanzânia, país que lhe deu apoio, depois da saída de Portugal.

Na Guiné, o PAIGC deveu-se a Amílcar Cabral, com apoio da União Soviética, claro, e a organização era baseada em cabo-verdianos, conseguindo o apoio de Sékou Touré, líder da Guiné-Konakry, que ambicionava absorver a Guiné-Bissau.

Engraçado: em Cabo Verde, não houve guerrilha nem manifestações revoltosas - dá que pensar, não é, Daniel?..
No fundo, conclui-se que a nossa guerra de treze anos foi travada contra forças estrangeiras e não contra os muitos povos daquelas ex-colónias, mas nada podemos dar como certezas e a história contará, embora saibamos que as versões abundarão e continuarão a deixar todos confusos…
Aqui para nós, Daniel, se os quatro principais países das Nações Unidas são os principais fabricantes de material de guerra, porque apregoam pr’aí que as Nações Unidas são uma entidade séria e que promove a paz?!...
Os motivos existem, as razões existem, mas ficam guardadas fora do alcance do povo, pelo menos, dissimuladas…

Já está, acabou, embora nunca devamos esquecer o que nos custou, a todos nós, aquele período duro de treze anos!
E as feridas só passarão quando as próximas gerações nos substituírem e deixarem de ouvir falar nos capítulos que abrangerem esta parte da nossa história, seja ela contada de que forma for…
Como é costume dizer-se, ‘o tempo tudo cura’…

E lembrei-me, agora, das notícias que davam conta de um massacre ocorrido na aldeia olímpica de Munique, protagonizado por um grupo palestiniano, cujo objectivo era chamar a atenção do mundo para a causa da independência da Palestina, cujo território se mantinha ocupado por militares israelitas.
Este grupo infiltrou-se na aldeia olímpica e fez reféns alguns atletas olímpicos israelitas, segundo diziam, devido ao deficiente sistema de segurança da organização dos jogos, que pretendiam evitar que a cidade apresentasse um cenário militarizado, como tinha acontecido nos jogos olímpicos de 1936, tempo de Adolf Hitler.
Logo a seguir ao atentado, a primeira-ministra Golda Meir propôs ao então primeiro-ministro Willy Brandt a intervenção de uma equipa de operações especiais, mas foi recusada por aquele primeiro-ministro alemão.

"Sim, um acontecimento polémico, que fez correr muita tinta e levou tempo a esquecer…"


Agora, sim, era verdade…

O tão ansiado e desejado dia da partida, finalmente, chegou!

Dia 5 de Outubro de 1972, uma data que ficaria bem marcada, como outras, mas de forma mais intensa!
Preparar as coisinhas para o caminho até ao aeroporto, ali perto, em viaturas militares.

Antes disso, o desfile da praxe, numa das artérias do COMBIS, em frente à tribuna de honra, onde estavam, perfilados, o Governador Spínola e outros oficiais superiores.
À frente, o capitão, todo emproado, como lhe era habitual…

Na primeira fila da companhia, eu fiquei à direita, logo, todos deviam perfilar por mim.
Aproveitei para retardar o passo, dando como que meios passos, obrigando a companhia a guiar-se por mim, o que significou o capitão ir avançando até ficar bem longe de nós.
Quando terminou o desfile, os olhos vidrados em mim e as veias marcadas no rosto dele, donde poderiam sair raiva e fogo, se rebentassem!

Avião no ar, sobre aquela paisagem de mata, o serpentear dos rios, a bolanha, pensando que talvez fosse bom começar a arquitectar uma ideia que pudesse ficar, na minha mente, como um sonho ou pesadelo, e nunca uma realidade.

Quatro horas depois, estávamos, em Lisboa!
Infelizmente, nem todos os que partiram a 31 de Outubro de 1970 tiveram a nossa sorte!
Durante a viagem, recordo-me de olhares que trocávamos, uns com os outros, como que buscando uma cumplicidade, uma confirmação de que estávamos a regressar a casa.

No aeroporto, as nossas gentes aguardavam que saíssemos do avião, ansiosos por um abraço forte e de alívio!

