Caros Carlos, Luís, Magalhães, Briote e restantes camarada da Tabanca Grande
Com a proximidade do 5 de Outubro não podia deixar de evocar o meu avô do qual a minha avó me contou muitas estórias. Ele morreu quando a minha mãe tinha nove anos, sendo ela a oitava dos nove filhos que deixou.
Os seus ideais foi a única coisa que nos deixou, a mim também deixou o nome. Só um homem de grande estatura cívica poderia deixar a admiração que todos nutriam por ele.
Se acharem que o tema não se desvia muito do sentir do blogue ficou grato por esta pequena homenagem.
Juvenal Amado
ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO (39) > O MEU AVÔ JUVENAL, O BENJAMIM E EU
Mosteiro de Alcobaça - Ala Norte
Quem vinha de Caldas na direcção Norte passava por esta rua
A ala Norte do Mosteiro de Alcobaça foi durante bastantes anos ocupada pela instituição denominada Asilo da Mendicidade de Lisboa.
Dizem que para cá veio como castigo pelos constantes assaltos ao quartel, que então aí esteve instalado.
Eu conheci bem o seu interior, uma vez que um tio meu lá trabalhou e eu ia lá com o meu primo, quando ele levava alguma coisa ao pai ou simplesmente quando ele queria lá ir sabendo que aqueles muros, escadarias, corredores e salas de pedra gasta, repletas de homens muitos deles andrajosos, onde a humidade escorria das paredes na maior parte dos sítios de pedra nua, me incomodava até à beira do terror. Eu fazia-me forte mas por dentro todo tremia.
Como o nome indicava era um asilo para desvalidos, aí se misturavam velhos, loucos, atrasados mentais e deficientes de toda a espécie. Vários casos de tuberculose, uma grande percentagem de alcoólicos e doenças várias numa população que andou perto dos 2000 internados se é que não chegou a ultrapassar. Bem de ver que controlar a sobrelotação das instalações não era tarefa fácil. Assim os castigos frequentes passavam por privação das saídas e de outros se falou, pois se ouvia contar que aquele guarda agredia os internados, vangloriando-se disso.
Mas meu avô Juvenal, homem de grande coração, foi também lá guarda. Depois de muitas noites na serra de Monsanto, fugas e prisões, ralações para a minha avó, defendendo os seus ideais republicanos, veio de Lisboa para Alcobaça com a saúde completamente arruinada. De tal forma que, passado pouco tempo, só se deslocava para o trabalho acompanhado do meu tio, que assim ficava com ele para o ajudar a fazer as rondas bem como a regressar a casa.
Um dia prendeu-se-lhe a atenção num internado muito jovem, que tinha ido para o asilo como moço de cego. Assim que o cego faleceu, o meu avô requereu o jovem Benjamim para seu serviço pessoal. como era uso. Assim o Benjamim que nada tinha passou a ser figura presente em casa de quem tinha pouco.
O meu avô faleceu 26 anos antes de eu ter nascido e o Benjamim manteve-se fiel à casa, viu crescer a minha mãe bem como dois irmãos que eram crianças de escola. Também foi testemunha da violência da separação da minha avó dos filhos mais novos, que foram para instituições para órfãos.
Ele ali estava todo o dia, fazendo recados, indo buscar água à fonte Estalaças ou à Fonte Nova, ora ajudando a minha avó a tratar das galinhas, ou mesmo sentado numa cadeira à beira da minha cama quando eu dormia a sesta.
Comia as vezes que lhe oferecessem. A visão dele a comer uma grossa fatia de pão, que molhava na tigela de café açucarado, só é suplantada pelo estrebuchar do corpo dele no chão de pedra do pátio, com os ataques epilépticos de que padecia. Ele pressentia-os e metia a manga do casaco na boca para não se morder todo.
Passaram-se os anos quando eu fui mobilizado []para a Guiné] e fui despedir-me da minha avó, também me despedi do Benjamim. Veio até mim, quando para ele olhei, e aceitou o meu abraço, sem perceber muito bem a razão do mesmo.
A minha avó faleceu quando eu estava na Guiné. Não imagino a dor que o Benjamim sentiu e sofreu daí em diante com a sua falta.
