1. Texto, enviado em 2 do corrente, pelo nosso camarigo Agostinho Gaspar,ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74), natural do concelho de Leiria, e membro da Tabanca Grande e da Tabanca do Centro:
Recordar o passado, viagem para o desconhecido
Caros amigos editores e tertulianos:
Depois do último jantar no R.I. 16, em Évora, do dia 4 para 5 de Outubro de 1972, o Tenente João Manuel de Matos e Silva Mendonça chamou os aspirantes, os cabos milicianos e alguns soldados para a entrega dos galões, das divisas, das promoções a capitão, alferes, furriéis e 1ºs cabos. Foram horas de azáfama.
Depois de se ter entregue e feito o espólio pertencente ao quartel, já com as malas feitas e as últimas recomendações, chegou a hora da partida para um destino desconhecido, que só nos bancos da escola primária, dez anos antes de embarcar, tinha ouvido falar: era a Guiné.
Depois de receber uns certos papéis, guias de embarque e boletins de vacina, para que na hora não faltasse nada, o 1º sargento chama o capitão e avisa que há um militar que também era cabo e ia ser acompanhado sob escolta até a entrada do embarque. Eu, que era o último dos cabos, o 1º sarg. Miguel que já faleceu no ano passado, vira-se para mim e diz:
- Ó nosso cabo, tu e outro vão acompanhar e fazer segurança a um preso, é preciso que levantem armamento, quando o preso estiver em lugar seguro as armas serão entregues aos condutores dos nossos transportes.
Depois de ouvir o sermão e de ter acabado de falar , chegou a minha vez de falar, recordo ainda as palavras como se fosse hoje:
- Ó meu primeiro-sargento Miguel, eu nem pertenço a esta guerra e muito menos sei mexer em armas e fazer segurança.
O capitão que estava ao lado vira-se para mim e pergunta-me quem eu era:
- Sou o cabo mecânico da companhia - respondi.
A resposta dele foi bem clara:
- Tens razão, é melhor ser um atirador ... - Palavras e ordem tão sensatas e que alívio… Tinha chegado á companhia semanas antes e não conhecia ninguém e já o sargento me estava a meter medo e em sarilhos se corresse alguma coisa mal.
Tudo preparado, as bagagens carregadas nas viaturas, dia 5 de Outubro de 1972, era uma noite de chuva e bastante fria, pela uma da manhã, eu já com vinte e dois anos feitos em Abril, entrámos para as viaturas com o destino a Figo Maduro, aonde um Boing 707 da Força Aérea estava á nossa espera, com uma pequena paragem pelo caminho para esvaziar a bexiga para o avião ficar mais leve.
Chegámos pelas seis da manhã, alguns familiares já se encontravam para as últimas despedidas, da minha parte não tinha ninguém, já as tinha feito em casa. Pelas sete o altifalante começou a chamar um a um pela ordem de embarque para fazer o check-in, entregar as bagagens e receber o número do lugar. Fui um dos primeiros, a minha cadeira o nº 13C, do lado esquerdo. No 13A ao lado janela ia o cabo Silva Ribeiro (o Padeiro), no13B, ao meio, o furriel mecânico, no 13C a minha pessoa, cabo mecânico.
Mais uns tempos de espera e os últimos abraços e beijos aos familiares: pais, esposas namoradas, filhos e amigos. Por volta das nove horas novamente os altifalantes anunciavam o embarque, silêncio total, iam chamando, o pessoal ia entrando, ocupando os lugares destinados. Depois de estarem todos sentados, porta fechada, era um dia de Outono chuvoso e frio, íamos bem agasalhados, mal sabíamos que nós que passado algumas horas estaríamos a ser sufocados por altas temperaturas.
Com o roncar dos reactores, o avião começou a movimentar-se para a pista, era o meu baptismo de voo... Ao longo de toda viagem era um silêncio total. Foi servida uma refeição. Quatro horas depois chegámos a Bissau, quando o avião parou só passado mais de quarenta minutos é que abriram a porta e nós a olhar pelas janelas, tudo aparecia diferente e estranho de ver, as pessoas em mangas de camisa e calções, e a nós só nos faltava o sobretudo.