Como as viaturas militares nos apanharam à saída do avião, dentro da pista, e nos levaram para o RALIS, ali na zona do Bairro da Encarnação, que o Daniel conhece, as nossas gentes tiveram de lá ir ter, onde aguardariam a nossa saída.

O ‘espólio’ era um ritual e obrigação, principalmente, pelas ‘peças’ que deixariam de estar ao nosso dispor, assim como alguns papéis de última hora, e a lembrança de que manteríamos o nosso estatuto, por mais uns dias, até à disponibilidade, a ‘peluda’.
Só conseguimos estar despachados por volta da dez da noite!

A despedida dos homens que nos acompanharam, durante tanto tempo, comungando de realidades e criando cumplicidades, por força das circunstâncias, requeria uma certa frieza, pelo momento difícil que era.
Sabíamos que todos tínhamos deixado uma vida, uma realidade que conhecíamos, para enfrentarmos o desconhecido, por mais informação que tivéssemos, levados por uma boa dose de ingenuidade, quer queiramos, quer não.

E também sabíamos que a separação, neste dia, seria temporária, pois alguém pegaria na tarefa de nos fazer juntar, de vez em quando, para um convívio, reviver os bons momentos, sem deixar de recordar os maus momentos, próprios de cenários como o que nos aguardava, quando saímos dos nossos cantinhos de conforto, naquele dia 31 de Outubro de 1970.
E estes maus momentos estariam, sempre, ligados a quem não mais poderia concretizar projectos de vida, os que poderíamos lembrar e homenagear nestes convívios.
E aquela vida, aquela realidade, voltava às nossas mãos, agora, com os ensinamentos que ganhámos nesse tempo e nesse espaço, mas nunca suficientes para nos compensarem três anos de algo pouco parecido com vida…

FIM

_____________

Nota do editor:

Postes anteriores de:

24 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23814: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte I - "e toma lá com o edital!"

27 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23821: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte II - Tavira e Leiria

29 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23827: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte III - Abrantes e Santa Margarida; três dias de detenção e, o Rosa e o Cunha

1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné

4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto

6 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

8 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias
e
11 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23866: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VIII - De novo, Guiné e, Finalmente, o prémio

Guiné 61/74 - P23874: História de vida (50): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte III: Relembrando o enorme prazer de saltar de paraquedas (e os meus instrutores, srgt Nogueira e cap Cordeiro)... O último salto que fiz, foi em dezembro de 1973, quatro meses antes de passar à disponibilidade


Cópia do documento atestando a atribuição do grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência 
à alferes enfermeira paraquedista Maria Ivone Quintino dos Reis, em 28 de fevereiro de 1962.  O original foi doado ao museu do RCP (Regimento de Caçadores Paraquedistas), em Tancos.


Foto (e legenda): © Rosa Serra (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Rosa Serra, em Ponte de Lima,
24 de agosto de 2020.
Foto: António Mário Leitão (2020)


 1. A Rosa Serra, natural de Vila Nova de Famalicão,   fez o curso de enfermagem no Porto, tendo aí conhecido a veterana Maria Ivone Reis (1929-2022), em 1967,  quando esta andava a recrutar jovens enfermeiras para a FAP (*). Fez o 45.º curso de paraquedismo, sendo "brevetada" em 13 de março 1968. Foi graduada em alferes enfermeira paraquedista.  

Conheceu os três teatros de operações da "guerra do ultramar": Guiné 1969-70, Angola 1970-71, e Moçambique 1973. Passou  à disponibilidade em 1 de março de 1974. Tem sido, juntamente ccom a Maria Arminda Santos e a Giselda Pessoa,  uma das mais mais ativas e profícuas autoras de textos sobre a história das enfermeiras paraquedistas e as suas protogonistas. 

Vive em Paço de Arcos, Oeiras. É membro da nossa Tabanca Grande desde 25/5/2010. É coordenadora literária e coautora do livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", 2.ª edição, Porto, Fronteira do Caos, 2014, 439 pp. 

Está a ultimar um livro com a sua história de vida como enfermeira e enfermeira-paraquedista. Como "aperitivo", estamos a reproduzir aqui, por cortesia sua, um texto inédito seu, de 21 páginas, que nos chegou às mãos através de um amigo e camarada comum, o Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970-72) (**), membro da Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo), Lourinhã.



Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/79; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)


História de vida (excertos): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)

Parte III:  Relembrando o enorme prazer de saltar de paraquedas (e os meus instrutores, srgt Nogueira e cap Cordeiro)  ... O último salto que fiz,  foi em dezembro de 1973,  quatro meses antes de passar à disponibilidade

E continuei seguindo a ordem das perguntas, agora sobre as desilusões (**) que expliquei não ser no plano pessoal, mas que foi nesta passagem pela Força Aérea, que despertei para os interesses de algumas pessoas, uma delas que serviu mal a Força Aérea, mas aproveitou-se bem dela, com incapacidades falsas, dadas por médicos sem escrúpulos, e que todos nós pagámos com os nossos impostos, para essa pessoa estar isenta de IRS com uma alta incapacidade há mais de quarenta anos.

É a única mulher “combatente” na lista dos deficientes das Forças Armadas, dos antigos combatentes da guerra do Ultramar Português. Desculpem a expressão, é uma “ovelha tresmalhada”, para nossa tristeza e desilusão, que não pode servir de exemplo para ninguém.

É triste ver uma nossa enfermeira, sempre saudável, que ignora os princípios éticos, inerentes à sua profissão, a Enfermagem.

Foi ainda como enfermeira paraquedista que despertei para muitos outros interesses que me escandalizaram:  caso dos Açores.

Sempre achei estranho situar-se na Ilha Terceira, um minúsculo hospital, rotulado como Hospital da Força Aérea, existindo apenas nessa ilha uma única Unidade Militar (BA 4) que, se algo acontecesse aos jovens militares, poderiam recorrer ao hospital civil, de Angra do Heroísmo, enquanto que no Continente existiam várias Bases Aéreas espalhadas pelo País, e sem qualquer hospital desse Ramo.

Os militares da Força Aérea só poderiam ser tratados ou socorridos no Hospital Militar da Estrela.

Nesta ilha açoriana existia um médico, salvo erro graduado em tenente coronel, que,  ao saber da existência de enfermeiras paraquedistas e sendo amigo do Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, pediu a este se poderia enviar duas delas aos Açores, pois gostaria de as conhecer.

O Senhor Diretor assim fez, enviou duas enfermeiras que, ao chegarem lá, arregaçaram as mangas e com o seu profissionalismo, deram uma volta tal à orgânica, dos fracos serviços de enfermagem lá prestados, que o sr. Diretor gostou tanto que avançou logo com novos pedidos, ao seu amigo de Lisboa. Como os argumentos que iria usar, acreditava ele, que o Diretor de Lisboa não iria recusar.

A primeira proposta foi para que as enfermeiras paraquedistas, após o curso de paraquedismo e como forma de adaptação aos Serviços de Saúde Militar, passassem a fazer um estágio no Hospital da Terra Chã e só depois seguiriam para o Ultramar.

(Note-se: nessa altura havia uma enfermeira que quando se candidatou a paraquedista, desempenhava as suas funções no Serviço de Urgência do Hospital Central da Cidade onde trabalhava e, pasmem-se, também essa foi fazer estágio aos Açores no pequeno hospital da Ilha Terceira. Enquanto que o primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas, após concluído o curso de paraquedismo, foi fazer um estágio no Serviço de Urgência do Hospital de S. José. Espantados…? Eu também.)

Voltando ao nosso Diretor da Terra Chã:  pouco tempo depois, deparou-se com um obstáculo, houve anos em que nenhuma enfermeira se candidatou a Enfermeiras Paraquedista.

Esperto como era, o Senhor Diretor dos Açores apresentou nova ideia ao seu amigo de Lisboa:  

–  Senhor Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea Portuguesa  argumentou ele –, coitadas das nossas enfermeiras, com um trabalho tão desgastante no Ultramar, bem merecem descansar nesta pequena, pacata e linda Ilha Açoriana durante uns tempos.

E para lá foram descansar algumas. Mas,  como em tudo, há sempre alguém que não está na Força Aérea para fazer favores a este tipo de pessoas, até que chegou o dia em que o sr. Diretor de Lisboa informou essa enfermeira que teria de ir para os Açores.