Quando regressei, fui no dia seguir visitar a minha tia, que vivia agora sozinha na mesma casa. Lá estava o Benjamim que, sabedor do meu regresso, desde manhã bem cedo me esperava na rua.
Veio direito a mim e abraçou-me e, no seu jeito simples e meio demente, perguntou-me porque me demorei tanto. Percebi que ele não sabia ao certo onde eu tinha estado. Trazia num bolso de um casaco um bolo de arroz sem qualquer prazo, para me oferecer como prenda de anos. Possivelmente já o trazia desde Junho do ano anterior.
Morreu algum tempo depois, tinha uma tuberculose, há muitos anos crónica.
Na rua Miguel Bombarda, também conhecida pela rua da Estrada, a casa da minha avó já não existe como a conheci. Quando lá passo, lembro-me dos jogos da bola na rua, da queima do Judas, dos altares dos Santos Populares, das corridas de arco e dele deitado no pátio, com o corpo dolorosamente percorrido por espasmos incontroláveis, babando-se, revirando os olhos sem ajuda possível.
Descansa em paz, Benjamim.
Juvenal Amado
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 28 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8828: As Nossas Madrinhas de Guerra (6): Ainda guardo as fotos que ela e a irmã tiraram em Saint-Tropez e me enviaram para a Guiné (Juvenal Amado)
Vd. último poste da série de 15 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8276: Estórias do Juvenal Amado (38): Nunca até li tinha visto tantas mamas ao léu e tão bonitas (Juvenal Amado)
2 comentários:
Caro camarigo Juvenal
Certamente poderá haver quem, de dedo em riste, possa querer sentenciar que "isto não tem nada a ver com o 'core business' do Blogue, destinado à recuperação da memória daqueles que percorreram matos e bolanhas da Guiné".
Pois, mas a verdade é que o Juvenal Amado que percorreu os tais 'matos e bolanhas' fez isso com a formação bebida na história de sua vida, resultado das acções do avô republicano (por acaso és parecido com ele nas fotos da Guiné), nas dificuldades que a família passou, na aprendizagem da vida, em Alcobaça e não só.
Foi esse Juvenal que 'esteve' na guerra. Foi esse que colheu as observações que hoje nos transmite, que permitiu 'fazer a guerra' sem perder de vista a humanidade de que se reveste qualquer homem.
Portanto, para mim, nenhum problema.
Abraço
Hélder S.
Caro Juvenal
Quando li a sua história, tive imediatamente vontade da comentar, só porque é muito agradável "ler-mos" os sentimentos de humanismo, que presidem a
à sua apresentação, mas, agora, que li o comentário do Hélder Valério, fiquei a pensar se devia comentar, mas... não resisti a fazê-lo. Pois, pese embora, mais que tudo a divulgação das vossas recordações de guerra, da vontade de recordar e fazer notar , "com toda a legitimidade" o que sofreram e viveram num período das vossas vidas,muito marcante, como é o da juventude, com toda a sua carga emotiva, muitas vezes mais forte que a razão, todos vós/nós temos histórias paralelas, que são o reflexo da nossa personalidade, e que fazem de nós, o ser humano que somos e que não se desasocia do combatente que fosteis, do Homem que caminhou até agora, que é pai e avô. Tudo o que vivemos nos constrói, e a meu ver, misturar com relatos de Guerra, a vossa vivência extra conflito, ajuda a conhecer os homens que temos, que sobreviveram ao dito conflito, e que criaram a geração presente.
Meus amigos, peço desculpa pela minha sinceridade, pela minha análise,"que ninguém pediu", mas, há muito tempo que conheço o proverbio que diz: "fala, para que te conheça".
Por isso, expressar pelo meio dos relatos de guerra, as vossas recordações civis, garanto-vos, que torna o Blogue mais Humano, muito mais agradável de ler e, no meu entender, só o valoriza.
Juvenal, gostei muito da sua História, e também gosto muito de ler tudo o que escrevem sobre o vosso passado como militares que viveram aquele período de 63/74, só que, o meu desconhecimento da matéria não me permite comentar.
O meu abraço fraterno, para todos os tertulianos combatentes.
Felismina Costa
Enviar um comentário