terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7397: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (3): O segundo dia em Bissau

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Dezembro de 2010:

Caríssimo Carlos,
Tenho trabalho em Faro na 2ª e na 3ª feira, volto à escrita na 4ª.
Por favor, não te esqueças de legendar aquela tocante página referente ao Pel Caç Nat 63, o Jorge Cabral não me perdoaria a omissão.
A seguir, vou para Bambadinca, há um lote de sexagenários à minha espera. E depois parto para o território que percorri em todos os sentidos. E irei pela primeira vez aos diferentes territórios do então inimigo, em Madina e Belel, para lá do Poidom e na Ponta do Inglês.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (3)

Beja Santos

O segundo dia em Bissau

1. Engolido um croissant sensaborão com café instantâneo, o Tangomau lança-se na Pansao N’Isla, há uma luz crua que torna a laterite ainda mais afogueada. Pela primeira vez dá consigo a pensar que cada edifício tem um guarda, habitualmente um idoso ou um jovem segurança, parece ser uma actividade que não predispõe pessoas de meia-idade. A cidade tornou-se insegura, não há empresa ou cidadão com algumas posses que não recorra a um anjo da guarda de assaltos à mão armada. Inflecte novamente para a Praça dos Heróis Nacionais e confirma que as ondulações do monumento que na era colonial foi dedicado “ao esforço da raça” são ocupadas por seres humanos que delas fazem sofá, tal a sombra que oferecem.

Descendo a Avenida Amílcar Cabral, dois quarteirões à frente interpela o segurança da casa do Eng.º Filinto Barros, com quem tem entrevista aprazada. Cerca de 19 anos antes, era o Eng.º Filinto, Ministro da Indústria e dos Recursos Naturais, quando o Tangomau chegou à Guiné para propalar algum ideário básico acerca do consumo essencial e das coisas que se podiam fazer para minorar a degradação das condições de vida. Ao tempo ainda se fizeram uns 6 programas televisivos, tudo acabou na descontinuidade, como é uso e costume. É um reencontro cordial, traz-se uma lembrança, precisamente alguns exemplares do Kikia Matcho, uma pequena jóia literária, o desalento de um combatente do PAIGC que acaba na mais profunda das solidões, ignorado mesmo pelos parentes mais novos. A conversa começa exactamente pela crítica que o Eng.º Filinto faz neste romance à desordem urbana, à exibição anárquica dos lixos e à morte dos jardins. Perdeu-se o culto pelo asseio público, o trivial a escarrar, atirar embalagens, cascas de banana, em qualquer segmento da via pública. O Eng.º Filinto fala do que anda a escrever, mais uma obra de ficção que tem como cenário o conflito político-militar e também um ensaio sobre a política económica do tempo de Luís Cabral.

O que o Tangomau vem propor é que se encontre uma pauta comum, um espaço de diálogo entre antigos combatentes, para se falar das suas visões e experiências quanto à guerra e o Outro, tudo para publicar em livro. Toda a gente sabe o muito que há por fazer: comparar os relatos, nos dois campos, confrontar, se possível, poesia e prosa, fazer recurso às memórias, relatos dispersos, relatórios de operações, o que houver. Do lado do PAIGC, observa o dono da casa, perdeu-se muita documentação e há silêncios consentidos, prudentes. Tem conhecimento de algumas iniciativas, propõe, quando o Tangomau regressar do Leste, que haja um encontro com um dirigente histórico, Chico Bá, que se envolveu num projecto com Mário Cabral e Gil Fernandes e que tem a ver com o cruzamento de testemunhos durante o antes e o após a independência, é um exercício de diferentes experiências.



2. Novamente na Embaixada, recomeçam os telefonemas, é preciso descansar o Fodé, informar o anfitrião do Bairro Joli, depositar as últimas encomendas. E começa a descida para a Baixa de Bissau, primeiro pergunta-se no serviço de impostos se está Mamadu Soaré Soncó, aquele menino que queria vir para Portugal no fim da comissão do Tangomau, em 1970. Não estava, fora ver ao hospital o irmão Quecuta, que estava muito mal. Nas ruas por onde passava era interpelado por muitos jovens, instado a cambiar euros ou dólares por francos CFA. É um ambiente que tresanda aos expedientes de gente sem trabalho. Em frente ao mercado central, parou estarrecido diante de uma porta de ferro presa a cadeado: lá dentro fora tudo consumido por um incêndio, agora o mercado era ali à volta, alfaiates, peixaria, consertos de viaturas, os sapateiros aprimoram calçado com agulhas prodigiosas. O Tangomau pergunta pelo Solar do Dez, alguém indica um local onde agora funciona uma discoteca.