Essa senhora enfermeira foi, mas apenas para arranjar argumentos suficientes para nunca mais lá pôr os pés. Passado pouco tempo da sua estadia na bela Ilha Açoriana, a mesma enfermeira foi à BA 4,  pediu uma viagem para Lisboa e apresentou-se na Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, colocando os seus motivos para não voltar aos Açores.

Perante os argumentos apresentados,  o sr. Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea de Lisboa ligou logo para a  ilha, informando o seu amigo e lamentando que a dita enfermeira tinha argumentos demasiado fortes para não ir para os Açores. E acrescentava que, de facto, as enfermeiras paraquedistas, não tinham sido  criadas para essas funções.

O diretor Açoriano, com a sua prepotência, barafustou até se cansar e rematou que não era a sra. enfermeira que se recusava, era ele que não a queria lá, pelo seu mau feitio.


A então ten enf pqdt Ivone Reis,
em Cacine, 12/12/1968. Nasceu
em 1929, faleceu em 2022.
Foto: António J. Pereira
da Costa
 (2013)



Como curiosidade, que eu saiba, do primeiro curso de enfermeiras paraquedistas foi esta a única enfermeira paraquedista que,  no ano seguinte após concluído o curso de enfermeiras paraquedistas, lhe foi atribuído o grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência,  dada pelo sr. Presidente da República Américo Tomás, visto e registado a fl. 109 L.2 Decreto de 28 de fevereiro 1962, publicado no Diário do Governo nº 73, 2ª série de 27/3/1962, Expedido pelo Chancelaria das Ordens Portuguesas aos 3 de abril, de 1962, nº 1588. Por tanto cerca 6 meses depois, do primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas terminar a meio de agosto de 1961.

Em cima  a foto do respetivo diploma cujo original foi oferecido para o museu do 
Regimento de Caçadores Paraquedistas (RCP), em Tancos, no dia 15 de outubro de 2022.

Entretanto o  RCP, em Tancos, que tinha uma elevada noção de guerra, sabia que os primeiros socorros em terra, mesmo antes do Helicóptero de Socorro chegar, são importantes e, como tropa organizada e inteligente que é, teria de ter sempre alguém capaz para analisar qualquer situação, como: proteção à clareira onde o Helicóptero pudesse aterrar em segurança, assim como alguém devidamente preparado, que prestasse os primeiros socorros aos seus camaradas feridos, até esta aeronave chegar e os levar para o hospital.

A Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea apenas se preocupava com os ditos “enfermeiros” da Força Aérea, que nos Açores aprendiam a dar comprimidos, injeções e a desinfetar pequenas escoriações e com fracas noções de assepsia.

Os paraquedistas resolveram a sua questão, não deixando que a Direção de Saúde da Força Aérea de Lisboa resolvesse o seu problema. Assim, nomearam enfermeiras paraquedistas, em anos diferentes para,  no próprio Regimento,  darem um Curso Avançado de Primeiros Socorros aos seus camaradas paraquedistas, acompanhando-os no respetivo estágio feito no Hospital Militar Principal em Lisboa.  

E os socorristas Paraquedistas ficaram mais bem preparados, e de forma mais adequada e mais eficaz, para poderem cuidar dos seus camaradas quando feridos ou doentes, até o Helicóptero chegar e os levar para o hospital.

Deixaram assim os “enfermeiros” da Força Aérea, sossegados nas suas Bases Aéreas,  a fazerem precárias tarefa tal como lhes ensinaram.

Foram três enfermeiras paraquedistas que, em anos diferentes, foram nomeadas para darem formação adequada aos seus camaradas socorristas paraquedistas e os acompanharam no seu estágio no Hospital Militar da Estrela em Lisboa.

Quando chegou a minha vez, após dar à formação aos nossos socorristas paraquedistas, com respetivo acompanhamento do estágio feito no Hospital Militar da Estrela, aproveitei e formulei um pedido ao nosso comandante, sr. coronel Fausto Marques, autorização para fazer o curso de instrutores e monitores, tal como a enfermeira Manuel França o tinha feito 2 ou 3 anos antes. 