Quando saímos da porta para fora, ao descer as escadas do avião perecia que íamos para o inferno, não sei se existe… (mas o verão quente de 73, passei-o no inferno de Gadamael, mas esta história fica para a próxima).
Ao sair do avião fomos recebidos por um graduado, não tenho a memória de quem era. Formados em parada na pista, veio a dar-nos as boas vindas para o nosso calvário. Na maior força do calor o oficial falava, nós sem perceber o que ele dizia e a tropa a secar e a assar ao calor, e alguns até desmaiaram.
Acabadas as cerimónias militares, as viaturas rumam ao Cumeré para uma estadia de algumas semanas. Dentro do quartel, ainda em cima das viaturas, fomos recebidos pela praxe, "Pius pius pius"...Eram os da 2ª CCAÇ do nosso BCAÇ 4612/72, tinham chegado dias antes e já se consideravam velhinhos!
Um abraço aos amigos tertulianos
Agostinho Gaspar (**)
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 3 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6100: Tabanca Grande (211): Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74 (Agostinho Gaspar)
(...) Sou o Agostinho Gaspar, moro na Boa Vista, Leiria e fui 1.º Cabo Auto Rodas da 3.ª CCAÇ/BÇAÇ 4612/72, que esteve em Mansoa.
Não venho falar de guerra, mas sim do tempo de tropa do meu serviço militar. No meu pensar, classifico os que fizeram a tropa em três classes: felizardos, felizes e infelizes, no meu caso, devo estar no grupo dos felizes.
Em 1970 fui à inspecção militar, nos editais da freguesia contavam (19) dezanove nomes, mas no dia (das sortes) compareceram somente onze (11), os outros já tinham passado a fronteira, uns com família, outros sem família, e a viver nos arredores de Paris.
Fiz a recruta em Janeiro de 1972, na CICA 4, em Coimbra, passei para EPSM, Sacavém, onde tirei a Especialidade de Mecânico, estagiei no RI 7 de Leiria. (...) Terminado o estágio, novamente na EPSM durante a semana iam chegando os estagiários do meu turno de vários quartéis, no final mês de Agosto, fim-de-semana sai na ordem de serviço as mobilizações… dos cento e poucos do meu curso, metade estava na lista para a Guiné, e eu fui deles! Calhou-me na rifa o BCaç 4612/72 que estava a formar no RI 16 em Évora, outros foram para várias unidades que embarcaram na mesma altura. A 5 de Outubro de 1972 rumei nos aviões da TAM com destino a Bissau. (...)
(**) Último poste desta sérei > 15 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7285: História de vida (34): Do Cunene a Gadamael ou as (des)ilusões do Portugal plurirracial e pluricontinental... Para o Cherno Baldé, com apreço (José Gonçalves)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Amigo e camarada Agostinho Gaspar:
Bonita descrição do teu baptismo de voo e da tua iniciação nos preliminares da guerra.
Cá espero pela tua versão do Verão quente de 73 em Gadamael!
Um abraço
Manuel Reis
Agostinho: Soube, ontem à noite, pelo Carlos Vinhal (e este através do Hugo Moura)que morreu o João Barge... De doença.
Conheci-o na Tabanca do Centro. Era muito amigo do Mário Cláudio e do Carlos Nery. o Nery prometeu escrever duas linhas sobre mais este camarigo que desaparece do nosso convívio. Temos a obrigação de o recordar, com saudade. Ele passou por Gandembel... É do tempo do Idálio Reis. Era um homem e grande sensibilidade e cultura. Poeta, com obra publicada. Aveirense. Professor aí em Leiria. O Nery, que já falou com a filha, disse-me que o funeral terá sido hoje... Tu conhecia-lo bem ? Ou só de vista ? Um abraço. Luis
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