A temperatura sobe, a garrafa de litro e meio, encetada nos alvores da manhã, está quase vazia. Segue-se a peregrinação ao local onde funcionou o Comando da Defesa Marítima da Guiné, foi ali que o Tangomau avistou o comandante Teixeira da Mota, em 1969. Pede licença para tirar uma fotografia à guarita, que se mantém ajanotada. Seguem-se prolegómenos de consulta, vem um oficial de dia que autoriza o registo.

Quando se despedem, ele aborda o Tangomau: “Não tens aí 5 mil francos para mim?”. O interpelado não esconde o horror da pergunta, e foge em direcção ao Pidjiquiti e daqui sobe até à Pensão Central onde o aguarda uma deliciosa canja de ostra, uma boa posta de sereia com batata cozida e duas rodelas de papaia ao ponto. Sente-se sonolento, olha tristemente a laterite que se colou aos sapatos, coça as canelas, é por que as poeiras vão subindo à procura do suor pegajoso. Vai para a varanda e lê umas páginas de “O Poder e o Povo”, de Vasco Pulido Valente, não sabe a que propósito é que trouxe este ensaio demolidor sobre os fiascos do 5 de Outubro, vem ali a história do Partido Republicano Português que não se conta habitualmente nas escolas, também ali se demonstra, preto no branco, que houve mais perseguições e desordem na I República que nos tempos da Monarquia.

E adormece, foram os minutos reparadores, pelas três da tarde apareceu o Delfim Silva, segue-se um encontro em que se fala sobre a historiografia do PAIGC, o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros faz observações sobre essas lacunas, a conversa centra-se sobre o que se passou na Guiné e no PAIGC entre 1973 e 1974. O Delfim deixa o Tangomau no INEP, ele vai dar aulas ali perto, Mamadu Jao, o director, mostra-se receptivo a apreciar uma proposta de investigação em torno das memórias do lado português e guineense, durante a luta armada e pós-independência, investigadores não faltam, o que é cada vez mais minguado é o financiamento dos projectos.

No regresso, o Tangomau mete-se na confusão do mercado de Bandim, pergunta por panos manjacos, foi um insucesso total. É nisto que passa Mamadu Jao, vai a caminho da cidade, dá-lhe boleia, deixa-o à porta do cemitério. O calor não abranda e não se vislumbra a chegada do fim do dia. O talhão dos combatentes está limpo, alguém no cemitério explica que andaram por ali a fazer limpezas à volta do 1 de Novembro. Ele ciranda em torno doutro talhão, correspondente às campanhas de pacificação, ali ao menos há um monumento condigno, não percebe porque é que os soldados mortos durante a guerra colonial não têm direito a um monumento, uma qualquer evocação.

Reza por todos os mortos e sai para a torreira do sol, contorna a Amura, conversa com uma sentinela, não vale a pena insistir, não se pode entrar naquela área militar, mesmo para ver o túmulo de Amílcar Cabral. Mais abaixo, procura vestígios do restaurante Pelicano e o que ali encontra, sem exagero, são escombros. Atónito, interroga os passantes, é tudo muito difícil, são dadas algumas respostas breves em crioulo, dá para entender que o Pelicano caiu para nunca mais se levantar. Agora é que o Tangomau se sente descorçoado, sobe a Pansao N’Isla à procura de um duche na Pensão Lobato.


A casa de banho está na mesma. Brunido e penteado de fresco, parte à procura da janta. Entra no restaurante Jordani e pede dois ovos estrelados com batatas fritas. Regalado, numa cidade sem iluminação, com os passeios aos altos e baixos, saltita ao sabor dos fogachos dos faróis. Pega no Pulido Valente e lê mais umas páginas, são greves, ajustes de contas, perseguição de padres. Vai adormecendo, embalado pela certeza que amanhã chegará a Bambadinca.
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Nota de CV:

Vd. postes de:

4 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7379: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (2): O primeiro dia em Bissau
e
5 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7384: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (1): Dias 18 e 19 de Novembro de 2010

2 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Recebi hoje novas da Guiné.

Dizer, que não esperava ouvir o que ouvi seria mentir.Mas não esperava tanto.
Não é só o Palácio do Governador que assim está...curiosamente dizem que há o contrário também...antes as ruínas!

Mário BS um abraço do T.

Anónimo disse...

A maior desilusão será se não vierem a sobrar os marcos das fronteiras como ia acontecendo com Timor.

Porque bem no íntimo, a luta não tinha outro objectivo se não esses marcos.

A história dirá.

Antº Rosinha