Fui autorizada e concluí-o com muito gosto. Fiz este curso apenas pelo prazer de saltar e considero ter sido mais um contributo para o meu próprio equilíbrio. Devo este prazer de saltar ao meu instrutor do curso de paraquedismo, na altura o senhor sargento pqdt Nogueira, meu querido instrutor, que me estimulou o prazer de saltar.

Sempre me disse que eu saltava muito bem da torre e por isso podia perfeitamente tirar partido desses momentos mágicos que os saltos nos proporcionam. Dizia-me ele; 

–   Primeiro logo que larga a porta,  mantem o corpo recolhido e conta 232, 233, 234, que é o tempo para a calote se soltar do arnês e abrir. Depois é necessário verificar se todos os cordões não estão enrolados, e saber de que lado vem o vento. Com os pequenos minutos que lhe restam,  aproveita para olhar mais longe, ver o horizonte, ver a terra de cima. Depois certifica-se de que lado vem o vento e,  se necessário,  fazer trações, para que este não a leve para zonas não aconselhadas, evitando assim acidente.

Sempre fiz isso, tudo como ele me ensinou. Apenas me surpreendeu o silêncio, que o “escutei“ com surpresa e foi maravilhoso. Razão por que anos mais tarde pedi ao nosso primeiro comandante Fausto Marques, para fazer o curso de instrutores e monitores só pelo prazer de saltar. Foi meu instrutor neste curso o sr. capitão pqdt João Costa Cordeiro que, quando acabei o curso me convidou para um jantar em Abrantes com ele e com a sua esposa.

Fiquei tristíssima quando,  poucos anos depois,  ele foi para a Guiné e morreu num salto de queda livre.

Fiz vários saltos, sendo o último feito na Beira,  em Moçambique. quando de passagem para Lisboa, vinda de Mueda no fim da minha comissão, aguardando no BCP 32 pelos feridos, que vinham de Lourenço Marques. 

O primeiro foi um salto automático e,  acabada de chegar a terra e logo de seguida,  vi a filha do engenheiro Jardim, a Carmo, junto a um Helicópetro da Força Aérea,  equipada para fazer um salto manual, eu que estava junto de um paraquedista perguntei-lhe se havia um paraquedas para eu fazer um salto manual. Como foi buscar de imediato um, eu informei o piloto, que estava já dentro da aeronave,  que também eu ia saltar. 

Assim foi,  entrámos as duas, e a Carmo nem “tugiu nem mugiu", simpática pensei eu, mas ignorei a presença da dita filha do engenheiro Jardim, entrámos. Ela ficou mais perto da porta quando já estávamos numa altura suficiente,  já não sei a quantos metros de altitude, ela saltou e, de seguida, saltei eu. Foram os dois últimos saltos que dei e a última comissão que fiz. Fins de dezembro de 1973.

É de notar que nunca viemos como passageiras, mesmo em fim da comissão, sempre viemos prestando cuidados e assistência aos feridos durante toda a viagem até Lisboa.

(...) 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Links / Titulo e subtítulo / Parênteses retos com notas: LG]

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Notas do editor:

(...) Muito recentemente, ao sair do Serviço de Urgência para o internamento do Hospital de Cascais, uma enfermeira jovem fez-me as seguintes perguntas: (i) quando resolveu ser enfermeira?;  (ii) nunca se arrependeu por ter escolhido enfermagem?;  (iii) onde trabalhou? (iv) quantos anos exerceu essa profissão?;  e (v) teve alguma desilusão ou desilusões?

Após a minha narrativa dos vários locais onde exerci a minha profissão, logicamente também referi que fui enfermeira paraquedista. A jovem, de olhos abertos de espanto, informou-me:

– O meu marido é militar paraquedista.

Sorri… (...)



(...) Perguntaram-me, no Hospital de Cascais onde estive recentemente internada, onde trabalhei, e ficaram admiradas, as enfermeiras, quando desfiei os vários locais e as experiências que tive durante quarenta anos.

Há um que deixou todas ainda com mais espanto. Foi o período em que estive na Força Aérea, como enfermeira paraquedista. (...)